Mesmo que você ainda não tenha assistido um episódio sequer ou qualquer cena do desenho animado de My Little Pony, é muito provável que reconheça tanto os personagens da franquia como, principalmente, o seu tom que abusa da fofurice para agradar sobretudo crianças pequenas. Isso porque a marca é uma propriedade poderosa em termos de merchandising, então não faltam derivados por aí, que vão desde brinquedos e produtos mais requintados a quaisquer quinquilharias de papelaria. O ícone construído é forte, a ponto de estarmos falando dele aqui, abrindo uma análise de um jogo que não é, a priori, vinculado à essa IP.
O motivo? É inevitável dizer que Them’s Fightin’ Herds é basicamente um jogo de luta baseado nos cavalinhos e outros quadrúpedes encantados tão reconhecíveis pelo sucesso de My Little Pony. Ainda que não ostente a marca – a história é longa, mas basicamente ele seria sim uma adaptação oficial que não foi aprovado pela Hasbro em algum estágio do desenvolvimento, e os responsáveis pela Mane6 decidiram seguir com o projeto adiante criando seus próprios personagens e universo – a relação é tão clara quanto se pode verificar no vídeo que abre esta análise e nas imagens que a ilustram. Felizmente, passada a primeira impressão, o jogo se mostra algo muito maior e mais interessante do que isso.
Em resumo, Them’s Fightin’ Herds é um jogo de luta 2D com um elenco bastante enxuto – são sete personagens no total, com a promessa de mais quatro chegarem em um futuro passe de temporada – onde todas as personagens são animais que representam seus clãs e se unem como verdadeiras campeãs para salvar o mundo de uma ameaça sombria que ameaça o equilíbrio e a harmonia. Assim Arizona, a vaca; Oleander, a unicórnio; Pom a carneira; Paprika, a alpaca; Velvet, a corça; Shanti a cabra; e Tianhuo, a Longma (uma híbrida entre cavalo e dragão) se erguem diante o mal, cada qual com as habilidades e estilo de seus povos. E se a história não parece tão surpreendente, é na forma como ela é contada que o jogo continua se mostrando especial.
Isso porque a campanha principal, o modo história, é apresentado de uma forma bem diferente se comparado com os grandes expoentes do gênero. Ao invés de começarmos diretamente na pancadaria, o jogo oferece uma aventura que se divide entre a exploração top-down estilizada no pixel art que lembra os clássicos RPGs dos anos 1990, onde somos impelidos a procurar por caminhos e saídas de cavernas e masmorras com direito a busca por colecionáveis (que nos permitem customizar o personagem com roupinhas e acessórios), e com alguns embates pelo caminho contra criaturas macabras que nos ensinam e testam nossa competência e aprendizagem.
Batalhas contra chefes fazem parte do pacote, mas na maioria do tempo, não estaremos frente a frente com nossos oponentes, e a dinâmica se aproxima muito mais do modelo de games de plataforma e ação do que necessariamente de luta. Como um dos maiores entusiastas da forma como a NetherRealm desenvolveu uma forma própria de contar histórias em games como Mortal Kombat e Injustice, confesso que fiquei surpreso e empolgado com um jeito completamente diferente de guiar o jogador que não só respeita as mecânicas próprias do jogo, nos ensinando e fortalecendo a memória muscular que será tão importante mais adiante, sem perder de vista a imersão e o envolvimento com esses personagens tão adoráveis. Se eu tivesse esse olhar assim que instalei o jogo, não teria começado sofrendo direto no modo arcade, como pode ser visto no vídeo dos primeiros minutos logo acima.
Há, aliás, trechos de plataforma e outros desafios que se apropriam de mecânicas do jogo, como salto, dash e coisas do tipo, mas de formas menos usuais. Tive a sensação que o modo demora um pouco a engrenar e que, sobretudo nas primeiras horas, há uma repetição que acaba recheando demais as primeiras missões, mas que lá na frente se mostram úteis ao ter nos forçado a praticar golpes, combos e defesa para quando o caldo começar a entornar de verdade. Além do mais, com um sistema que coloca checkpoints pouco espaçados, é bem confortável avançar um pouquinho por dia, sem pressa, alternando o modo com os demais. O ritmo, portanto, poderia ser um problema se esse fosse o único foco da produção. Felizmente, não é.
Exatamente por isso, a essência do jogo nunca foge da sua proposta, e enquanto a narrativa se desenvolve em capítulos, é possível sair no quebra-cascos nos outros modos, sejam off-line para um ou dois jogadores, sejam on-line. No primeiro caso, há a possibilidade de se aprender e praticar os principais movimentos em um tutorial bastante completo (este com um errinho a ser corrigido, usando ícones do XBox de botões, o que resulta em dicas com botões A, B, C e D mesmo na versão de PS5); jogar partidas únicas contra a CPU ou outra pessoa; e enfrentar todo o elenco no clássico e já citado modo arcade, além do modo história do qual já falei. Na possibilidade de se jogar sozinho, há uma gradação bastante generosa de níveis de dificuldade, mas já esteja preparado para suar nos níveis mais altos em uma curva de aprendizagem íngrime e impiedosa. Eu não sou lá dos maiores profissionais na pancadaria virtual e já sofri no segundo estágio quando achei que seria um ótimo ponto de início. Ledo engano. Demorou para ter segurança para arriscar jogar na dificuldade normal.
A porção multiplayer on-line do game, que se apropria da mesma estética do modo história, não foge dos padrões e, funcionando com o já necessário netcode via rollback e com crossplay por padrão, não tive qualquer problema de lag ou latência perceptível, a não ser sentir o jogo sutilmente mais “pesado” que no off-line em uma ou outra partida, o que significa que todas as minhas derrotas foram, sinto dizer, por culpa exclusivamente minha, e espero que as vitórias também tenham sido. Para os mais sensíveis a contagem de quadros, aliás, há ainda opções de emulação de latência nos modos off-line, bem como ajustes, antes de cada luta on-line começar, para configurar essa aspecto conforme sugestão do jogo enquanto ele analisa a conexão. Simples, mas muito efetivo.
Estão disponíveis duas possibilidades já bem conhecidas, sendo possível encontrar pessoas tanto em partidas casuais como nas ranqueadas. Nos dois casos, o tempo de espera variou bastante dependendo do dia e horário, e com a popularização do jogo a tendência é encontrar mais gente para dividir boas partidas. Se a opção for por navegar pelo lobby pixelado, é possível circular livremente pelo local, ver o quebra-pau rolando entre outros jogadores e assisti-los, além de encontrar adversários zanzando por lá e procurando briga. Além disso, poder escolher dentre os personagens do jogo para ser seu avatar e customizá-lo com perfumarias aleatórias nunca sai da moda, e ao seu jeito, o jogo consegue ser simpático até quando temos que esperar até a próxima batalha.
No momento em que a luta começa, quando chora menos quem pode mais, aquele jogador que já se sente confortável com outros dos melhores games de luta da atualidade não sentirá qualquer estranhamento aqui, com um modelo com três níveis de força e velocidade, além de um quarto botão com uma qualidade única que consome energia de uma barra específica. A maioria das magias e ataques especiais não foge do bom e velho “meia-lua e ataque” e a barra de super em três níveis funciona como se imagina. Talvez a maior adaptação para poder jogar Them’s Fightin’ Herds com precisão é considerar o óbvio: como são personagens quadrúpedes, o hitbox acompanha essa característica, o que influencia no timing e na distância de ataques, saltos, investidas, e até mesmo nas estratégias de defesa.
As mecânicas do jogo são realmente impressionantes, principalmente considerando que elas são muito coesas com o estilo visual adotado. A fluidez das animações faz frente a jogos mais famosos e não há a impressão de quebra de animação para favorecer o tempo de ataque. Ajuda o fato de que o jogo conta com ilustrações belíssimas tanto na composição de cada personagem como na construção de cenários ricos – estes um espetáculo a parte, com direito a variações de dia-e-noite – que, ao mesmo tempo, não poluem demais a tela. A qualidade gráfica é excelente, com traços que não abandonam o estilo mais lúdico nem mesmo nas passagens de maior potência de golpes arrasadores. E a cereja do bolo é uma gama enorme de composição de cores para cada personagem logo de cara, sem a necessidade burocrática de jogar horas para libera-las.
Já a trilha sonora é um verdadeiro deleite, com canções originais em cada cenário que sabem bem mesclar o eletrônico e instrumentalização de forma dinâmica mantendo a leveza e o tom aventuresco que, mixadas à uma sonoplastia muito convincente, não enjoam mesmo em sessões mais longas de jogatina. Destaque para a personalização das músicas de acordo com o tema de cada lutadora, o que dá um toque sutil que demonstra um cuidado e um carinho para com a obra que há muito tempo eu não via. Soma-se a isso um trabalho de vozes muito delicado e o bom humor presente o tempo todo, e o resultado é um conjunto coerente e muito agradável.
Ainda que não seja uma novidade, é importante destacar aqui o trabalho de localização da obra para o português brasileiro, que consegue adaptar bem a linguagem para um contexto que nos faça sentido. Se as corsas conseguem ser esnobes, as vacas trazem um jeitão caipira com direito a muito “uai” típico do interior de Minas Gerais, tradicional aqui pela pecuária tanto quanto é o Arizona nos EUA, estado que dá nome à personagem. Pena não haver um trabalho de vozes tupiniquins nos mesmos moldes, algo compreensível dado o escopo da produção. Mas que seria ótimo ter dubladoras brasileiras nas frases de efeito antes e depois das lutas, isso seria. De qualquer forma, ter tutoriais, menus, interface e principalmente as caixas de diálogo no modo História no nosso idioma, é uma adição singela, mas muito importante.
Them’s Fightin’ Herds (confesso que esse nome não me convenceu, mesmo fazendo sentido contextual) é, em resumo, um pequeno-grande jogo de luta que, tal como Skullgirls em seu lançamento, não traz um elenco massivo – algo raro em dias onde é comum termos galerias de 30, 40, 50 personagens em telas de seleção – o que limita um pouco, mas ainda assim consegue oferecer diversidade para se adaptar a todos os estilos. Pessoalmente, Oleander tem se tornado minha main pelo bom equilíbrio entre o controle de distância e o combate próximo, mas tive facilidades e dificuldades com pessoas extremamente dedicadas aos combos (que sabem lidar bem com a velocidade de Shanti) ou os chamados zooners que conseguem aproveitar bem dos projéteis poderosos de Velvet, só pra citar exemplos mais óbvios. Ao menos até aqui não encontrei aquele exército de pessoas com o mesmo personagem, como é comum em outros games.
Equilibrado, divertido e criativo, este jogo consegue oferecer combates leves o suficiente para divertir até mesmo os mais inexperientes, e ao mesmo tempo apresenta níveis de profundidade capazes de satisfazer até o mais exigente profissional. Se inicialmente podemos, por puro desdém pelo tema do game, imaginar que se trata de só mais um plágio genérico para garimpar dinheiro de crianças e pais desavisados, qualquer preconceito é esfarelado nos primeiros segundos do game, seja qual modo for o escolhido. Them’s Fightin’ Herds é refinado, original e particularmente divertido, merecendo muito uma chance dos adeptos da pancadaria digital.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Modus Games.
Veredito
Them’s Fightin’ Herds é um excelente game de luta que definitivamente merece respeito pela altíssima qualidade audiovisual e pela solidez do gameplay tanto online quanto offline. Nem mesmo o elenco modesto e o ritmo irregular do modo história diminuem a experiência divertida e bem acabada de um jogo que transparece carinho, cuidado e competência.
Them’s Fightin’ Herds is an excellent fighting game that definitely deserves respect for its high audiovisual quality and solid gameplay, both online and offline. Not even the modest cast and uneven pace of the story mode detract from the fun and well-rounded experience of a game that exudes care and competence.
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