Muito antes da mitologia nórdica se tornar um tema mainstream em games, filmes e seriados de televisão, houve uma série de jogos que já abordava a temática da eterna luta entre os Aesir e os Vanir e as épicas batalhas que culminariam no fim do mundo como o conhecemos. A franquia Valkyrie Profile remonta aos anos finais da geração 32 bits, com o primeiro game sendo lançado para o PSOne e, mais tarde, relançado já com o subtítulo Lenneth no PSP. Se a série jamais se perdeu por completo – a entrada mais recente Valkyrie Elysium chegou a nós também neste 2022 – o primeiro game parecia distante do público mais moderno. Parecia. Felizmente, estamos recebendo uma remasterização (baseada na sua versão portátil) para os consoles mais atuais.
Em resumo, Valkyrie Profile: Lenneth é um típico JRPG onde, no controle da personagem que empresta o nome ao título, recebemos a missão diretamente de Odin, o Pai de Todos, de recrutar guerreiros dignos dos grandes salões de Valhalla (aqui chamadas de Einherjar) para a grande guerra que está sendo travada, o hoje bastante conhecido Ragnarok. Se em um primeiro momento o plot pode parecer simples e até meio superficial, é no seu desenvolvimento que a narrativa se mostra brilhante e à altura dos grandes títulos do gênero. Nossa jornada por Midgard guarda muitas surpresas, histórias comoventes e um conteúdo robusto que nos garante uma imersão intensa de ao menos 30, 35 horas muito bem vividas.
A introdução não se preocupa em apressar as coisas, e aos poucos nos apresenta o modelo estrutural do roteiro, baseado em ciclos temporais, e as principais mecânicas que nos serão úteis. Explorando um mapa que nos dá uma versão de nosso mundo e várias localidades inspiradas em regiões e culturas diferentes, podemos nos mover livremente, conversar com pessoas, conhecer mais sobre cada um desses locais, não necessariamente nos envolvendo ou atuando mais diretamente a priori. É quando nos concentramos em ouvir conflitos (uma ação que depende de um comando e que se o jogador não prestar atenção aos tutoriais pode ficar perdido) é que teremos a capacidade de identificar nossos potenciais candidatos a Einherjar, ou mesmo encontrar grandes dungeons cheias de perigo que desequilibram o mundo.
Uma vez que encontramos esse pontos focais, podemos adentrar os locais marcados no mapa. Lá, temos a oportunidade de assistir passivamente algumas das pequenas histórias desses personagens, aspecto onde o jogo consegue brilhar como poucos fizeram nos 20 anos que o sucederam. Há uma certa poesia em cada pequeno núcleo, há conflitos realmente instigantes e cheios de sentimentos, que, em poucos minutos, nos tornam cúmplices de belas trajetórias de vida e, às vezes, de morte. Cada novo recruta, que pode ser incorporado em nosso time principal ou ser enviado a Odin, carrega sua própria identidade, algo que o torna muito mais do que um perfil ou um avatar arquetípico vazio. E é por isso que nos importamos com eles ou com elas a ponto de que mesmo quando os mandamos para a guerra distante, queiramos saber como eles se saem.
Além destas passagens muito bem articuladas em cenas de corte que abusam da estética pixelada de modo criativo, há outros trechos de ação onde exploramos masmorras ambientadas em diferentes biomas, normalmente em formato labiríntico. Neste momento o jogo se torna, em essência, um plataformer 2D onde nossa Lenneth pode atacar, se agachar, deslizar, pular e disparar projéteis frios que podem congelar inimigos ou ajudar na escalada de paredes e outros obstáculos. Se paralisarmos os adversários que encontramos, podemos passar por eles sem confronto, o que pode ser útil em momentos de menor preparo, mas extremamente desaconselhável porque são essas lutas que nos dão pontos de experiência suficientes para estarmos prontos para os chefões.
Se, portanto, decidirmos enfrentar o inimigo, entramos em um momento de batalha por turnos, onde cada botão principal aciona um aliado – nosso time é composto por até quatro personagens, incluindo Lenneth – e parece ser algo bem protocolar inicialmente. O sistema, porém, se mostra muito mais profundo conforme aprendemos e nos acostumamos com recursos extras, como o contra-ataque cuja janela é bem precisa, e principalmente a composição de combos de time, que se bem aplicados podem causar um dano muito maior do que a soma dos ataques individuais. Com a combinação certa, somos capazes de disparar os melhores ataques especiais do nosso grupo, aplicando poderes devastadores em quem quer que nos desafie. É um sistema muito bem equilibrado e recompensador para aqueles que se dedicam a aprender suas peculiaridades.
Esta combinação de exploração e batalha é onde a ação está centrada, mas é perceptível que o segundo envelheceu muito melhor do que o primeiro. A jogabilidade de movimentação não é das mais precisas, sobretudo as mecânicas de salto, e podem ser frustrantes nos pontos que exigem maior exatidão. Quem está acostumado com a fluidez de jogos mais modernos poderá se frustrar facilmente ao tentar alcançar uma plataforma distante, um baú de loot escondido, ou simplesmente passar de uma escada para um bloco logo ao lado. Uma vez mais, os primeiros minutos nos dão uma boa dimensão dos desafios que o jogo apresentará nesse aspecto e é bom que nos acostumemos, mente e mãos, para que nossas aventuras sejam mais tranquilas. Não que haja puzzles complexos ou armadilhas punitivas demais, nada disso. Mas subir e descer acaba dando mais trabalho do que deveria.
Por outro lado, a pancadaria é extremamente satisfatória e eu particularmente não me importei em momento algum de encontrar várias delas em sequência nos mesmos corredores. Além do modelo de combos ser viciante, aliado à possibilidade de estarmos o tempo todo renovando nossa party e encontrando novas combinações, a bonificação é generosa e dá uma sensação de que cada horda vencida é um passo real a mais na direção de limpar o mundo de monstros e criaturas horrendas. A cada novo embate, eu me sentia descobrindo uma nova camada de refinamento do meu desempenho, o que de dava ainda mais motivação para me deter nos sistemas de customização aprofundados do game.
Falando nisso, os menus e a interface de gerenciamento do jogo são estranhamente acessíveis até para os jogadores atuais, mesmo que não pareçam tão amigáveis assim no início. Utilizar pontos obtidos em batalhas para a melhorias de habilidades passivas, que vão desde o poder de luta e a barra de vida até elementos menos óbvios como capacidade de liderança e conhecimento sobre os inimigos é algo a se considerar, visto que essa mesma moeda, se assim podemos chamar, deve ser utilizada para melhorar nosso índice heroico (que por vezes faz parte dos pré-requisitos para enviar aliados à Odin) e habilitar capacidades especiais que, vagarosamente, vão sendo disponibilizadas conforme nos esforçamos em cada dungeon.
Como não poderia deixar de ser, itens equipáveis também estão presentes, como armas e vestimentas, mas não espere receber uma abundância deles logo de início. Eles são raros, mas quase sempre importantes, e na maioria das vezes os mais dedicados a procurar por cantos improváveis terão um grande salto em seu poder de fogo só por trocar uma espada por outra mais forte. Outros pequenos-grandes detalhes, como itens de cura, livros com feitiços novos e coisas assim também estão todos disponíveis nesse intrincado modelo de gestão, e como este é um jogo de outro tempo, cabe um esforço maior em entender o que cada coisa faz, quais são suas vantagens e como utiliza-las corretamente. O maior defeito aqui é que os textos, além de não estarem em português, são bem vagos quanto a como funciona cada coisa, então tudo exige mais atenção, paciência e experimentação.
Já em termos artísticos, tive aqui ótimas surpresas, ainda que tudo precise ser contextualizado, porque a construção entrega os 23 anos da produção. Como era de se esperar de um jogo desta época, há alguns elementos estéticos divergentes compondo o todo. Em primeira instância, Valkyrie Profile: Lenneth é um jogo construído com elementos que hoje chamaríamos de pixel art, e aqui há um destaque especial porque a remasterização cuidou para que a proporção se adequasse aos televisores widescreen sem sustos e sobressaltos, além de oferecer opções complementares que permitem que o jogador faça ajustes que lhe forem pertinentes. Personagens e inimigos são muito bem cuidados, e cenários são especialmente detalhados, diversificados e belíssimos. Texturas desfocadas e outros elementos contextuais acabam destoando em uma ou outra passagem, mas nada que afete o conjunto.
As ilustrações que acompanham os diálogos, aquelas onde o personagem é melhor detalhado, estas sim ficaram bem mais nítidas e funcionam bem para a caracterização de incontáveis NPCs que permeiam toda a campanha, e aqui funcionam bem na composição. Algumas das capturas que ilustram este texto explicitam exatamente momentos onde a conversa se dá puramente por texto, seja nas cenas de corte, seja na interação de nossa heroína com o resto de sua equipe. Entretanto, o que destoa são as cenas em computação gráfica, que não são tantas assim, mas que acabam quebrando um pouco o ritmo e parecem, hoje, inconsistentes com o resto. Tecnicamente estão lindas e muito bem adaptadas à alta definição, mas se naquele tempo eram um salto importante comparado com o que veio antes, hoje só parecem deslocadas.
Lenneth, em resumo, acaba tendo três versões visuais: pixelada, ilustrada e computadorizada. Obviamente que o respeito à obra original é inquestionável e não haveria nenhum motivo para que os desenvolvedores mudassem qualquer coisa aqui, e o destaque é muito mais como uma avaliação de como nossas impressões sobre virtuoses gráficas mudam conforme o tempo avança. Por outro lado, a trilha musical é simplesmente incomparável e continua sendo um dos maiores trabalhos do gênero. Cada passagem é incrível e consegue sintetizar o tom solene de uma aventura épica sem todavia perder a sensação de aventura e frescor, a leveza de uma jornada cheia de encantos e que por mais densa e emotiva que possa ser, jamais abandona o tom de esperança jovial. Mesmo os diálogos falados, raros, mas presentes em um momento ou outro, funcionam bem e se encaixam muito mais do que as cenas em CGI.
Com três finais possíveis – o melhor deles só disponível quando nas dificuldades normal ou avançada, cada uma delas com dungeons exclusivas e mais desafiadoras – Valkyrie Profile: Lenneth é uma peça valiosíssima desta rica tradição de JRPGs e uma recomendação máxima para entusiastas, veteranos ou novatos que tem interesse em adentrar esse universo. As facilidades adicionadas à essa versão, como a inclusão de um segundo sistema de salvamento que complementa o original, o esperado save state, além da disponibilização de uma linha do tempo que permite retroceder a pontos anteriores para consertar equívocos, são um convite a quem tem receios de resgatar uma obra de outros tempos. Mesmo a ferramenta que permite escolher entre o filtro clássico e o moderno é um capricho que visa agradar qualquer tipo de expectativa. Destoa o menu de controles que só mostra onde é o botão Start está é dispensável e não deixa que comandos sejam remapeados, mas isso é um detalhe que não importa muito.
Atualmente o mercado tem sentimentos contraditórios acerca de ports, relançamentos, remakes e remasterizações, mas creio que algumas obras de arte – e não tenho dúvidas de que Valkyrie Profile: Lenneth pode ser incluída nessa categoria – devem sempre ter um destaque especial e ser reapresentadas a novos públicos. Graças a Odin, sem firulas ou invencionices, com poucas adições que favorecem novos adeptos, esse jogo é um belo exemplo de como modernizar uma obra sem distorcê-la, tornando-o uma recomendação máxima para todos os fãs do gênero e, sinceramente, para todos os admiradores de um bom game. Ao mesmo tempo dinâmico e poético, leve e complexo, desafiador e acessível, é sem dúvidas uma ótima adição a qualquer biblioteca.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Square Enix.
Veredito
Valkyrie Profile: Lenneth é um dos mais importantes clássicos JRPGs da história, mesmo sendo menos conhecido que outros títulos do gênero, e esta nova versão mantém tudo o que de melhor o jogo representa. Mesmo que um ou outro aspecto pareça datado, o conjunto se mantém belíssimo, cativante e encantador, o que lhe garante uma recomendação máxima para velhos e novos fãs.
Valkyrie Profile: Lenneth is one of the most important classic JRPGs in history, even if it is less well known than other titles in the genre, and this new version maintains all the best that the game represents. Even if one or another aspect seems dated, the whole remains beautiful, captivating, and charming, which guarantees it a top recommendation for old and new fans alike.
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