Entrevista – Daniel Perassolli – líder de especialistas em linguística de localização da EA
Quem cresceu com videogames no Brasil sabe o quão raro era ver jogos sendo localizados para o nosso idioma. Salvo pouquíssimos exemplos, jogar videogame por aqui nos anos 90, 2000 e 2010 era um esforço de aprendizado de outros idiomas para poder entender o que estava acontecendo e poder tirar o maior proveito possível das experiências que estavam a nossa disposição.
Felizmente esse cenário mudou bastante nos últimos anos, com uma das empresas liderando esse processo de localização para o PT-BR sendo a Electronic Arts. A EA tem feito ao longo dos anos um esforço grande para não só disponibilizar todos os seus títulos em nosso idioma, mas tornar a linguagem usada neles a mais inclusiva possível.
Para entender um pouco melhor sobre o processo de localização e, principalmente, o processo por trás da checagem da linguagem usada nela, nós tivemos o prazer de sentar e conversar um pouco com o Daniel Perassolli, o líder de especialistas em linguística de localização da EA, responsável por chefiar a equipe que cuida da localização e adaptação necessária para o português, incluindo o uso de linguagem neutra.
Para gente foi um prazer falar com o Daniel e abaixo você pode conferir a íntegra da nossa conversa com o Daniel que tocou em vários assuntos, passando pelo trabalho no geral e alguns detalhes específicos de jogos como EA Sports FC 24, Apex Legends e as políticas de inclusão da empresa.
Thiago Alencar – PSX Brasil: Boa tarde, Daniel. É um prazer te conhecer. É boa tarde, né?
Daniel Perassolli: Estamos quatro horas na frente. Bom, aí também já é boa tarde, né? Depois do almoço no Brasil, a gente já fala boa tarde. Prazer é meu de falar contigo, cara.
Thiago: Bom, a gente tá aqui pra falar sobre um tema que, pessoalmente, é um tema que me interessa muito e que é um tema que, até pela experiência que a gente tem, eu considero que vocês estão na vanguarda da localização aqui, que é justamente o tema da inclusão, tanto na linguagem escrita, quanto oral, e que é um tema em constante evolução. A gente, que cresceu jogando aqui no Brasil, sabe o quanto demorou pra gente ter a localização como algo comum. Hoje não só é algo comum, mas como é algo que tá ali fazendo parte do diálogo do dia a dia, né? Porque esse tema da linguagem neutra é algo que não é consenso nem em questão de academia, quanto mais na linguagem falada. Então eu queria que você falasse, que você apresentasse um pouco pra gente e falasse um pouco da importância desse temapra você e para EA. Como um todo.
Daniel: Claro. Um pouquinho de contexto só. Eu sou jornalista de formação, só pra você ter uma ideia mais ou menos do meu perfil. Eu trabalho com localização na Electronic Arts desde 2003. Eu comecei muito jovem, tá? Não é porque eu sou velho, agora não, mas já são 20 anos de estrada aí, trabalhando com localização. E eu vou te falar que esse tema da linguagem inclusiva é algo que a gente sempre teve uma preocupação com isso, mas virou uma política corporativa de fato, ali no final de 2016, 2017, 2018, e eu tenho um orgulho muito grande de falar que a sementinha dessa iniciativa na EA foi plantada pela equipe brasileira.
Aqui em Madri, a gente tem uma equipe enorme de localização, todas as equipes de todos os idiomas estão localizadas aqui em Madri. Pro EA FC, por exemplo, a gente localiza em 21 idiomas. Tá todo mundo aqui, então a gente convive muito com estrangeiros, com gente que fala todos os idiomas. E a sementinha dessa força tarefa que a gente chama de linguagem inclusiva, que foi criada em 2018, foi plantada por uma testa brasileira, que se chama Mariana D’Adalto. Um dia ela falou, eu me incomodo muito como mulher gamer, que eu jogo muito, que eu vejo cai a minha conexão da internet, aparecia uma mensagem nos nossos jogos, você foi desconectado da internet.
Ou, por exemplo, ela tava em grupos de, em guildas, ou em grupos do Apex, por exemplo, e você foi promovido a gerente do grupo. E ela falou, como mulher isso me incomoda muito. Então foi ela que levantou essa bola aqui dentro do departamento de localização, a gente começou a pensar nisso com mais carinho ainda, no começo de 2018, e hoje a gente tem, o João tá aqui com a gente, hoje a gente tem até um departamento, uma equipe totalmente dedicada à linguagem inclusiva pra todos os idiomas que a gente localiza os jogos da EA.
Então, é o que você falou, a localização vai evoluindo, e a gente tenta evoluir, junto. Concordo contigo quando você disse que é um tema ainda que, às vezes, não é aceito por regras oficiais, aí eu separaria um pouco, a gente pode até aprofundar nisso, entre linguagem neutra e linguagem não-binária. A linguagem não-binária é um capítulo à parte, mais recente ainda, a gente pode falar sobre isso também, como a gente usa a linguagem não-binária no português do Brasil, mas a linguagem neutra é… Eu acho que é até uma obrigação de qualquer empresa que se fale, que fala com o consumidor, de ter uma preocupação com isso.
Então, eu fico feliz da sementinha ter sido plantada por uma brasileira, e hoje eu até te confesso que, hoje mesmo, eu estava abrindo o aplicativo e estava bem-vindo, com uma foto de uma mulher, na tela inicial do aplicativo. Então, é pior, parece que coloca a luz que a linguagem não é inclusiva. Então, não sei comparar, vou ser muito sincero com você, que eu não sei comparar muito bem com o resto das empresas. Eu fico muito orgulhoso do que a Electronic Arts faz nesse sentido, e mais ainda, por ser uma iniciativa bastante aplicada em português no Brasil.
Thiago: Tem uma coisa que eu acho que é importante quando a gente fala da EA, que é o fato de que um dos lemas da empresa sempre foi o For the Players. Se a gente observar, em inglês, já é um lema mais neutro, já que é um idioma com linguagem mais neutra, um pouco mais fácil de usar. Então é um desafio um tanto quanto mais nosso, enquanto idiomas latinos, que tem mais essa questão do gênero e tudo.
Daniel: Um pouco não, bastante, mas assim, não é nem um pouco, é bastante, sim, concordo contigo.
Thiago: E aí, quando a gente para pensar,por exemplo, em um jogo que é muito próximo do meu coração, que é o Apex. Aliás, dois, né? O UFC também. E o Apex é um jogo extremamente inclusivo. A gente vê, vê pelos personagens, pela forma como a Respawn lida com eles. Então, como foi esse processo pra vocês de reavaliar tudo aquilo que já era feito antes,falar, ok, é aqui que a gente precisa mudar, mas já de imediato, tem algumas coisas que a gente precisa avaliar como vai ser feito, pra também não…é…Porque a gente sabe, por mais que a gente pense em linguagem como algo que é só o texto que aparece ali escrito, a gente sabe que tem um impacto, também, no bequim de preparação e tudo. Então, como foi pra vocês esse processo de começar essa mudança e… Porque teve o start, ok, a gente precisa fazer. Então, como é que a gente vai fazer?
Daniel: Eu vou focar minha resposta mais na localização, que é o meu quadrado, a área que eu posso falar. O Apex, que você falou, é um exemplo muito interessante porque eu vou até mostrar Bloodhound. Quando a gente foi comunicado aqui, a equipe foi comunicada que seria o primeiro personagem não binário totalmente declarado, é um personagem não binário, foi um marco pra gente também. O que vamos fazer, em português do Brasil, pra representar? Porque é o que você falou muito, inclusão, e acho que a palavra-chave também é representatividade, porque a gente tem Bloodhound no jogo pra representar uma grande parcela das pessoas que jogam o Apex, que jogam todos os títulos da EA.
Então a gente não podia nunca ser leviano a ponto de ter um personagem com todo esse background maravilhoso, com toda essa história e não explorar isso no português do Brasil. Então foi o primeiro momento que a gente teve que sentar, sentamos a equipe de localização, o que vamos fazer pra representar essa característica tão importante. E aí, nesse caso, foi o momento que a gente decidiu usar o sistema “Elu” pra todos os personagens não binários. Bloodhound foi a primeira que a gente usou, a gente teve que tomar essa decisão, e não foi uma decisão fácil, porque eu vou te falar, a gente entrou em contato com grande parte da comunidade, com grupos, com associações, e mesmo dentro da comunidade não binária no Brasil, não existe um consenso de qual é a melhor maneira de representar. Então a gente teve que tomar uma decisão de ir pelo sistema mais aceito, de tentar representar a maior quantidade possível de pessoas, e eu vou te falar que eu acho que foi um grande acerto, porque o nosso objetivo é atender as pessoas que a gente está representando, e essas pessoas deram um feedback maravilhoso pra gente, de entrar numa tela de seleção de personagem do Apex, e ver, rastreadore tecnologiqué, a identificação, os comentários, que chegam pra gente, é que lindo, que maravilhoso.
Eu, como pessoa não binária, entrar aqui, não me ver só representado num perfil, numa biografia de personagem, mas também como a localização do português do Brasil tá tratando isso. Bloodhound fala: “fui derrubade”; “estou cansade”. Então a gente não podia nunca desaproveitar essa oportunidade de começar a usar esse tipo de pros personagens que a gente pode fazer isso. E foi e primeiro, mas tivemos mais depois disso. Então a experiência com Bloodhound foi tão, tão prazerosa, tão bem recebida pelo público que a gente queria atender, que a gente decidiu continuar usando o sistema ELO, e hoje qualquer personagem não binário, que são vários, a gente já teve no Squadrons, que era o jogo de Star Wars, e tinha ume pilote, que também era de uma raça não binária, e a gente precisou representar assim, Battlefield já teve, e o Wild Hearts, que saiu recentemente também tem, então foi um marco, foi uma porta de entrada, Bloodhound, e a gente começou a usar esse tipo de linguagem pra todos os outros personagens que vieram depois.
Thiago: Tem uma parte pra mim que é importante, que não é só um personagem, é e-personagem. Bloodhound, eu jogo aí desde que o jogo saiu, e até muito recentemente, era meu main, sabe? Eu mudei depois, curiosamente, pro outro personagem, que é um tanto quanto inclusivo, que foi pro Gibraltar. Então, são personagens importantes.
Daniel: Eu vou te comentar com o pessoal, eu jogava com Bloodhound também, eu mudei pra Vantage, porque eu gosto de jogar de sniper, então apareceu alguém, mas também foi meu main por muito tempo. Minhe main.
Thiago: E assim, é um desafio de localização, existe um plot, e não é a única, a Respawn, não é de modo algum, exclusiva no sentido de, de ter personagens inclusivos. E vocês tiveram um desafio muito grande. Vocês trouxeram não só uma comunidade muito grande de jogadoras, mas jogadoras profissionais, um volume muito alto, sendo integrado aos poucos, mas extremamente significativo.
Eu fico muito feliz hoje quando eu abro o EA Sports FC todo dia pra jogar, e eu tô enfrentando times com jogadores e jogadoras, independente, a galera coloca nos times do FUT pela qualidade daquelas jogadoras. Mas como foi pra vocês quebrar essa barreira, porque a gente sabe que há um preconceito muito grande de que futebol é um esporte pra homem, é um esporte masculino, e vocês quebraram isso, não só com a incorporação das jogadoras, mas também com uma linguagem pra atender as jogadoras da videogame que gostam do EA FC e se divertem tanto quanto os homens.
Daniel: Sim, aí, aí, eu volto a te dar o exemplo. São duas camadas aí de linguagem inclusiva que eu te diria. Uma, quando a gente tá falando com as pessoas que jogam nesse tipo de mensagem, por exemplo, e aí, ainda pegando o gancho do EA FC, mas daí isso você vai ver em qualquer jogo, um exercício legal que acho que você pode fazer, qualquer jogo da EA, você entra nos troféus, nas conquistas, eu vejo muitas vezes, eu tô jogando, não vou citar nomes, obviamente, mas eu tô jogando títulos de outras empresas, eu vejo, por exemplo, o melhor de todos, como o nome de Troféu, ou colecionador de recompensas, ou algumas coisas assim. Nos Achievements e Troféus de qualquer jogo da EA, você não vai ver isso, a linguagem é neutra sempre, porque, obviamente, se você tá usando o melhor de todos, você, isso aí, é uma declaração de que o melhor de todos vai ser um homem. Então, você pode, pode, um exercício bacana de fazer isso em todos os nossos jogos.
No EA FC, quando a gente fala com quem tá jogando, são várias, várias telas de esse tipo de aviso do Ultimate Team, não seja o último a conseguir a recompensa tal. Nunca. Você não vai ver isso nunca nas nossas localizações, porque é uma preocupação que a gente tem do momento da tradução, no teste, e eu lidero uma equipe que é a equipe de experts em linguística, e até na revisão final, antes de ir pro ar. Então, todo mundo segue a política, as guidelines que a gente tem corporativas de linguagem inclusiva. Então, tem essa primeira camada, de como a gente se comunica com quem tá jogando, e daí, no EA , tem mais camadas ainda. Você falou muito do futebol feminino, que foi um desafio, quando a gente lançou pela primeira vez, teve um esforço da equipe de design do jogo, de possibilitar que o que você falou no inglês é player.
A gente não, a gente tem que usar jogador e jogadora dependendo do time. Então, assim, teve um esforço da equipe de desenvolvimento pra possibilitar, que a gente pudesse ter localizações diferentes pra futebol masculino e futebol feminino, porque, claro, outra vez, o mesmo exemplo de Bloodhound, que não adianta nada a gente ter essa possibilidade e usar uma linguagem masculina pra falar de um time feminino. Não faria o menor sentido. A gente estaria excluindo o público que a gente quer incluir.
Mas, com a chegada do Volta, e agora, com o Ultimate Team, com times mistos, é uma outra camada ainda de desafio. Existe muito esforço do nosso lado na narração. O Gustavo Villani, por exemplo, falou pra gente que o esforço que ele teve que fazer pra narrar jogos que poderiam ser time misto, e a gente não sabe em todos os momentos se é um homem ou uma mulher que toca a bola, ou se a bola desviou em um homem ou um jogador ou uma jogadora, que ele aprendeu tanto com a gente que ele tá aplicando esses ensinamentos que ele teve com a gente nas transmissões dele na Globo, na Vida Real. Tanto ele como o Caio Ribeiro. Então, a gente se sente feliz de ser um agente de mudança também, de levar essa mensagem de inclusão pra mais pessoas. Então, a gente teve que tomar cuidado. Goleiro? Não podemos usar. Jogador? Então, é todo um esforço que a gente faz pra tentar usar mais palavras neutras, palavras que funcionam tanto pra jogadores como pra jogadoras e que quem esteja jogando em casa, seja homem, mulher, pessoa não binária, quando tem um time com um atleta, que gosta, tem essa experiência de não sentir, tem que ser invisível. A pessoa não pode sentir que teve um esforço a mais ali. A gente conseguiu fazer uma coisa invisível. Quem tá escutando a narração do Gustavo Villani e do Caio sente como se fosse uma narração real sem usar termos masculinos. Foi um grande esforço que a gente fez do nosso lado pra fazer isso funcionar pra português no Brasil.
Thiago: Cara, isso do Villani é notório. Porque, assim, ele é um dos meus narradores favoritos. Independente do…
Daniel: Ele é sensacional, sim.
Thiago: O trabalho dele é sensacional. E, por exemplo, meu time no FUT até pouco tempo atrás, a goleira, especificamente, era uma mulher. É a melhor que eu tenho, então vamos com ela. E você percebia que não tinha um esforço. Parece realmente extremamente natural a transição.
Daniel: Essa é a intenção. Porque é um desafio grande. Se a gente… As pessoas que jogam… Sentem que está não natural, que a gente teve que mudar de uma maneira não natural.Em alguns casos, por exemplo, jogador entre parênteses A na frente. A gente evita isso ao máximo. Em alguns casos muito extremos, você pode ver alguma coisa assim nos jogos da EA. Mas esse botar o A na frente, é você botar o farol em cima. Tive que mudar o texto pra ter uma linguagem inclusiva. Esse não é o nosso objetivo. Pra gente, a linguagem inclusiva tem que ser natural. Então, esse é o esforço que a gente tem. Então, o que a gente faz? As pessoas que jogam não podem perceber.
Aqui eles se esforçaram muito pra conseguir uma solução. Não, tem que ser natural. E eu te diria que com o talento do time, com o esforço, com a vontade de fazer bem feito, a gente consegue, quase sempre. Não dá pra falar sempre que em alguns casos, algumas palavras são complicadas. Mas a gente consegue quase sempre esse resultado que a gente busca.
Thiago: Uma coisa que você percebe… Você falou muito de colocar o holofote. E eu acho que um dos melhores sinais de uma boa localização é quando você não percebe. Muitas vezes o que é, digamos assim, normativamente correto, e eu vejo isso… Eu tenho uma formação acadêmica de direito, então a gente sabe que muitas vezes o que é legal não é necessariamente o adequado, porque essas coisas demoram muito tempo pra mudar. E vocês têm um desafio no horizonte, que talvez seja o mais notório, que é o Dreadwolf. E a gente sabe o quanto a Bioware é uma empresa inclusiva. Sempre foi uma das maiores vanguardistas nesse sentido. E também são jogos com muito texto. E imagino que pra vocês vai ser um desafio muito grande.
Daniel: No Dreadwolf, você sabe… Sabe que eu não vou poder falar muita coisa, mas sim, em qualquer jogo da BioWare, como você disse, mas da BioWare, da Respawn, são muitos estúdios dentro da EA que tem essa preocupação. É uma guideline corporativa que eu falei pra vocês. Quando a gente recebe um jogo pra localizar, isso sempre, tá? Não tô falando especificamente de um produto ou outro. Antes de começar o processo dos autores, dos roteiristas escreverem o texto, a gente tem uma reunião com a equipe de localização, a gente ia precisar… A gente apresenta pra eles alguns desafios.
A equipe do João, que tá escutando a gente, tem, inclusive, um documento que chama Writing for Loc, que a gente pede pra eles tomarem alguns cuidados enquanto estão escrevendo o jogo pra não facilitar, porque pra inglês sempre vai ser mais fácil, mas pra deixar menos difícil o processo de localização pra todos os idiomas, principalmente os latinos. Então, sim, é uma preocupação que a gente tem, principalmente pro público alvo desse tipo de jogo,mas o que você falou, que eu achei interessante comentar, como parte dessa preocupação, é aprovado pela Academia Brasileira de Letras, por exemplo, o uso de linguagem não-binária? Não. Então a gente tá, o que você falou, nem sempre é legal. Estamos usando um sistema de linguagem português que não é aprovado pela autoridade por gramáticos, por dicionários.
Mas, cara, a gente precisa ser o que eu te falei, o agente de mudança. Por que que talvez não seja aprovado ainda esse tipo de idioma? Porque ainda não se viu a necessidade em outros tipos de documentos ou de texto oficial de usar, mas pra gente existe essa necessidade. Estamos falando, temos um personagem não binário em um jogo. Aí não é nem uma questão de, precisamos de um sistema de idioma não binário pra usar pra esse personagem. Então, é legal ser parte dessa mudança. Hoje, não é aprovado. Quem sabe daqui três ou quatro anos a gente ajude com o universo dos jogos, da cultura, de outro tipo de jornalismo, até de textos jornalísticos que comecem a usar esse tipo de linguagem. Quem sabe?
A gente não está incentivando a quem toma essas decisões de o que é oficial ou não, a perceber que existe uma necessidade. Aí não entra nem ideologia, nada disso. É uma necessidade do idioma que não está coberta pelo idioma oficial. Então, eu acho que aí a gente nem piscou quando a gente precisou tomar essa decisão. Vamos começar a usar um idioma. Que não é aprovado pelas academias, pelas autoridades gramáticas. E a nossa esperança é que isso ajude. Ajude na chamar a atenção de mais pessoas pra isso, pra necessidade desse tipo de idiomas, de linguagem ser considerada oficial. É uma necessidade do idioma, mais do que nada.
Thiago: Você acaba entrando um pouco naquela, desculpa se interromper, mas acaba entrando um pouco naquela questão do ovo e da galinha, né? Porque se não há alguém provocando a mudança, por que que a pessoa que está lá pra definir a “norma culta”, digamos assim, vai tomar a iniciativa de mudar se não está sendo provocada a mudança.
Daniel: Exato. E aí são vários exemplos. Aí, lógico, mal comparando, é uma comparação que não tem nada a ver com a linguagem não binária. Mas a gente tem palavras em inglês que entram no nosso vocabulário. Deletar esse tipo de coisa porque surgiu uma necessidade, deletar é muito relacionado, não é um apagar igual de borracha, mas deletar é relacionado a coisas eletrônicas. Então surgiu uma necessidade de ter uma palavra pra aquilo. E foi aprovado hoje, está em qualquer dicionário a palavra deletar.
O que a gente espera é que ser parte desse movimento pra que isso não cause estranheza. Porque pra quem não é da comunidade, a gente entende que pode ser um pouco estranho desse tipo de idioma, esse tipo de palavra de construção sendo usado em um jogo de videogame. Mas a gente quer ser esse agente, quer chamar atenção pra isso, que não é pra ser estranho, é pra ser uma coisa do dia a dia. Porque é pra cobrir uma necessidade que o próprio idioma traz pra gente.
Thiago: E a língua, por mais que a gente não pense nela assim, a língua é um ente vivo.
Daniel: Totalmente vivo, concordo 100%. Evoluindo de acordo com as necessidades, exato.
Thiago: Ainda mais no mundo acelerado que a gente vive, a gente percebe… Eu fui até voltar numa coisa que você mencionou e eu fiquei com isso na cabeça, que era sobre os troféus. Eu fui olhar a lista de troféus do EA FC 24, e você percebe que as únicas vezes em que vocês usaram uma linguagem não neutra, são pra troféus específicos de executar algum tipo de atividade, como, por exemplo, “A Mãe Tá On”, que é pra ganhar um troféu jogando com um time feminino, ou “O Mundo é Delas”, que é o troféu de jogar uma partida entre seleções femininas.
Daniel: Exato, aí sim, claro. Aí é um limite que a gente tem também. Quando a gente tá falando de um jogador específico ou de uma jogadora, aí a gente não precisa ser neutro. Também a gente não precisa passar do ponto. Aí a gente pode usar o… Por exemplo, a gente não usa você foi desconectade… Pra quê? A gente pode usar você perdeu a conexão, por exemplo. Então a gente toma um cuidado pra não exagerar e usar… Ter uma consciência de usar quando é necessário.
Thiago: Não forçar uma situação que não é cabível, né?
Daniel: Exato, exato. Essa é a ideia. Então quando a gente consegue… A gente tá falando sobre uma pessoa específica, sobre um time ou um grupo que tem gênero, por que não? A gente pode falar o melhor de todos. Se fosse, sei lá, ganhe o… Tire o Messi no… No pacote do Ultimate Team. Daí a gente poderia estar falando especificamente do Messi. Daí é um homem. A gente pode usar o… Linguagem masculina. Ou o contrário. O mundo é delas. A gente tá falando de um time inteiramente feminino. Então a gente pode usar o feminino aí. Então a gente tem esse cuidado. Depois… O exercício que é legal você fazer. Você pode pegar qualquer jogo da EA de 2018 pra cá. Você vai ver que todos os nomes de… De conquista, de troféu, são neutros. Porque a gente nunca, nunca… Pensa que quem tá jogando é homem. Porque não é. Pode ser um homem, pode ser uma mulher, pode ser uma pessoa não-binária. Então a preocupação que a gente começou a ter de nunca deixar com gênero algo que não precisa e não deve ter gênero.
Thiago: E estatisticamente, você tem uma chance de 50% de não ser um homem que tá jogando.
Daniel: Claro. Exato. E um exemplo que eu vou te dar. O slogan do EA FC, que é The World’s Games. 90% das pessoas vão traduzir isso automaticamente na cabeça, como o jogo de todos. Por que todos? Todos é uma palavra exclusiva já por definição, por ser masculino. Então, o jogo de todo mundo é o que a gente usou. Não estamos falando só com o público masculino. A gente tem isso muito claro em tudo que a gente faz com localização de português no Brasil, que a gente tem que chegar a todo mundo.
Thiago: Perfeito. Daniel, até pra não tomar muito mais do seu tempo, porque eu sei que a gente vai ficar aqui horas e horas falando, porque é um tema que rende, é um tema muito interessante.
Daniel: E eu agradeço o teu interesse pelo tema, viu, Thiago? Porque é bem legal ver a imprensa de jogos interessado em linguagem inclusiva. Super bacana. Tô muito feliz de dar essa entrevista pra você.
Thiago: Eu, pessoalmente, tenho uma paixão enorme por RPGs. Então… Eu cresci num mundo em que eu não esperava… Mal, mal, sabe? Podia esperar, talvez, a localização de alguns jogos em inglês, quanto mais em português. E eu sou… Até pela vivência, eu sou muito feliz de poder esperar que esses jogos hoje cheguem pra gente em português. Né? E… Então… E, obviamente, eu sei que essa experiência sua também,de todo mundo, a gente passou por uma mudança muito grande e a gente sabe da importância do mercado brasileiro hoje pra indústria.
Daniel: E eu, de criança, posso falar. Eu tenho 44 anos hoje. Os jogos que eu jogava no Master System,] no Mega Drive… Eu lembro de um jogo da Mônica, no Master System, acho, que era localizado, mas era na raça, porque eu não falava inglês ainda e era bem complicado de jogar. Te entendo perfeitamente. E agora, o normal é ser localizado. E eu acho que foi uma evolução muito grande no mercado, sim. Exato.
Thiago: E… Não só localizado em texto, mas em dublagem também. Não é uma coisa qualquer. Então eu queria, pra gente encerrar, que você falasse um pouco pra gente, só pra gente reforçar mesmo, a importância do trabalho de vocês, de vocês representarem a gente pra EA e por que é tão importante pra empresa receber todos os jogadores e por que que, no fim das contas, a linguagem neutra é o melhor? Porque, assim, eu sempre falo que pra mim não faz diferença. Eu sou um homem, jogo videogame desde pequeno, então eu sei que eu tô abarcado ali. Mas então por que é importante pra vocês que outras pessoas que não se encaixam no meu perfil, no seu perfil, se sentirem bem recebidas pela EA?
Daniel: Cara, é… Acho que um bom jeito de começar a falar sobre isso, o slogan da EA, o nosso mote interno é Inspire the World to Play. Que é inspirar o mundo a jogar. Primeiro, a localização por si só já é uma maneira de inclusão. Porque o mundo não fala inglês. Então, o que a gente quer é que pessoas de vários países, vários territórios, aí eu não falo só do português do Brasil, vou puxar o português do Brasil, porque é o meu quadrado, que as pessoas que joguem em cada país do mundo, bom seria se a gente pudesse localizar em todos os idiomas, mas a gente vai, pouco a pouco, aumentando o leque. Mas alguém no Brasil que não fala inglês possa aproveitar um jogo da EA, como se falasse, como qualquer pessoa que possa aproveitar o jogo no idioma original. Em primeiro lugar, a localização por si só já é uma maneira de inclusão, de levar os jogos a mais pessoas. A nossa missão está cumprida, como a gente já falou aqui, quando alguém tem a mesma experiência, a mesmíssima experiência invisível de jogar em inglês.
Quando alguém tem exatamente a mesma experiência jogando um título em português no Brasil, missão cumprida. Então, assim, a gente conseguiu incluir o público brasileiro, e oferecer a mesma experiência de qualquer outro idioma, de qualquer pessoa que joga em inglês, por exemplo. E o público brasileiro tem homens, mulheres, pessoas não binárias, idades, raças, culturas, religiões. Então, a gente fala para todo mundo. Os nossos jogos são para todo mundo. Então, a linguagem, como a gente chega ao público brasileiro via versão localizada, em 99% das vezes, a linguagem é a nossa ferramenta para falar com todos os jogadores, com todos os jogadores.
Todas as pessoas que jogam. Então, a importância está aí, de que qualquer pessoa que coloque, que execute um jogo da EA no console, no PC, se sinta representada pelo que ela está vendo no jogo, e pelo idioma, pelo áudio, pelas mensagens que aparecem na tela, que possa se identificar com o que está vendo dentro do jogo, com o conteúdo do jogo. Então, a localização é uma inclusão, e a gente tem que incluir todas as pessoas, independentemente de raça, idade, gênero, porque a gente sabe que os jogos da EA são para todo mundo.
E aí é uma coisa que a gente ficou muito na parte do gênero, mas a inclusão é muito mais que gênero, lógico. Tomar cuidado com… Só que aí é mais para a parte dos roteiristas em inglês, e a gente adapta para o português. Mas com como se dirigir em termos de raça, de idade, não usar expressões que alguém possa se ofender. Então, vai bem mais além o nosso trabalho. É mais visível nessa parte de gênero, mas é muito mais amplo do que isso.
Thiago: Tem uma anedota que eu tenho. Às vezes, estando em ambientes que não são de jogadores, ambientes de trabalho, eu já tive múltiplas oportunidades de estar com um grupo de 10 pessoas, homens e mulheres, e todo mundo jogava EA FC. Então, e todo mundo tem essa honra de poder jogar, sem se preocupar de se sabe inglês, se não sabe inglês, por causa de vocês.
Daniel: Exato. É a ideia. E aí, acho que é importante comentar também com um último detalhezinho, que a equipe do João tem especialistas em linguagem inclusiva em cada país. Então, por exemplo, para o português no Brasil, a gente tem alguém da comunidade não binária, que é uma pessoa que serve como nosso consultor. Quando tem temos dúvidas, alguém muito especializado em linguagem da comunidade preta, para evitar alguma coisa que possa ofender. Então, a gente vai buscar, é o que você falou, eu, homem, branco, eu preciso buscar especialistas que estão dentro da comunidade para a gente assegurar que a gente está chegando a essas pessoas. Então, além da equipe de localização interna da EA, a gente tem um apoio muito forte de representantes das comunidades que a gente quer chegar, para a gente ter certeza que a gente está cumprindo a missão.
Thiago: Muito obrigado, Daniel. Queria encerrar a entrevista e não tem outro jeito, além de te agradecer. Tanto por tirar um tempo para falar comigo. E principalmente pelo trabalho que vocês fazem. A comunidade brasileira é melhor pelo trabalho de vocês.
Daniel: Agradeço muito, cara. É um prazer. Muito orgulho da minha equipe, do que a gente faz. É um esforço grande. E agradeço muito que você tenha essa opinião da nossa localização. De verdade. Significa muito.