Mudar o rumo de uma franquia nunca é fácil. Mudar o rumo de uma franquia justamente quando ela atinge o pico de sua popularidade, abandonar o seu protagonista tão amado e mudar o estilo de gameplay dela é um desafio monumental que praticamente ninguém tentaria.
Mas a ousadia e coragem de correr risco de alguns desenvolvedores é o que os separa de estúdios mais comuns. É impossível negar que o Ryu Ga Gotoku Studio tem se mostrado, especialmente durante essa última geração, um dos mais corajosos e talentosos estúdios não só do Japão, mas da indústria como um todo.
Então quando foi confirmado que a então piada de 1° de abril de que o próximo jogo da série Yakuza seria, de fato, um RPG por turnos, era complicado prever o resultado ou sequer imaginar como Yakuza sairia de uma reinvenção moderna de um beat ‘em up para algo mais próximo de Dragon Quest. Tudo isso enquanto seguia em frente sem Kazuma Kiryu, um dos protagonistas mais marcantes dos videogames.
Essas mudanças, no entanto, eram necessárias. Em um certo ponto, acompanhar a franquia se tornou uma tarefa árdua e, mesmo com todos os esforços da desenvolvedora de consolidar toda a história do Kiryu-chan em uma só plataforma (Yakuza 0, Kiwami 1 e 2, Yakuza Remastered Collection e Yakuza 6, pra ser mais preciso), ainda eram 7 longos jogos para se poder entender os eventos ali contados.
Se você acompanha o nosso podcast ou leu a nossa análise de Yakuza Collection Remastered então deve saber que eu sou um grande fã da franquia e sempre tive Kazuma como meu personagem favorito. Mas a decisão de encerrar o arco dele e seguir em frente com um novo protagonista abriu uma série de caminhos que o novo jogo da franquia, Yakuza: Like a Dragon, abraça com uma força inesperada, se jogando de olhos fechados nesse novo mar de oportunidades.
Like a Dragon te coloca no no papel do novo protagonista, Ichiban Kasuga. Ichi é um jovem membro de uma pequena família chamada Arakawa Family do Tojo Clan que, após um dos principais membros da família cometer um assassinato, passa 18 anos na cadeia no lugar do verdadeiro culpado para proteger aqueles que ele ama e admira.
Mas o mundo para o qual Ichi retorna é completamente diferente daquele em que ele vivia. Não só ele precisa aprender a lidar com as mudanças normais do mundo desde que ele foi preso na virada do milênio, mas a própria Yakuza da qual Ichiban foi expulso é completamente diferente daquela que ele conhecia, com a Arakawa Family agora fazendo parte dos seus arqui-rivais, a Omi Alliance.
Esse espaço de tempo em que Ichiban fica preso é necessário para alguns dos principais pontos narrativos que Like a Dragon explora. Não só é um claro espelho para os eventos da jornada de Kiryu, ajudando a contrapor ambos os personagens, mas se encaixa perfeitamente entre os eventos dos outros 7 jogos, permitindo que fãs reconheçam os eventos que levaram o conflito entre o Tojo Clan e a Omi Alliance a chegar ao ponto em que estão (com Kasuga sequer podendo pisar em Kamurocho no começo do jogo) e os novatos aprendam sobre eles do ponto de vista do Ichi.
A melhor parte da jornada do Ichi, no entanto, não são os eventos atrelados à ex-família dele. Enquanto essa é a motivação do protagonista, é só parte de quem ele é. Like a Dragon foca muito mais na jornada de Ichi para reencontrar o seu lugar no mundo, lidando com a necessidade de se readaptar à vida fora da cadeia sem perder aquilo que o torna quem ele é.
E essa jornada leva Ichiban à Yokohama, a principal cidade do jogo, onde ele forma fortes laços de amizade com um grupo que é, francamente, composto de perdedores. Vivendo inicialmente como um morador de rua, ele faz amizade com um dos moradores de um dos parques da cidade e começa a fazer todo tipo de trabalho pela cidade para conseguir um teto para os dois.
Ao longo do caminho, ele se junta a um ex-policial que foi demitido ao tentar ajudar Ichiban a encontrar com Arakawa, membros da máfia local e até mesmo a dona de um hostess bar. Todos os personagens adicionam bastante à dinâmica do grupo e a narrativa do protagonista, ajudando a contrapor a personalidade sonhadora de Ichi e a sua visão de mundo com algo muito mais real.
Ichi é um ex-Yakuza condenado por um crime que ele não cometeu mas que, no fundo, acredita que o destino dele é ser um herói. Um garoto nascido em uma casa de banho (que funcionava também como bordel), onde ele foi criado pelas moças que ali trabalhavam, sendo adotado pelo dono do estabelecimento. Ele é bobo, meio burro e brincalhão, um violento contraste com Kiryu, mas é tão idealista e corajoso quanto, fazendo por merecer o manto que lhe foi passado.
Ele é o garoto que cresceu jogando Dragon Quest e vê todos os seus inimigos, sejam eles executivos cansados procurando uma briga ou punks de rua tentando ganhar uma grana em cima de você, como personagens míticos do jogo. E, acima de tudo, Ichi é o protagonista decidido que move os eventos da história, tentando descobrir, afinal, o que é que aconteceu com o seu ex-chefe para que ele traísse o Tojo Clan.
Outro elemento que sempre foi importante na série foi a sua ambientação e a decisão de deixar Kamurocho em favor de Yokohama ajuda bastante a enriquecer a jornada de Ichiban. Colocar o protagonista em uma nova cidade que ele não conhece faz com que cada novo local, novo minigame e nova atividade secundária realmente passe a sensação de ser uma descoberta e uma nova experiência vivida por Ichi.
Yokohama também é bem vívida, a beira do rio e um local bem diferente de Kamurocho, o que ajuda a evitar as comparações (que são inevitáveis) que poderiam existir se Ichiban estivesse explorando sempre os mesmos lugares que Kiryu. Ela possui uma energia bem diferente dos locais que já foram explorados antes, trazendo uma nova perspectiva para o jogo.
Isso se reflete também no submundo criminoso que Ichiban precisa navegar. A dinâmica entre as gangues na cidade é bem diferente, com a máfia chinesa e coreana também possuindo papel de destaque em uma espécie de “guerra fria” com a yakuza da região. Os diálogos com os personagens espalhados pelo mundo e os membros da sua equipe ajudam bastante a entender o contexto e a história por trás da cidade, sendo um outro rico elemento presente.
Um elemento importante trazido por Yakuza: Like a Dragon é que, pela primeira vez em décadas (salvo por Judgement), a série volta a contar com dublagem em inglês. A Sega não poupou esforços para tirar a visão negativa que os fãs da série têm, com um elenco talentosíssimo entregando suas vozes ao título. O resultado? Uma atuação vocal primorosa que não deixa nada devendo as vozes japonesas. É claro, você pode escolher como quer jogar, então os tradicionalistas podem continuar ouvindo a sempre espetacular dublagem original do título.
E a jornada de Ichiban, no geral, é talvez até mais recompensadora do que as dezenas de horas passadas com Kiryu, algo que eu não digo de forma leve. Mesmo com tudo de ruim que ele precisa superar, a história de Ichi é uma história de superação. De esperança. Algo que, em meio ao ano que 2020 foi, é ainda mais necessário do que nunca.
É a história de um homem que mesmo recebendo tudo de pior que o mundo poderia lhe dar, encontra uma forma de ser feliz e seguir em frente, se mantendo fiel à sua essência ao que o faz feliz. É uma história sobre persistir, mesmo com a vida literalmente te jogando no lixo, e eventualmente encontrar o seu caminho e o seu lugar no mundo. E é claro, é a história de um fã de Dragon Quest vivendo a velha fantasia de garoto de imaginar todo mundo na rua fazendo cosplay da sua série favorita.
Como Ichi se vê como o herói de um “Dragon Quest da vida real”, isso serve como pano de fundo para que o combate deixe de lado os elementos de beat ‘em up tradicionais da franquia e adote um sistema de combate por turnos bem tradicional de um JRPG. E é aqui que Yakuza: LAD talvez dê o seu único passo em falso, ainda que ele seja apenas um leve tropeço.
Cada personagem age em seu turno e pode escolher entre quatro tipos distintos de ação: Special, Etc., Guard e Attack. Os próprios nomes já indicam bastante o que cada uma faz, com Special sendo destinada a ataques especiais que o jogador vai desbloqueando ao subir de nível de classe e Etc. sendo destinado ao uso de itens.
Cada inimigo possui um certo grupo de resistências e fraquezas, sendo importante observar isso para dar mais efetividade aos seus ataques. Além disso estão presentes os tradicionais status especiais, como poison, mute e bleeding, que são bem explicativos e podem ser resolvidos com itens ou habilidades especiais de cura.
Talvez o toque mais “Yakuza” que o combate possui vem da sua ambientação. Os combates se passam nas ruas, os inimigos são membros de gangue e pessoas comuns (ainda que com a versão “modificada” do Ichi) e o combate é bem responsivo em relação a isso. Decidiu atacar um inimigo mas precisa passar na frente do outro? Sua ação será interceptada. O inimigo está próximo de um cone ou taco de baseball? Seu personagem provavelmente pegará o item e usará no seu ataque.
Um outro elemento importante no combate vem nos Jobs que os personagens assumem. Como Ichiban sai da prisão desempregado e sem-teto, ele visita uma agência de empregos para conseguir um trabalho e, ao desbloquear esse sistema, ele pode ir assumindo novas funções desde que atenda aos requisitos fundamentais de cada um deles.
Cada Job tem suas especificações, com requisitos mínimos, habilidades de classe e bônus de status vinculados a eles. Existem algumas poucas habilidades que podem ser usadas indiscriminadamente pelo personagem, mas na maioria elas estão atreladas àquele Job em específico (e cada personagem possui um Job “principal” com os quais eles começam).
Talvez a maior falha desse sistema seja do balanceamento fraco da quantidade de XP que você ganha e que acaba fazendo que subir de nível num Job seja um trabalho árduo e muitas vezes desnecessário, já que as funções principais de cada personagem atendem bem ao que a campanha principal exige do jogador.
É bom ficar de olho pois, apesar do jogo ser relativamente tranquilo durante quase toda a história, ele conta com alguns aumentos repentinos de dificuldade que exigem um pouco mais de estratégia, mas nada inacessível para os jogadores que não tenham experiência com JRPGs mas queiram jogar Yakuza: Like a Dragon (ainda que fãs do gênero talvez não encontrem a profundidade e personalização que se vê em outros títulos).
Isso faz com que o combate seja divertido e mantenha o sabor de Yakuza, ainda que não seja perfeito. A quantidade de opções é restrita, com a progressão do jogo sendo bem engessada e não havendo muita maleabilidade. Fora isso, o jogo tem encontros aleatórios demais que, muitas vezes, te fazem apelar para quick travel para evitar encontrar com inimigos, ao invés de explorar a cidade tranquilamente.
Não quer dizer que o combate seja ruim nem nada, pelo contrário. Ele é muito bem executado e faz o “feijão com arroz” de forma extremamente satisfatória. E o combate, assim como o restante do jogo, consegue manter o bom humor e leveza que o jogo como um todo possui, sendo sempre interessante ver como os personagens que caminham pelo mundo vão se “transformar” na visão do Kasuga.
Nada disso tira a verdadeira diversão de Yakuza: Like a Dragon que é a sua narrativa. LAD entrega uma das melhores histórias de 2020 e uma que não só é muito importante pro momento vivido pelo mundo, mas uma que deverá ecoar por anos e anos. Se essa reinvenção vai ser definitiva ou se teremos um outro rumo para a franquia no próximo jogo, só o tempo dirá. Mas a verdade é que, de uma piada de primeiro de abril, nasceu um dos melhores jogos dessa geração.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela SEGA.
Veredito
Graças ao imenso talento e dedicação da equipe liderada por Toshihiro Nagoshi, não só Yakuza: Like a Dragon consegue manter o legado da franquia intacto, mas o evolui e entrega, de alguma maneira, o melhor jogo e a melhor história que ela já teve. Se Like a Dragon é um exemplo do que vem por aí, o futuro é ainda mais brilhante.
Thanks to the immense talent and dedication of the team led by Toshihiro Nagoshi, not only Yakuza: Like a Dragon manages to keep the franchise’s legacy intact, but it evolves and somehow delivers the best game and the best story it has ever had. If Like a Dragon is an example of what lies ahead, the future is even brighter.
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