Análise – GRIS
Uma das discussões mais filosóficas e levemente estranhas envolvendo a indústria dos videogames foi o questionamento se “jogos são arte”, algo que ganhou considerável força com a crescente popularidade de desenvolvedores independentes e sua abordagem diferenciada para as possibilidades narrativas que a mídia possui, como a popularização dos “walking simulators” e a a ressurgência dos adventures desenvolvidos no Ocidente.
Em tempos em que até mesmo renomados diretores e produtores de cinema não conseguem concordar se todo filme é arte (e, spoiler, todo filme assim como todo jogo é arte), essa discussão é algo bem curioso de se explorar, ainda mais quando o lado mais acadêmico das artes em suma aceita os videogames como a “10ª arte”. Em sua essência, arte é toda atividade humana de ordem estética feita a partir da percepção, emoções e ideias com o objetivo de estimular de uma forma ou de outra o espectador.
GRIS, primeiro jogo desenvolvido pelo estúdio espanhol Nomada Studio, formado por veteranos da Ubisoft que trabalharam em jogos da franquia Assassin’s Creed e Rainbow Six Siege e outros artistas independentes de fora da indústria, além de ser publicado pela Devolver Digital, talvez seja o exemplo mais extremo do que muitos costumam pensar e/ou usar de exemplo quando fazem esse tipo de comparação.
Em sua essência, GRIS é um jogo extremamente simples e fácil de se descrever e se resumir. Trata-se de um simples porém desafiador jogo de plataforma 2D, sem qualquer combate, cuja essência do gameplay gira em torno de descobrir os caminhos sobre como avançar e explorar mais sobre a história de uma garota aprendendo a lidar com seu luto.
O problema é que essa simples descrição do que o jogo é está longe de fazer jus ao quão incrível ele usa cada um dos elementos que o tornam e, consequentemente, tornam a mídia dos jogos uma experiência distinta de tudo o que se vê nas demais disciplinas que se encaixariam no conceito clássico de arte criado por Riccioto Canudo. Justamente pela sua capacidade de usar diferentes definidores das demais linhas estabelecidas pelo Manifesto das Sete Artes, sendo todas combinadas quase à perfeição para tornar Gris uma experiência única e tão marcante.
Há o trabalho estupendo de som, marca da 1ª arte, a música, feito pela banda Berlinist, responsáveis pela composição da trilha sonora, e da equipe de design de áudio em saber como casar um grupo pequeno porém variado e rico de canções e efeitos sonoros simples e marcantes para enriquecer a atmosfera e a imersão do jogo. Isso desperta as emoções necessárias a cada momento do jogador e dando pequenos detalhes sonoros do que ele deve fazer para progredir e como ele deve agir em cada nova situação que o jogo vai lhe apresentando.
Além disso, temos o quão bem o jogo captura o espírito das artes cênicas, a 2ª arte, através do seu movimento, algo muitas vezes esquecido dentro dos jogos de tão natural que é. Cada passo da protagonista é dado com leveza e sutileza, capturando bem a sua exaustão emocional no começo do jogo e, à medida que ela vai aprendendo a lidar com o sentimento que a afetou, cada passo se torna mais fluído, com uma sensação de se estar avançando cada vez mais rápido e confiante pelo mapa. Assim, cada pulo, cada queda é dotado de mais graça ao mesmo tempo em que as “recaídas emocionais” vem com o devido efeito e choque de movimentação ou urgência de se escapar de determinadas situações.
A influência da pintura, a 3ª arte, talvez é a mais notória à primeira vista para qualquer um que veja alguns pequenos segundos do jogo. GRIS tem um estilo artístico muito único, de traços que lembram algo feito com lápis de carvão e outros materiais mais rústicos e colorido com algumas das mais belas aquarelas já feitas em uma obra digital. O trabalho feito por Conrad Rosét e sua equipe são de uma sensibilidade poucas vezes vistas em jogos.
Rosét, aliás, é um artista bem renomado na Espanha e, apesar de ter GRIS como seu primeiro trabalho de arte para um jogo (exercendo o papel de Diretor Criativo e Líder Artístico da equipe), tem trabalhos para marcas como Adidas, Coca-Cola, Disney e até mesmo com o FC Barcelona no seu portfólio. Ele também possui exibições em diversos museus desde os 22 anos de idade, trazendo muita credencial para o jogo.
A arte é um ponto tão focal do jogo que o level design é todo construído ao redor disso. Os cenários e quebra-cabeças são construídos a partir dessas sensibilidades, fazendo valer muito bem pequenos detalhes sutis no cenário e das mudanças pelas quais a protagonista vai passando ao longo das curtas 3 a 4 horas de duração. Essas horas são capturadas muito bem pela vasta variedade de ambientes e habilidades que o jogador vai conquistando, mesmo que o design dos quebra-cabeças em si não sejam dos mais desafiantes e talvez acabem afastando os jogadores mais sedentos por punição ou pela sensação de falha, o que não há aqui.
A cada nova etapa que o jogo vai passando, novas cores vão sendo incorporadas ao cenário e desencadeando novos ambientes muito distintos dos anteriores, como, por exemplo, quando o verde traz um ambiente mais florestal e calmo ou o azul traz consigo uma espécie de “fase da água” – algo visto tão mal nos videogames e que aqui é feito à perfeição. Há uma narrativa construída através da imersão e do bom uso de profundidade na construção dos cenários, lição aprendida com a escultura e arquitetura, a 4ª e 5ª artes respectivamente.
Isso tudo se combina para fazer algo que desafia os conceitos mais tradicionais da literatura, a 6ª arte tão construída sob as palavras (por mais que existam textos não-verbais), as quais estão completamente ausentes aqui salvo por alguns pequenos prompts explicando como usar as habilidades que vão sendo liberadas. Mas é uma história que fica bem clara através das pequenas nuances da forma como os personagens se conduzem e formam até mesmo belos laços de amizade entre a protagonista e moradores das diferentes áreas visitadas por ela, mesmo sem jamais trocarem uma palavra sequer.
Essa estrutura narrativa parece muito inspirado pelos antigos filmes mudos, algo que antes era visto como mero entretenimento mas que aos poucos foram embasando a consolidação da sétima arte: o cinema, no papel de prestígio que hoje ele ocupa. E essa história de uma menina aprendendo a lidar com seu luto enquanto explora ambientes distintos, mágicos e quase etéreos, cada qual com sua específica simbologia para as diferentes fases do luto, é algo fácil de captar e de se relacionar, mas que se torna ainda mais especial pelo que torna os videogames arte.
Por mais que se possa continuar traçando os paralelos que GRIS possui com outros estilos artísticos, ele só é tão especial por ser justamente um jogo. É no solucionar os quebra-cabeças e avançar pelos cenários com os aprendizados que o jogo vai colocando no caminho do jogador e na maneira como ele brinca com essas expectativas, adicionando novas habilidades como nadar, planar ou se fixar no chão e criando novos desafios baseados nos seus aprendizados, com novas áreas misturando tudo o que você já sabe para entregar uma experiência sensorial única que ele se destaca.
As poucas horas de duração do jogo (e que é mais do que recomendado se jogar com os fones de ouvido) são uma experiência única e especial, como toda uma instalação em si só, como presenciar as diferentes camadas de um sarau em uma única experiência voltada para si em que tudo é guiado por você. Mesmo toda a surrealidade da ambientação a torna ainda mais rica, sem bater na cabeça do jogador para explicar o que quer dizer e deixando cada passo aberto a interpretação.
Há uma constante sensação de se estar tentando redescobrir a sua própria identidade e a daquele mundo, de voltar a confiar em si e nas suas capacidades, magistralmente representada por uma habilidade sempre ativa mas que só funciona no trecho final do jogo e que se torna um toque maestral para elevar a experiência a um patamar mágico, mudando tudo e trazendo todo o ciclo do jogo ao seu fim e trazendo todas as oscilações a um clímax muito especial.
E é quando você finalmente chega ao final do jogo é que a mensagem finalmente se encaixa e se percebe porque ele é algo que todo jogador que se interessa pelas diferentes possibilidades narrativas que os videogames possuem. O que temos aqui é um dos jogos mais belos de todos os tempos, que passa a sensação de ser uma poesia em movimento, se valendo de uma constante sensação de espetáculo e familiaridade que são ao mesmo tempo diametralmente opostas e estranhamente complementares.
GRIS é de uma sensibilidade ímpar, se valendo de um constante sentimento de descoberta, admiração e impacto, constantemente deixando você boquiaberto e sabendo se valer muito bem da sua beleza sonora, visual e sensorial para enriquecer a sua jogabilidade para fazer você perceber que essa é uma construção artística que só poderia ter sido criada com o poder dos videogames.
Veredito
GRIS é um jogo que só pode ser descrito com uma palavra: mágico. Os sentimentos e sensações que o jogo desperta através do seu trabalho magistral de arte e música, combinado com um sistema de movimento e jogabilidade muito bem feitos, resultam em uma experiência incrível e em um dos jogos mais emocionalmente poderosos, marcantes e significativos dessa geração.
Jogo analisado no PS4 padrão com cópia digital fornecida pela Devolver Digital.
Veredito
Gris is a game that can only be described by one word: magical. The feelings and sensations that it awakens on the player through its magistral work with its art and music, combined with a very well done movement system and gameplay result in an incredible experience and one of the most emotionally powerful, striking and significative games of this generation.
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