Análise – Fell Seal: Arbiter’s Mark
Bons jogos saídos de kickstarters tem sido uma das coisas mais raras dos últimos anos. Enquanto a plataforma sempre teve muita promessa e facilitou a comunicação entre desenvolvedores e o seu público, o retorno dessas campanhas de financiamento coletivo tem sido, na melhor das hipóteses, misto, com alguns grandes sucessos sendo ofuscados por falhas catastróficas.
Um gênero que consistentemente tem sucesso nessas campanhas são os RPGs de Estratégia. Enquanto o desenvolvimento de Unsung Story coloca uma mancha nisso, o sucesso de outros jogos como Children of Zodiarcs e The Banner Saga são muito mais representativos do nível de qualidade que se deveria esperar desses lançamentos. Fell Seal: Arbiter’s Mark não é só mais um bom jogo dentre esses, mas, possivelmente, o melhor de todos eles.
Altamente influenciado (por admissão dos próprios desenvolvedores) pelas obras clássicas do lendário Yasumi Matsuno, principalmente Final Fantasy Tactics e Tactics Ogre: Let Us Cling Together, seja pelo sistema de combate ser um RPG Tático/Estratégico, seja pela história com tons mais políticos e maduros (também uma tradição das obras do Matsuno), tudo no jogo funciona a beira da perfeição.
Se passando em um mundo completamente novo e muito bem explorado, Fell Seal coloca o jogador no papel de um Mediador, agentes da ordem encarregados de fazer valer as leis daquele mundo, mas que se tornaram uma instituição marcada pela corrupção e abandono dos seus valores (os ecos do papel dos Juízes em Ivalice são bem claros), as quais foram criadas pelos Imortais, um conselho de anciões conhecidos apenas um por dos sete numerais que eles representam e que foram responsáveis por salvar o mundo que estava à beira da destruição.
A confusão toda começa quando um dos Imortais resolve se aposentar (apesar dos nomes, eles são apenas bem velhos), abrindo caminho para o início do processo de seleção do seu sucessor, época em geral marcada pelo caos. Cada um dos Imortais coloca a sua marca em um campeão, que deverá seguir em uma jornada própria para se mostrar digno de assumir o posto, com algumas dessas tarefas indo contra as leis em vigência mas que não são puníveis pelos Mediadores por essa marca ser um símbolo de imunidade para os campeões.
O jogador assume o comando de uma equipe formada por dois dos últimos Mediadores que ainda levam os valores e a importância da sua função a sério e uma trainee que, após prenderem um assassino e levarem-no para a prisão, se vêem envolvidos na trama dos Imortais quando o criminoso é escolhido como um dos possíveis sucessores para o aposentando, fazendo com que eles partam em sua própria jornada para remediar o caos que está prestes a cair sobre o mundo. O jogo como um todo possui quase 50 missões na história principal e mais um monte de missões secundárias que são mais do que suficientes para entregar uma ótima história sem ser longo demais.
Pode não ser a história mais original do mundo, mas Fell Seal a entrega com maestria, com o cerne principal da história sendo desenvolvido com altíssima qualidade na forma como ele explora todas suas reviravoltas e sendo catapultada a um nível ainda maior pelo trabalho maestral de desenvolvimento dos personagens, ficando claro a motivação e personalidade deles, mesmo em um jogo em que boa parte da sua equipe é formada por mercenários aleatórios. Ela nem mesmo sofre com alguns dos problemas tradicionais de RPGs de demorar pra engatar enquanto o jogo lhe apresenta novas mecânicas, já que tudo é feito bem rapidamente e lhe pega de jeito. A possibilidade de se jogar com legendas e menus em português é outro toque muito bem-vindo e que torna o jogo ainda mais recomendável.
O combate é a sua forma tradicional de se jogar um RPG Tático, com visão isométrica e os personagens se movendo por um tabuleiro, cada qual agindo no seu turno, sendo possível ver quem agirá em seguida através de barra com a ordem das ações no topo da tela. Os personagens tem uma quantidade específica de quadros que podem andar e podem atacar, se defender ou usar habilidades especiais e itens. Você pode equipar armas, escudos e acessórios (que podem ser comprados, achados por aí ou até mesmo criados) para melhorar as suas estatísticas.
É tudo bem em linha com o que se espera de jogos que tem as mesmas influências, inclusive com um foco considerável sendo colocado na posição do personagem relativa aos demais personagens, com bônus de dano e possibilidade de acerto se você estiver posicionado nas costas ou ao lado do inimigo e vice-versa. Alguns mapas possuem características especiais como porões por onde novos inimigos chegam e precisam ser bloqueados ou locais que precisam ser protegidos, adicionando um outro nível de estratégia.
Em contra-partida, após cada missão da história é possível lutar infinitamente no mapa para ganhar mais experiência e não há perma-death (só uma penalidade temporária caso o personagem morra) por padrão em nenhum dos diferentes níveis de dificuldade do jogo. Mesmo isso não é um problema já que o jogo lhe permite customizar praticamente todos os aspectos da dificuldade, inclusive ativando morte permanente, para tornar a experiência mais alinhada com o que o jogador procura.
Algo curioso e que merece ser citado é que Fell Seal tem uma abordagem diferente e curiosa para a forma como ele lida com itens consumíveis. No geral, poções e outros itens desse gênero precisam ser comprados e equipados nos personagens, sendo necessário reestocar após as lutas. Fell Seal acaba com isso, com todos os itens sendo recuperados após o fim do combate… Com uma pequena surpresa. Há um limite do quanto os itens podem ser usados por cada herói. É uma mudança interessante e que adiciona uma profundidade e nível tático distinto a algo que costuma ser secundário nesses jogos.
Ganhar experiência (que é feito com cada ação em combate ao invés ao fim das lutas – e sim, é possível usar um famoso exploit de FFT aqui-), subir de nível e melhorar suas estatísticas significa ter acesso a uma miríade de novas profissões e uma série de opções novas em combate. Boa parte parte da sua equipe é formada pelos mercenários mencionados anteriormente e são recrutados na loja da Guilda. É sempre possível escolher um personagem de qualquer uma das classes básicas (Mercenário, Patife, Cavaleiro, Reparador e Bruxo) disponíveis no jogo e, caso o jogador não queira perder tempo evoluindo o personagem, gastar um pouco mais para que ele venha num nível mais alto (sistema bem similar ao que se vê em Disgaea).
Cada classe tem uma série de habilidades específicas, com equipamentos que ela pode equipar e classes avançadas que vão sendo desbloqueadas para o personagem a depender da forma como você decidir evoluí-lo. Não está satisfeito? É possível usar respec e começar tudo do zero ou mudar de profissão entre as lutas, continuar com as suas habilidades anteriormente conquistas no espaço da sub-classe (todo personagem pode ter duas classes diferentes ativas) e criar personagens poderosos capazes de usar as habilidades de sua nova classe e mantendo acesso às da classe anterior. Mesmo que lhe falte árvores de habilidades gigantescas, trocá-las por um sistema muito mais profundo e customizável que não lhe enche de habilidades inúteis é muito melhor.
Esse tipo de possibilidade de customização costuma vir sacrificando o desenvolvimento dos personagens na história e, se de fato esses mercenários não têm qualquer papel nela, a presença dos personagens fixos da história (Kyrie e Reiner em especial) e o quão bem escritos eles são em praticamente todos os diálogos fazem com que tudo valha a pena e te permita tirar o máximo de um sistema de combate cheio de profundidade apesar da superficial semelhança com tantos outros e uma história incrível.
Por fim, algo que não pode ser ignorado é o quão bonito o jogo é. A decisão por sprites 2D desenhados à mão e de alta definição costuma ter bons resultados e aqui não é diferente. Os personagens parecem surpreendentemente detalhados e os mapas apresentam uma boa variedade de cenários e situações mantendo-os sempre muito agradáveis aos olhos. A trilha sonora é o que se espera quando se pensa em RPGs com ambientação medieval e é bem agradável aos ouvidos, se nada muito especial.
Assim, considerando tudo o que se poderia esperar de negativo para Fell Seal: Arbiter’s Mark, o seu sucesso estrondoso é mais um sinal do quanto uma equipe talentosa e inspirada por jogos atemporais e fantásticos é capaz de fazer um jogo incrível. A 6 Eyes Studio conseguir entregar não só um ótimo jogo, mas talvez o melhor RPG Tático já criado por estúdio independente é algo que merece ser aplaudido de pé e faz deste um jogo que precisa ser jogado por todos os fãs do gênero.
Jogo analisado no PS4 padrão com cópia digital fornecido pela 1C Publishing.
Veredito
Fell Seal: Arbiter’s Mark é, surpreendentemente, um dos melhores RPGs Táticos lançados nessa década. Claramente desenvolvido e projetado com muito cuidado e falando diretamente aos fãs de longa data do gênero e dos seus clássicos, a história tocante, personagens muito bem desenvolvidos e gameplay afinadíssimo tornam-o um jogo fantástico e fácil de se recomendar.
Fell Seal: Arbiter’s Mark is, surprisingly, one of the best Tactical RPGs released in this decade. Clearly developed and projected with a lot of care and speaking directly to long time fans of the genre and its classics, the touching story, very well-developed characters and fine-tuned gameplay make it a fantastic game and an easy recommendation.
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