Jogos fortemente baseados em uma narrativa rizomática já são uma realidade há muito tempo, e a explosão de popularidade advinda das produções da Telltale e da Quantic Dream são só parte do fenômeno mais recente do gênero. Ao longo desta última década, várias produções instigantes tem buscando apresentar inovações e novas perspectivas para se contar histórias baseadas na decisão do jogador, algumas mais significativas para o desenvolvimento da narrativa do que outras, e Where The Heart Leads nos traz uma perspectiva muito própria de como se envolver em uma trama singela, muito pessoal e, exatamente por isso, tão imersiva e comovente.
Na trama, assumimos o papel de Whit, um pai de família que nos é apresentado já na casa dos 40, 45 anos de idade, com família constituída, buscando salvar o fiel cão da família de um estranho e enorme buraco que se forma em seu quintal durante uma grande tempestade. No processo, acaba caindo profundamente não só numa bizarra e improvável cratera, como também em suas mais íntimas memórias. É assim que começamos a jornada de conhecer e reconhecer algumas das passagens mais importantes da vida desse sujeito comum, bem como suas relações com pessoas próximas, como seu irmão, seus pais e, mais tarde, esposa e filhos, além de outros tantos tipos que fizeram parte dessa trajetória.
Como um jogo estritamente dedicado a recontar a história de uma vida, somos envolvidos em uma profusão de diálogos e escolhas que são, ao mesmo tempo, profundos e banais, corriqueiros e determinantes para o futuro de todos os envolvidos e além. Where The Heart Leads apresenta algumas das escolhas mais importantes dentre tantos jogos que se prestam a estruturas ramificadas, mesmo que estejamos vivendo passagens do passado e que já saibamos, ao menos em parte, onde estes personagens vão parar. Ainda que tenhamos ali uma ou outra escolha mais contextual, grande parte delas molda o que vem a seguir de formas que pouco podemos prever.
Interessante notar que não se trata de uma abordagem clássica onde o protagonista é sempre o herói em situações extremas, e portanto não temos aquelas escolhas grandiosas que definem quem salvar da morte iminente, o que destruir, ou qualquer escolha que mude o destino do universo. Não se trata de The Walking Dead, da Telltale, ou outros jogos com funções similares, como The Witcher III ou Dragon Age Inquisition. Whit é um cara como eu ou você, e seus problemas vão do entendimento dae dramas e segredos de seu irmão à forma como escolhemos nos vestir para ganhar um dinheirinho e pagar algumas contas atrasadas. Por isso mesmo, suas opções passam longe da moralidade maniqueísta do bem contra o mal de produções de escala épica. Por vezes, você pode até escolher ser frio e cruel, ou ser cuidadoso e amoroso, mas na maioria do tempo, essas escolhas passam muito mais por um entendimento pessoal da vida do que o raso certo ou errado.
Isso não significa, porém, que o escopo mais intimista é menos interessante ou imersivo para o jogador. Talvez por se tratar de uma pessoa que poderia ser qualquer um de nós essas opções e decisões pareçam tão mais significativas. O que pode afastar novatos no gênero – ou até mesmo aqueles mais experientes e que gostam de narrativas interativas assim – são algumas passagens extremamente alongadas e diálogos cansativos, sobretudo porque não há a opção da localização para o português brasileiro. Há momentos onde o jogo parece se desprender um pouco do ritmo que apresentou nas duas primeiras horas da campanha e se estica em demaseio.
Não fosse a curiosidade que gera para que entendamos o que está acontecendo e quais as nuances de cada relação, esse nível de detalhismo poderia ser um problema grave da narrativa. Ou seja, a força de um roteiro extremamente sensível e minucioso chega a um tênue limite entre a comoção e o completo abandono por parte de quem está jogando. Dito isso, importante destacar que Where The Heart Leads não é um game que vai agradar a todos, inclusive aqueles que já se acostumaram a graphic novels e outras aventuras similares. O jogo é relativamente longo, cheio e diálogos bem extensos, e pode cansar os desavisados. Eu mesmo me vi passando mais tempo do que imaginava para aproveita-lo, jogando em sessões mais curtas que o habitual para evitar ficar entediado.
O espaço cênico consegue, por outro lado, oferecer uma diversidade interessante. Se em algumas passagens estamos em locais fechados e sem muita área para movimentação, outros são verdadeiros corredores lineares com poucas opções de locomoção. Contudo, os trechos mais densos do jogo se passam em espaços maiores e mais abertos, como uma fazenda ou uma fração da cidade, onde encontramos pessoas e realizamos algumas missões, por assim dizer, com um pouco mais de liberdade. Como Whit, na maioria do tempo, podemos caminhar livremente, interagir com objetos e documentos, realizar alguma atividade mais pontual, visitar pontos de interesse e, claro, conversar com NPCs.
Podemos ainda acessar um inventário com documentos coletados, como cartas, bilhetes, cartazes e outras lembranças coletadas, algumas automáticas como parte da trama principal, outras opcionais e relativamente escondidas pelo ambiente. Essa relação com o mundo não é das mais complexas, e na maioria do tempo nos movimentamos em um ponto de vista isométrico variável, por assim dizer. Em certos momentos, o jogo se parece bastante com o aclamado Disco Elysium no que tange esse deslocamento pelo mundo, ainda que o estilo seja muito diferente na prática. A câmera tem também um certo nível de controle, mas muito mais limitado do que estamos acostumados.
Confesso que algumas amarras no controle de ambiente me pareceram estranhas. Desde esta câmera que em alguns recortes permitem uma mudança de ângulo de algo em torno de 10, 20 graus (e não a rotação completa em 360 graus) até o zoom in e o zoom out que nos limita a três pontos somente. Esse posicionamento travado evita, com razão, que escolhamos uma perspectiva que quebre o jogo, mas ao mesmo tempo, pode irritar em vários momentos onde não há uma boa visão do que está acontecendo, ou até quando queremos um enquadramento mais agradável. Tirar algumas boas fotos, como as que acompanham esse texto, é quase que condicionado ao que o jogo decide mais do que como nos posicionamos.
Aliás, algumas belas paisagens aqui evidenciam um trabalho artístico surpreendente. Se em um primeiro olhar a estética flerta com um low poly comum, não demora para que percebamos um trabalho minucioso quanto a alguns detalhes e composições. Se os modelos humanos não chegam a se destacar, e algumas texturas parecem se repetir demais, a construção do universo se mostra esteticamente agradável como uma pintura impressionista. Há sim algumas limitações técnicas, que se explicitam em um sistema de colisão bastante simplório, com a vegetação se atravessando, por exemplo, ou com o personagem enroscando em qualquer quina mal resolvida, mas o saldo é bastante positivo.
A favor da produção, temos uma paleta de cores muito bem articulada, ambientes ricos e diversos, contrastes e iluminação que conseguem fluir sutilmente entre o corriqueiro e o estado onírico. Por outro lado, o aspecto sonoro tem limitações mais severas. Se a música principal consegue ser quase hipnótica nas primeiras horas, pode acabar se tornando enfadonha com o avançar da campanha. A transição para outras canções que tematizam certos pontos do mapa é pouco delicada e se denuncia, quebrando a imersão. Sem os diálogos falados – seria um trabalho hercúleo dada a quantidade de falas e personagens – não temos um trabalho de voz, e mesmo ruídos e efeitos sonoros são econômicos e um tanto quanto generalistas demais.
Como um todo, o aspecto estético da produção tem lá seus engasgos técnicos, mas nada que pareça um problema mais grave. Mesmo quando a posição da câmera se distancia, a interface parece bem adaptada, e as caixas de diálogo, por mais caóticas que possam parecer, funcionam bem, sendo possível inclusive customiza-las em tamanho para maior conforto. No mais, o game é bastante minimalista, basicamente sem qualquer elemento de HUD, com o destaque para um ou outro ponto de interesse mais próximo, e sem muitas opções do que ter em mãos e do que fazer com elas. Se você coleta materiais de construção, por exemplo, não vai precisar se preocupar em testá-los em qualquer ponto, já que se interagirmos com onde eles serão usados, a utilização é automática.
Se considerarmos ao que se propõe, Where The Heart Leads consegue ser ousado e contido ao mesmo tempo. Ainda que flerte com alguns elementos imateriais, e lide com memórias, traumas e relacionamentos, é tão mundano e corriqueiro como pouco se vê seja nos games, seja em qualquer outra produção cultural. Longe dos grandes eventos heróicos, o jogo consegue ser cativante em seu microcosmo, ainda que passe do ponto, em se tratando de se alongar demais, em alguns trechos. Se ritmo é um aspecto importante quando se desenvolve narrativas como esta, a estrutura do roteiro acaba se perdendo de vez em quando, o que compromete o envolvimento, sobretudo quando se pretende passar três, quatro horas seguidas imerso naquele mundo. Com uma campanha que pode atingir até as 20 horas, há que se pesar realmente o quão interessante é esse formato para cada perfil de jogador.
A vida real é feita de escolhas, a grande maioria delas trivial, cujas consequências são difíceis de prever ou sequer de se considerar. Where The Heart Leads sabe disso e busca representar, dentro de um recorte bastante delimitado, parafraseando Nelson Rodrigues, a vida como ela é. É possível que você espere de um jogo o exato oposto, com aventuras fantásticas, mundos inimagináveis, ação alucinante e histórias de grande escala e, se for este o caso, certamente deverá passar longe desse game, e tudo bem. Mas se busca algo em escala menor, se gosta de um texto bastante afiado e de longos diálogos com algumas boas escolhas a serem feitas, pode ser que a história de Whit e sua família lhe seja tão comovente e encantadora como se propõe a ser.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Armature Studio.
Veredito
Where The Heart Leads oferece uma trama tão singela quanto cativante, de escala intimista, com muitos diálogos e algumas escolhas bastante significativas a serem feitas pelo jogador. Com um estilo artístico instigante e mecânicas bastante simplificadas, deve agradar quem se interessa por experiências narrativas interativas, mas aqueles que buscam ação e jogabilidade rebuscada devem passar bem longe do título.
Where The Heart Leads offers a plot as simple as captivating, with an intimate scale, lots of dialogue and some very significant choices to be made by the player. With an intriguing artistic style and greatly simplified mechanics, it should please those interested in interactive narrative experiences, but those looking for action and a far-fetched gameplay should steer clear of this game.
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