A alta fantasia, principalmente neste momento contemporâneo que emerge a partir da segunda metade do século XX depois do apogeu de Tolkien, encontrou suas bases para além das mesas de Dungeons and Dragons em uma infinidade de possibilidades que permearam a cultura pop com livros, histórias em quadrinhos, filmes, séries e, claro, games. A experiência analógica, se assim podemos chamar, jamais perdeu seu charme principalmente porque ela jamais foi emulada de verdade por outras mídias, e mesmo que nem sempre esteja no auge em popularidade, nunca deixou seus fiéis adeptos de lado. Ao contrário, se renovou, se atualizou e não se contentou em só reproduzir aquilo que já era excelente.
Warhammer: Age of Sigmar surgiu neste contexto recentemente em 2015, enquanto uma atualização do clássico Warhammer Fantasy Battle criado em 1983 e que completa, este ano, suas quarenta primaveras. A mais recente iteração não só aprimorou o sofisticado modelo de batalha campal com miniaturas, como trouxe para si muitas inovações que derivam, vejam só, dos jogos de estratégia em batalha real do mundo digital, incorporando desenvolvimento de personagens, humor e mecânicas menos convencionais. Ao dialogar diretamente com sua base de nicho, a franquia ganha camadas de retroalimentação, as mesmas que agora nos trazem para a mais recente investida deste universo que tem se tornado um grande conglomerado de conteúdos imersivos.
As adaptação anteriores para o mundo dos videogames deste segmento em específico Age of Sigmar tiveram recepção mista e parecem ter agradado menos que o tradicional tabuleiro, mas a marca ainda tem muito combustível para queimar. Para dar sequência ao ciclo, chega agora Warhammer Age of Sigmar: Realms of Ruin, game para a nova geração desenvolvido pela competente Frontier Developments, de sucessos recentes no substrato do gerenciamento de recursos, como por exemplo a duologia Jurassic Park Evolution. Ao contrário das entradas anteriores do estúdio, porém, aqui estamos lidando muito mais com pessoas do que com ambientes, e a passagem parece funcionar muito bem porque a escolha é focar em grupos fechados, destacamentos independentes, em uma aventura contida.
Como um típico jogo de estratégia em tempo real onde o jogador precisa controlar unidades e agrupamentos em busca do objetivo, aqui nos concentramos em uma aventura bastante nuclear que nos leva pela jornada de Sigrun of the Stormhost, um lorde pertencente aos Stormcast Eternals, raça privilegiada criada pelo próprio Sigmar (divindade que empresta o nome ao jogo) e composta por nobres guerreiros dotados de virtudes aristocráticas e habilidades em batalha baseadas no combate corpo a corpo e no uso moderado de magias antigas. Quando se vê em desvantagem em Ghur, o Reino das Feras, o herói, acompanhado por uma legião de soldados dedicados, precisará enfrentar perigos inimagináveis para dominar um arma ancestral, capaz de ajudá-lo a vencer seus inimigos e se tornar o conquistador desta terra sem esperança, trazendo finalmente paz e segurança para os pobres moradores de Harkanibus.
Ao contrário de outros jogos similares, porém, a aventura de Sigrun o levará a batalhas restritas a poucos corajosos guerreiros enfrentando hordas inimigas em cenários contidos. Ao invés de grandes descampados, os níveis da campanha são muito mais labirínticos e estreitos, cheios de corredores e poucas áreas abertas de confronto direto. Warhammer Age of Sigmar: Realms of Ruin se distancia do tom épico em favor de uma guerra mais íntima, onde cada homem importa e a diferença entre a vitória colossal e o desastre completo pode ser um único soldado bem posicionado. O gerenciamento, portanto, demanda planejamento e táticas bem pensadas, mas sem transbordar para algo pretensamente grandioso, pedante e megalomaníaco.
A jornada, desta forma, se estabelece em uma sequência linear de eventos onde a meta é, via de regra, avançar em campo inimigo e se apropriar de suas bases. Claro, mais do que expulsar o exército adversário, é necessário criar condições de manutenção da progressão, e por vezes o domínio do mapa é fundamental para evitar perder aquilo que se agregou por puro descuido de um acesso mal protegido. Ainda assim, o modelo é relativamente contido em mapas modestos e missões que duram, quando muito, trinta, quarenta minutos. Parece muito, pensando em uma estrutura básica linear pautada por fases sequenciais, mas é um tempo bastante curto para a média do gênero, o que pode ser uma ótima característica para quem prefere segmentar grandes arcos em segmentos menores.
Ao cruzar com outras facções bem distintas entre si – os Orruk Kruleboyz, os Nighthaunt e os Discípulos de Tzeentch – será necessário cumprir alguns objetivos, como libertar prisioneiros, dominar totens ou derrotar grupos rebeldes, tudo muito bem contextualizado por sequências de ação e cenas de corte que valorizam um estilo artístico que flui bem entre uma fantasia sombria permeada por criaturas mais grotescas, e uma experiência mais solar que resplandece cores e metal polido. A narrativa compreende que é o equilíbrio entre as trevas e a luz onde está seu lugar, e isso se esparrama também para o modelo de jogabilidade. Talvez esse aspecto mais colorido e que lembra, guardadas as devidas especificidades, Warcraft II e III, pode desagradar alguns entusiastas do tom tradicionalmente dark vista em obras baseadas em Warhammer, mas no geral há um cuidado muito bem dosado em não descaracterizar aquilo que já conhecemos.
O controle de destacamentos é essencial para uma estratégia vencedora. Você pode trabalhar com grupos com poucos indivíduos, bem como criar pacotes maiores para facilitar a movimentação. Uma vez decidido quem, é hora de apontar para onde, e os comandos se baseiam no clique do ponto final, como de costume. O enfrentamento é quase automatizado e pode se desencadear a partir do momento onde grupos adversários se encontram, algo que sem os devidos cuidados descamba e foge do controle rapidamente quando as fontes inimigas partem de mais de uma direção. Se a força pode estar nos números, permitir que seus bravos companheiros se espalhem pode ser um problema tão grande quanto entrar na zona de alcance de unidades à distância.
O maior problema de jogos do gênero em consoles, infelizmente, é um dos maiores percalços aqui também. Os controles são bastante desajeitados e claramente pensados para teclado e principalmente mouse, e diferente de outras soluções inovadoras, aqui tudo parece esquisito e impreciso. O simples ato de levar dois batalhões de um lado ao outro do mapa pode ser um verdadeiro martírio porque selecionar grupos dispersos é um trabalho hercúleo, algo que se resolve no PC com um simples comando se clicar e arrastar. Se uma unidade especial, por exemplo, se separa do conjunto por algum motivo alheio, como ter se posicionado em outro ponto para ataques distantes ou porque ficou preso em um resquício de batalha, pode ser que ele fique simplesmente desgarrado. Prestar atenção na disposição de seus recursos no mapa é crucial para que nenhum homem fique para trás sem querer.
Ainda assim, há inovações que devem ser celebradas e que favorecem o uso do DualSense para cuidar das unidades individualmente. O sistema aqui chamado DirectStep possibilita que possamos trabalhar com um microgenciamento de cada sujeitinho do nosso time, possibilitando que determinemos pequenas tarefas que podem ser significativas dentro do todo, principalmente quando o quebra pau está rolando e você precisa organizar ações coordenadas e reconfigurar o campo de batalha para ganhar vantagens úteis. Dá trabalho entender como fazer tudo isso fluir, o erro é uma ferramenta importante para o aprendizado, mas os resultados são recompensadores. Saber lidar com as individualidades é o caminho para o sucesso nos momentos mais difíceis.
A dinâmica de movimentação, porém, independe do sistema de controle e parece despropositado ao nos fazer seguir um backtracking para regeneração de saúde pós-batalha. Isso porque o jogo nos garante alguns postos que, quando dominados, se tornam hubs da nossa equipe e único local onde a barra de saúde dos soldados feridos pode se recuperar, o que significa que ao avançar e ganhar território, muitas vezes devemos percorrer todo o caminho de volta só para encher a vida desse povo todo no por vezes único posto avançado disponível antes de partir para o próximo embate. Além do tempo inútil de andar com um bando de gente para trás e de volta, ainda há o risco de se perder novamente o progresso, pois ao voltar, deixamos o ponto vencido vulnerável.
Podemos deixar um grupo menor cuidando dos espólios, mas se assim o fizermos, eles não terão suas vidas regeneradas ou, pior, podem sucumbir se os novos agressores estiverem em vantagem numérica. Por algumas vezes, me vi levando metade para regenerar, retornando com eles todos recarregados e levando a outra metade depois em um revezamento, mas o trabalho foi tão enfadonho que nas oportunidades seguintes preferi arriscar ficar com todos eles meio baleados do que perder minutos preciosos em uma ação insuportavelmente chata. Certas movimentações são programáveis, outras aprendemos a fazer com agilidade conforme avançamos, mas ainda sobram algumas bem tediosas.
Esse formato não significa, porém, que todo o espaço conquistado se torna só um cemitério de inimigos vencidos e destruição de estruturas inimigas. É possível construir instalações coerentes com o local, como bases mineradoras de algum recurso precioso. Estes pontos de interesse dependem da fase, e não há muitas escolhas a serem feitas, o que impede abordagens mais criativas e diferenciadas. Aqueles que buscam aqui um modelo customizável de se avançar terão dificuldade para entender que, as vezes, só precisamos fazer o que o jogo decidiu que deve ser feito. Nem mais, nem menos. É de se esperar um pouco mais de liberdade inclusive para se tomar decisões equivocadas, mas no final das contas, em Warhammer Age of Sigmar: Realms of Ruin, você faz o que precisa fazer. E só.
O modo secundário, que pode rapidamente se tornar o principal para alguns perfis de jogadores, traz alguns elementos mais livres para se promover o verdadeiro estrategista dentro de nós. Seja contra a IA, seja contra outras pessoas, jogar a Conquista no 1×1 ou no 2×2 pode rapidamente consumir madrugadas e mais madrugadas porque exige um pouco mais de sofisticação na abordagem. Enquanto na campanha, que aliás dura algo em torno de 20, 22 horas quando decidimos jogar na dificuldade padrão, o acesso às nossas bases pode ser ao menos antevisto com certa segurança, contra jogadores reais a coisa pode se complicar rapidamente porque os avanços são mais difíceis de se identificar antes do pior acontecer. Se considerarmos que é aqui onde o sistema de jogo brilha, a campanha acaba se tornando uma preparação de luxo pra diversão genuína. E se você for do tipo que gosta de criar mapas, a vida útil do jogo se multiplica ainda mais.
Se os cenários não são exatamente pomposos e volumosos, eles concentram um belo trabalho artístico que emula muito bem o visual da versão física de tabuleiro, sem que com isso pareça um jogo com brinquedos. As unidades, cuja cor pode ser customizada em níveis surpreendentes de detalhes, são detalhadas o suficiente para o ponto de vista superior afastado, mesmo que de perto possam parecer um tanto quanto genéricos. Os ciclos de animação também são limitados, quase como robozinhos repetindo os mesmos golpes sem parecer se preocupar com o que o adversário está fazendo, o que não chega a incomodar, mas inevitavelmente nos faz ficar mais distantes. Empatia com nossos exércitos é algo raro e mesmo os personagens destacados parecem só números no meio da confusão.
Durante as cenas que ilustram a passagem entre níveis, porém, a animação ganha outros contornos e a história, por texto e por fala, é muito bem contada. É verdade que diante à magnitude de um universo tão rico, a narrativa é econômica e quase esquecível, mas nem por isso mal engendrada, fazendo valer o esforço em se construir as bases para uma lore que pode render, futuramente, muito mais coisas. Destaque também para o trabalho de vozes que segue o modelo arquetípico de interpretação que não deve em nada para obras mais conhecidas, e é uma pena o escopo da produção não comportar uma dublagem brasileira. A localização, dito isso, se resume aos textos, legendas e menus, o que não deixa de ser interessante, e a trilha musical, que intercala instrumentos de corda e batidas militares, também cumpre o seu papel quando presente, aumentando a tensão e a sensação de aventura.
A interface, mais uma vez resultando de um formato que privilegia os computadores, pode ficar estranha e é bastante burocrática no acesso a algumas funções importantes. A tela pode ficar poluída e cheia de janelinhas como, por exemplo, tempo de cooldown de comandos especiais utilizados, escondendo inclusive informações valiosas do palco da ação, legendas de contextualização e outras coisas que valem muito mais do que aquilo que está em primeiro plano. Escolher o enquadramento, a posição da câmera e a proximidade da ação também pode ser um esforço muito maior do que deveria, e isso pode esgotar a paciência dos jogadores mais afoitos. Felizmente, o game é muito mais leve do que outros parecidos em relação a menus, submenus e camadas de opções sofisticadas, então esse aspecto é algo com o que se pode acostumar, diferente da movimentação e controle de unidades que realmente é algo bem mais complicado.
Sem se aprofundar demais em mecânicas sofisticadas e recursos que podem afastar o público comum, Warhammer Age of Sigmar: Realms of Ruin parece mais modesto dentro das opções disponíveis no mercado para o gênero RTS, mas a verdade é que, ao fazer bem aquilo que se propõe, é uma representação muito honesta de um universo ainda pouco difundido, que se permite a linearidade e a concentração em poucas unidades e clãs disponíveis para evitar se tornar ganancioso e, consequentemente, vazio de significados. Porém, estas mesmas qualidades podem afastar os fãs mais dedicados e os jogadores mais experientes que procuram por algo a mais, que esperam profundidade narrativa, de gameplay e de lore. Tudo depende, portanto, das expectativas, e apesar dos deslizes principalmente na transposição para os controles, é uma ótima opção de entrada para quem quiser se aventurar por uma boa fantasia medieval.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Frontier Developments.
Veredito
Warhammer Age of Sigmar: Realms of Ruin é uma adaptação bastante digna deste universo para os games, mesmo que se perca na interface para o DualSense. A linearidade e o escopo contido da aventura podem incomodar quem espera um RTS de grandes proporções. Mas com a expectativa no lugar certo, há bastante o que se aproveitar aqui.
Warhammer Age of Sigmar: Realms of Ruin is a very worthy adaptation of this universe for games, even if it gets lost in the DualSense interface. The linearity and contained scope of the adventure may bother those expecting a large-scale RTS. But with expectations in the right place, there’s plenty to enjoy here.
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