Poucas criaturas sobrenaturais são tão populares na cultura pop como os lobisomens. Ainda que normalmente sejam o retrato de um lado selvagem e violento de sua contraparte humana e civilizada, ora esses seres são mostrados como animais descontrolados e vilanescos, ora como poderosas forças da natureza de reação e equilíbrio. Werewolf: The Apocalypse – Earthblood (baseado em um consagrado jogo de RPG Lobisomem: O Apocalipse publicado no EUA pela White Wolf e no Brasil pela Devir) nos traz uma versão moderna dessa besta como protagonista, aqui identificado como um Garou, em meio a uma guerra espiritual que envolve clã, corporações malignas e um drama familiar.
Na trama, somos apresentados a Cahal, brutamontes que faz parte de um Caen, uma espécie de matilha para usar termos desse universo, mas acaba se afastando do grupo por motivos que prefiro não entregar aqui. Assim, acaba se distanciando também de sua filha e seus companheiros por longos cinco anos até um evento fazer com que todos cruzem seus caminhos novamente e aí sim somos apresentados a um universo bastante rico e entendemos melhor qual o background de tudo isso e quais são as motivações que vão movimentar a narrativa até o fim das cerca de 12 a 14 horas da campanha.
Entendemos que há toda uma questão mística envolvida: enquanto os mocinhos estão alinhados com Gaia, um espírito de paz e de equilíbrio, os vilões servem a Wyrm, que parece querer exatamente o contrário. Descobre-se então uma grande conspiração que serve a essa entidade corrompida e uma corporação chamada Endron, cujas atividades são vastas, incluindo exploração mineral e pesquisas farmacêuticas, está no centro de tudo isso. A coisa se torna ainda mais pessoal durante a primeira metade da aventura, tornando a missão de desmantelar os planos da empresa algo ainda mais pessoal.
A história do jogo é sem dúvidas um tanto quanto previsível, ainda que tome algumas liberdades bastante corajosas, mas se mostra um ótimo guia para nos levar a vários cenários, que passam por florestas, prisões, desertos e complexos industriais. Os personagens são caricatos e cumprem papeis protocolares e arquetípicos, como o herói valente, mas falho; o líder sábio e misterioso; a filha rebelde; os companheiros que desconfiam de um membro desgarrado; o CEO tão genial quanto cruel; e por aí vai. Os clichês não são um problema em si, já que a proposta de Werewolf: The Apocalypse – Earthblood é exatamente ofertar uma boa aventura com doses cavalares de ação e violência estilizada. Mas há formas boas de se fazer isso e outras, bem, nem tanto.
O primeiro grande problema do jogo é que o andamento do roteiro é meio descompassado. Há muitas ideias que são melhores do que sua execução, e a forma como essa história é contada é um dos pontos baixos disso. Praticamente todas as passagens que se aprofundam neste universo se dão por meio de diálogos longos e expositivos, exageradamente didáticos e que poucas vezes parece influenciar no jogo em si. Há ainda detalhes contados em documentos encontrados por todo o cenário e, muito de vez em quando, uma cut-scene mais empolgante. Todavia, no conjunto da obra, a forma é maçante e deixa tudo o que é de mais profundo no jogo algo desinteressante. O ritmo acaba quebrado, com alguns trechos interessantes perdidos e pouco explorados e outros que demoram muito mais do que deveriam. É uma cadência confusa da trama.
Entenda, diálogos longos (inclusive cheios de opções de expansão) são bastante comuns, sobretudo em jogos de maior escopo, como RPGs e, como este é baseado em uma aventura tradicional de mesa, nada mais óbvio que ter um pano de fundo denso. Os diálogos, inclusive, são muito semelhantes ao que vemos em Dragon Age: Inquisition, para usar um exemplo mais recente. Mas perceba: enquanto um é um RPG enorme, que passa da centena de horas, outro é um jogo de ação, com alguns elementos de furtividade e outros de hack ‘n slash, e as coisas parecem não estar tão coerentes assim com gênero e dinâmica. Não ajuda o fato de serem conversas mais contextuais, e, exceto por algumas poucas escolhas que mudam tudo (o trecho final é particularmente importante para a escolha do final desejado), não fazem tanta diferença assim.
Para além desse aspecto, em seus momentos de “mão-na-massa” o game é bastante esquemático: com missões na maioria da vezes de incursão – invasão é o que mais vamos fazer – o jogador deverá alternar entre a abordagem stealth e o quebra-pau visceral. No primeiro, estaremos nas formas humana (Homid) ou de lobo (Lupus), onde basicamente se entra em uma nova sala, buscando-se eliminar inimigos comuns sem ser visto e desativar sistemas de segurança, como portas de onde vem reforços e, caso encontre um computador que gerencia o sistema de segurança, desabilitar câmeras e torretas, até que não sobre mais ninguém ou, ao menos, até chegar até a porta seguinte sem ser notado. É um sistema funcional, já que os cenários são convenientemente cheios de barreiras e tapumes, bem como passagens de ar por onde podemos circular na forma animal, mas um tanto quanto cansativo e, depois de um tempo, meio repetitivo.
Caso seja flagrado, ou prefira a ação direta, basta o acionar de um botão para se transformar na forma híbrida, chamada aqui de Crinos, que é o estado de lobisomem de fato. Aí a violência é generalizada, no bom e velho esmaga-botões, com direto a ataque rápido, ataque forte, ataque com salto e esquiva/dash. Há ainda duas posturas padrão, que é a ágil, onde a movimentação é mais fluida, e a postura de força, onde ficamos sobre as patas traseiras andando lentamente, mas com golpes mais contundentes. Não será diferente de muita coisa que você certamente já jogou, mas confesso que é um sistema meio confuso e menos preciso do que eu gostaria.
Talvez meu maior questionamento seja por conta da função que mais gosto nesse tipo de jogo: a esquiva. Aqui ela é confusa, quase sempre imprecisa, pouco efetiva quando se enfrenta muitos inimigos, e quando conjugada com uma câmera bastante problemática, acaba mais atrapalhando do que ajudando em um combate limpo. Parte disso é, óbvio, por estarmos controlando uma besta enfurecida e não um hábil combatente de artes marciais, mas ainda assim, sair no braço tende a se tornar uma grande confusão na tela, o que não é necessariamente ruim. Há ainda uma inevitável mecânica de fúria que, quando se enche a barra, pode-se entrar em estado de maior intensidade, chamado de Frenesi, com mais força e menos vulnerabilidade. Quanto mais se for agressivo, melhor para não só subir essa barra rapidamente como também para poder ter um respiro para se curar durante a batalha.
Também tenho ressalvas com um modelo onde inimigos mais fortes não sentem impacto de ataques poderosos. Sabe quando você bate em alguém no jogo, está tirando HP dele, mas ele continua imóvel, também atacando, sem sentir qualquer tipo de efeito prático? Imagine quando você é um monstro de quase 3 metros de altura e pessoas normais não sentem o impacto de seus ataques só porque estão usando um colete de kevlar, por exemplo. Então é comum se ver batendo em inimigos visivelmente menores ou mais leves que você e parecer estar batendo em uma parede, até que ele consiga te atingir e te jogar para trás. O mesmo vale para inimigos da mesma altura ou de equilíbrio de poder. Quando você bate, ele está imóvel, mas quando ele ataca com a mesma intensidade, seu combo é interrompido e você cai para trás. Chega a ser bizarro. Você se acostuma, mas continua sendo bizarro.
Outro padrão presente aqui é o sistema de melhoria de habilidades a partir de uma energia espiritual que se pode coletar ao alcançar alguns objetivos primários e secundários e também por pontos destacados no mapa. É uma árvore simples, com habilidades extras espalhadas, que ajudam bastante e potencializam o protagonista. No final, se o jogador for bastante minucioso, conseguirá ter grande parte dessas habilidades liberadas. Aconselho priorizar a que permite que, em forma de lobo, se encontre esses pontos a distância para coletá-los com mais facilidade. Além de ajudar bastante para a avanço, ainda facilita o troféu mais raro antes da platina, o de exatamente localizar todos esses 100 pontos.
Outro problema nessa transição de formas é a modo automático como se dá vários movimentos. Não há, por exemplo, um comando para que possamos andar agachados, na maciota, ou quando podemos nos levantar e andar normalmente. O jogo decide isso pelo jogador, já adiantando o que vem pela frente. Ou seja, se entramos em um lugar e o personagem se abaixa automaticamente, já sabemos que entramos em uma área de furtividade. Isso piora quando o jogo adianta, logo no começo, que há espaços onde podemos andar como humanos sem sermos notados, como se estivéssemos disfarçados. Mas isso só será usado, sem sobreaviso, em mais uma passagem, e de forma sem qualquer preparação.
Essa automatização de postura, a qual também não gostei em jogos como The Order: 1886 (curiosamente outro que traz a temática dos lobisomens) nos tira um pouco da surpresa, do controle da situação, da opção de fracassarmos por distração. Basicamente, é um spoiler do que tem (ou não) naquela área, e particularmente não gosto de que o jogo decida certas coisas por mim. O mesmo vale para algumas funções extras. Por exemplo, não é possível usar a besta (desta vez, a arma) quando o jogo não quer que seja usada. isso traz algumas limitações bobas. Por exemplo, eu abro uma porta e já vejo, lá dentro, um inimigo desavisado. Não posso atirar de onde estou, ainda antes de atravessar a porta. Preciso entrar no “modo furtivo” passando pelo ponto de acesso para estar habilitado a isso. Em certo ponto, é frustrante.
O jogo ainda tem uma outra função que já tem se mostrado um padrão no seguimento: um modo de escuta aprimorado onde se pode sentir os inimigos e outros pontos de interesse. Você já viu isso em Batman Arkham ou The Last of Us, e em tantos outros lugares. Com isso, inimigos próximos, através de paredes ou barreiras, ficam destacados, e fica fácil de prever seus movimentos. Claro, ajuda muito, mas as vezes até demais. De novo, é um artifício que funciona, mas nem sempre é justo. Chamado em Werewolf: The Apocalypse – Earthblood de Penumbra, ajuda a identificar inclusive circuitos elétricos, mostrando as ligações (que levam, por exemplo, aos dispositivos que os desativam). Útil, bem útil.
Mas todos esses artifícios podem ser frustrantes pela inteligência artificial do jogo, que é bastante instável. Há momentos onde você claramente passou na frente de alguém como lobo ou como humano, ele até chega a perceber algo estranho, mas se você for rápido o suficiente, ele ignora isso completamente. Outras, você está claramente bem escondido, mas um cara do outro lado da sala te vê mesmo estando fora do campo de visão dele, e toda a abordagem planejada vai pelo ralo. Outro problema grave é que há alarmes que são acionados para chamar reforços, mas eles são soados só quando você se revela de vez. Isso significa que quando soldados encontram pilhas de corpos pelo caminho, eles começam a te procurar, mas sem acionar qualquer sistema de reforço. Basicamente, o problema não parece ser matar todo mundo, mas sim ser visto. Vai entender. Ah, e pode fazer a bagunça que for… na sala ao lado, ninguém ouve gritos ou alarmes, e você pode retomar o modo furtivo sem problemas.
Já no que tange o aspecto audiovisual, há também muitas nuances e contradições. Há momentos onde o jogo é lindo e digno das produções mais pomposas. Cenários são deslumbrantes, como as passagens pela floresta a noite ou pelo deserto escaldante, com paisagens dignas de belas fotos. Os modelos animalescos estão especialmente bem desenhados, e as criaturas lembram o design do filme Van Helsing (aquele com Hugh Jackman). O jogo tem ainda um belo desempenho, ainda que saiba como resolver isso sempre: em espaços abertos, não acontece muita coisa, há poucos objetos em movimento, e raramente humanos estão agindo como tal e normalmente ficam parados, como manequins. A bagunça com muito movimento e partículas sempre acontece em espaços bem fechados, facilitando muito o processamento para não gargalar. É possível notar efeitos de iluminação muito sofisticados na versão do Playstation 5, fruto do bem-vindo ray-tracing.
Contudo, olhares mais críticos logo vão perceber modelos humanos bem sintéticos, como vistos nos primeiros jogos da geração Playstation 3, com aqueles olhos esbugalhados e sem vida somados a expressões mecanizadas e movimentos corporais em loopings simplificados. Talvez isso seja um dos agravantes dos diálogos modorrentos citados lá no começo desse texto. Algumas texturas no chão ou nos limites dos cenários também são sofríveis e repetitivos, e o sistema de colisão é bem simplório. Esbarrar em pedras, árvores, paredes, bordas de precipícios ou cantos de uma sala parece ser a mesma coisa, o que fica ainda mais evidente nos poucos momentos onde a escalada é possível ou necessária. As finalizações cinematográficas, que deveriam ser um destaque incrível, são mal acabadas e raramente se vê direito o que está acontecendo, o que é muito frustrante. Sequer consegui um bom print desse momento para mostrar aqui na análise.
Por outro lado, a maioria das animações está bem agradável e a banda sonora está muito bem resolvida. Algumas vozes são um tanto quanto canastronas (não há dublagem em português, e a localização para o nosso idioma está somente em legendas, textos e menus), mas são coerentes com o projeto. Já a ambiência é mais sofisticada que o visual. No deserto, por exemplo, o som característico de cascavéis é bem amedrontador, e pena que elas não estejam lá de verdade. As músicas que se alternam entre as que criam um clima de mistério e as batidas mais pesadas para os momentos de ação não são aquelas que ficarão na memória por dias, mas garantem a sensação certa, e estão bem mixadas com os efeitos sonoros econômicos, mas certeiros.
Contudo, não posso negar que mesmo com todas essas restrições à narrativa, à jogabilidade e à estética de Werewolf: The Apocalypse – Earthblood, eu me diverti bastante com ele e estou jogando uma segunda vez – já estou no meio da campanha novamente – e quem sabe tentar novas escolhas, quiçá a platina, que não parece difícil. Algumas coisas acabam incomodando, como a câmera totalmente descontrolada fixando ou não os alvos, algumas automatizações desnecessárias, bem como os longos diálogos expositivos, mas no final das contas, é um jogo onde você é uma fera poderosa descendo a lenha em seguranças corporativos e outras criaturas bizarras. É o típico “mesmo mais-ou-menos, é legal demais”.
É uma produção que transparece um modelo AA, sem aqueles orçamentos absurdos das maiores produções, e um tanto quanto repetitivo, mas funciona, diverte, entretém, tem poucos problemas mais graves como bugs e glitches (considerando estar em período de lançamento), acaba antes de se tornar enjoativo e estabelece uma base sólida para construção de mundo que pode render uma franquia longeva (se assim a Cianade e o público desejarem) para quem sabe, com mais interesse e investimento, resolver ou minimizar estes “senões” citados. Tal como está, é uma recomendação moderada para fãs do gênero. Não se atenha muito à questão da furtividade, porque tirando um ou outro momento bem específico, de resto dá pra seguir de boa só na violência brutal. Games mais diretos e sinceros como este ainda tem seu espaço, desde que se mantenha a expectativa adequada para suas limitações.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Nacon.
Veredito
Werewolf: The Apocalypse – Earthblood é divertido quando relevamos algumas de suas limitações mais severas. É uma boa mistura entre a furtividade e ação hack n’ slash com um protagonista um tanto quanto unidimensional como em um bom filme de ação dos anos 1990, mas que ao mesmo tempo começa a construir um universo interessante e cheio de possibilidades.
Werewolf: The Apocalypse – Earthblood is fun when we ignore some of its most severe limitations. It’s a good mix between stealth and hack n ‘slash action with a somewhat one-dimensional protagonist as in a good action movie from the 90s, but that at the same time begins to build an interesting universe full of possibilities.
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