Ainda que a própria natureza do texto crítico considere sua dose de parcialidade, é comum que tentemos, pelo menos por alguns instantes, nos descolar de paixões e aversões para analisar uma obra para que o leitor tenha a possibilidade de dialogar com o trabalho e usar sua própria vivência para extrair dali algo que possa lhe ser útil, interessante ou até esclarecedor. Algumas produções, porém, nos trazem um grau a mais de esforço para deixar nosso histórico de lado, e o universo deslumbrante criado por J.R.R. Tolkien é um desses pra mim. O Senhor do Anéis, o maior e mais óbvio expoente desse mundo maravilhoso, uma das mais significativas referências para tudo o que veio a abordar a fantasia medieval depois dele é, para mim, um desses casos onde razão e emoção se misturam, se confundem, se fazem um só. Considerem isso na leitura que se segue.
The Lord of the Rings: Gollum é um daqueles típicos projetos que, quando anunciado, arrancaram um inevitável “pra que?” de muita gente, (deste que vos fala, inclusive) mas não foram necessários nem cinco minutos para que isso se tornasse um “ok, agora eu quero jogar isso”, e cá estou eu. Dentro de toda a mitologia baseada na Terra-Média com grandes guerreiros de capa, espada e cajado; perigos inimagináveis; criaturas fantásticas; e um certo anel para a todos governar, alguém teve a ideia de trazer para um lugar de protagonismo um personagem cuja função na saga do anel é, como Gandalf mesmo diz enquanto descansava nas Minas de Mória, seria essencial para o desfecho de tudo. O que poucos de nós imaginamos vislumbrar seria contemplar o mundo pelos grandes e cansados olhos dele. Gollum sempre foi uma ferramenta de roteiro, um artifício para a trama funcionar, nunca ele mesmo o herói da própria história. Pois agora é.
Localizado paralelamente durante os eventos entre A Sociedade do Anel, As Duas Torres e O Retorno do Rei, período no qual sabemos, por uma fonte terceira, que ele fora capturado, torturado para entregar a possível localização do famigerado Um Anel e, mais tarde, liberto (ou fugido), o jogo se apropria de algumas das suas melhores características para criar uma experiência sem toda a megalomania de grandes batalhas ou de cavaleiros excepcionais como vimos recentemente seja nos cinemas, em seriado e até nos recentes Sombras de Mordor e Sombras da Guerra, mas que é deliberadamente dedicado a expandir de uma maneira inesperada aquilo que já conhecemos. Gollum não é dos melhores em combate, mas sabe muito bem como se esgueirar, se aproximar à espreita, se mover pelos caminhos sombrios de Mordor e além. Ele vivera, afinal, longe da luz, e as trevas – as físicas e as mentais – são sua morada.
Assim, o que há de melhor no game é toda a dinâmica que nos coloca em vantagem furtiva contra inimigos e outras ameaças. O desenho de níveis é bastante competente ao trabalhar com vegetação e outros espaços escondidos onde podemos nos movimentar até de forma quase natural, assumindo que uma vez pegos, não há escapatória. O primeiro ato do game, este que ilustra a análise, é muito feliz em nos ensinar basicamente todas as principais mecânicas que utilizaremos de modo objetivo e sem complicação. A coisa vai se afunilar dali em diante, exigindo que saibamos escolher bem a abordagem, ou a mistura de técnicas para nos safarmos, e mesmo com um estado de linearidade até incomum para jogos similares, a sensação de liberdade de ação e de satisfação na tomada de decisões é genuína em alguns momentos, mas em outros, infelizmente não.
Algumas questões que muitas vezes podem ser um problema estão presentes, e nem sempre a movimentação é tão fluida e esguia como idealizamos para um personagem tão safo quanto este. A falta de cuidado pode nos fazer ficar presos em quinas ou outros obstáculos que nem deveriam ser um problema, e quando a janela de ação exige muita precisão e timing, um pequeno contratempo como se enroscar em um desnível quase insignificante no terreno pode significar uma falha e a consequente derrota. Nada de muito absurdo, porém, porque há muita generosidade na distribuição de checkpoints de modo que ser capturado ou cair vergonhosamente de um penhasco por errar a direção de um salto não é grande coisa. Caia, sinta-se bobo, e repita até encontrar o meio correto. Nesse aspecto, como dito anteriormente, senti falta de mais opções e caminhos alternativos, e em grande parte do tempo fica evidente estarmos só aprendendo a seguir o script da única forma como fora imaginado.
Falando em acertar saltos improváveis ou errar beiradas óbvias, o elemento vertical de plataforma é uma das questões mais presentes em The Lord of the Rings: Gollum. Pense em uma mistura entre Uncharted, os clássicos God of War e Horizon, onde as superfícies escaláveis são bem determinadas e visualmente marcadas para não termos dúvidas – ainda que ambientes extremamente escuros possam ser menos óbvios nesse sentido – sobre onde subir agarrado à vegetação, onde é possível tomar um grande impulso para alcançar uma borda ou onde é necessário deixar fluir o parkour para saltos mais acrobáticos. Coloque uma pitada de Zelda BoTW ou Immortals Fenyx Rising com a inclusão do fôlego (a boa e velha estamina) para adicionar uma sensação de urgência em escaladas mais pesadas sem apoio, e temos um sistema de plataforma tridimensional bem amarrado e certo do que quer.
Esta movimentação, porém, é um tanto quanto problemática. Falar de instabilidade da câmera em jogos do gênero é chover no molhado, mas aqui a questão é extremamente delicada, porque não faltam passagens onde estamos brigando com o posicionamento estranho e contraproducente do ponto de vista. Até mesmo questões menos complexas, como a transição entre um trechos se rastejando em buracos na parede, acabam se provando um tormento extra. Soma-se a isso aquela movimentação meio desleixada que, em cantos mais estreitos nos faz sentir que estamos controlando um tanque de guerra, e o saldo final é que a movimentação acaba se provando o aspecto mais frustrante do game.
Mas ser uma criaturinha medonha, esguia e sorrateira não é nem de perto aquilo que define esse herói improvável. Ele é confuso, movido por uma obsessão literalmente doentia pelo seu único motivo de vida, algo que despertou, ao longo de séculos, uma estranha relação entre ele e ele mesmo. Gollum, pois bem, não é só Gollum. Ele também é Sméagol e nem sempre ambas as suas metades se entendem. O transtorno de dupla personalidade que rendeu à sua versão digital nas adaptações cinematográficas da trilogia do anel uma das mais impressionantes performances de um personagem digital da história e que até hoje, mais de 20 depois de seu lançamento, ainda impressiona pela qualidade de detalhes e sutilezas, é uma mecânica bastante importante no desenvolvimento dessa história. Há pontos de bifurcação que nos exige decidir qual das duas vertentes desejamos utilizar para apoiar nossas escolhas, uma leitura muito pertinente e diegeticamente justificada dos modelos de karma presentes em jogos onde se pode atuar com bondade ou crueldade, por assim dizer.
Contudo, não basta escolher qual a abordagem de cada situação, já que é necessário entrar em um debate por vezes árduo e improvável com a outra parte. Sméagol não pode escolher ser misericordioso sem convencer Gollum que esta é a melhor escolha pra ambos. Por sua vez, Gollum tem que ser muito esperto para fazer Sméagol acreditar que não há outra solução que não a violência. Baseada em escolhas de diálogo entre ambos em sua mente, a mecânica é simples, prática e eficiente, mesmo que em algumas situações sempre nos coloque na posição de fazer uma escolha entre a ruim e a pior, ou que nos dê opções de argumento ambas mequetrefes. Nem sempre essa bifurcação gera uma alternativa palpável em termos de caminho, tampouco influenciam no final da história – esta que qualquer pessoa que conheça minimamente o obra original sabe onde vai terminar – mas certamente muda o que vai exigir de nós, jogadores, em certas situações. Ajudar ou não ajudar? Desviar ou enfrentar? Esgueirar-se ou dar a volta? Nem sempre a escolha moral nos é relevante, tal como não é para ele. Normalmente, não escolhemos o certo a fazer, mas sim o mais conveniente para aquele momento.
Este cenário de escolhas rizomáticas é, aliás, uma das poucas entradas onde a interface off-game se faz mais pesada, já que na maioria do tempo as informações de HUD são, quando muito, discretas, e só surgem quando necessárias. É um visual extremamente limpo e econômico, e evita complicações que, para esta narrativa, seriam desnecessárias. Não há, por exemplo, ganho de experiência, árvore de habilidades ou qualquer modelo de progressão, porque não é o caso de irmos melhorando até nos tornarmos um Gollum poderoso no final. Isso direciona a atenção do jogador só e somente só para o próximo objetivo, que via de regra é chegar do ponto A ao ponto B sem morrer ou ser pego no caminho, instintivo desse jeito mesmo. The Lord of the Rings: Gollum se aproveita da simplicidade do personagem título e a adota para si enquanto jogo. Ele não quer explorar um mundo aberto, não quer entender o mundo, não quer resolver qualquer que seja o problema que existir. Ele só quer seguir adiante, só quer encontrar seu amado.
Talvez pela linearidade, esta Terra-Média parece menos impactante do que se pode esperar de uma produção deste nível. Claro que grande parte das dez missões que compõem a aventura se passam em cavernas, florestas obscuras e construções em ruínas quase sempre à noite, e isso diminui bastante o impacto de um olhar para o horizonte, algo tão presente em outras versões audiovisuais desse universo. Mas mesmo quando damos aquela olhadinha para a Montanha da Perdição ou para as planícies ao norte, tudo parece mais acanhado, mais restrito. Talvez Gollum não seja muito adepto da beleza de grandes campos verdejantes, dos picos congelados ou das construções reluzentes dos povos élficos, mas não há dúvidas que faz falta sentir a grandiosidade desse mundo tão rico e encantador que aprendemos a ver nos cinemas ou a imaginar pelas descrições alongadas e minuciosas das páginas dos livros escritos por Tolkien. Ainda há sim belos cenários e ótimos efeitos de ambientação, sobretudo com o ray-tracing ligado, mas possivelmente minha parte fã sempre quer ver todo o esplendor dessa obra saltando aos olhos seja qual for a oportunidade.
Os maiores méritos aqui ficam por conta de regiões pouco vistas antes nas obras audiovisuais baseadas na mitologia tolkiniana, onde havia mais espaço para a criatividade e menos peso comparativo de amarra. Áreas obscuras e labirínticas, palácios e fortalezas que só tínhamos ouvido falar ganham destaque e são as que mais conseguem brilhar exatamente porque são retratadas, dentro da proposta visual do jogo, da forma mais elegante possível. Há uma clara preocupação estética que busca diferenciar as regiões sob domínio de distintos povos, o que coloca a rigidez grosseira de Mordor diametralmente oposta às formas mais harmoniosas de construções élficas. Se é verdade que falta vida habitando esses locais e mesmo os mais movimentados parecem carecer de coisas acontecendo independentes da nossa presença, ao menos a cenografia aproveita bem um trabalho de pesquisa e, provavelmente, de admiração pela obra original por parte daqueles que criaram o jogo. Nem sempre há uma abundância estética de nos fazer parar a jornada para admirar, mas quando prestamos atenção, os acertos também se fazem notar.
Esta economia visual também se faz presente no design de personagens, a começar por uma das primeiras aparições do game, um personagem conhecido dos fãs de longa data – este mesmo que entrevista o assustado protagonista nas cenas iniciais (que não se parece com a encarnação inesquecível de Sir Ian McKellen, como não precisaria se parecer mesmo) e que no jogo acaba se confundindo com um NPC qualquer da geração passada sem qualquer expressividade no rosto ou presença corporal. Não fossem os diálogos explicitando quem é aquele sujeito de chapéu engraçado e longas vestes, seria difícil se importar com ele. O mesmo vale para orcs, elfos e outros tipos que surgem pelo caminho. O próprio Gollum tem lá suas virtudes visuais, com um olhar angustiado bem menos profundo e ameaçador que sua contraparte cinematográfica, mas nada que surpreenda, que impacte, que localize este jogo para os padrões desta nova geração.
Por outro lado, a interpretação vocal se destaca e acrescenta ótimas camadas a ambas as personalidades de Gollum/Sméagol. Se Andy Serkis é uma comparação tão inevitável quanto injusta porque simplesmente definiu o personagem para o mundo, ambas as versões faladas do jogo (inglês e alemão) se aproximam bastante da emulação do que foi feito antes, criando uma sensação de conforto e reconhecimento imediato para os fãs. Em outras palavras, ouvi-lo falar nos resgata a memória afetiva dos filmes e cria para o game uma sensação de real pertencimento ao universo que respeitamos. Independente de ser considerado canônico por quem quer que seja a pessoa ou empresa que define isso, o jogo sabe bem como agradar o seu público e mesmo que uma versão mais cartunesca do visual do personagem seja coerente com o mundo aqui mostrado, é no trabalho de vozes que a ponte é estabelecida.
Para uma produção questionada e questionável desde seu anúncio, The Lord of the Rings: Gollum chega, depois de alguns adiamentos, como um produto seguro daquilo que quer contar e da forma como implementou os meios para chegar lá. Sistemas de escalada e movimentação vertical não trazem nada de realmente novo ao que já vimos algumas vezes nos últimos anos, e o mesmo vale para as situações de furtividade que não avançam no padrão do mercado. Temos aqui um arroz-com-feijão em termos de mecânica, mas esgueirando-se por um deslize aqui e uma aresta acolá, é um prato bem temperadinho, correto e que vai encher a barriga satisfatoriamente ao longo das cerca de 16 horas de campanha para os mais diretos. Se a resposta para o questionamento sobre a necessidade do jogo continua em aberto, é de se sentir aliviado que, já que foi feito, ao menos funciona como deveria funcionar mesmo com alguns pontos pouco refinados.
Surpreende o fato de que os desenvolvedores da Daedalic Entertainment terem evitado um caminho tendencioso que pudesse complexificar desnecessariamente o jogo, inserindo elementos de RPG ou de mundo aberto que aqui se tornariam sem sentido. Não há roupinhas, não há equipamentos classificados por raridade, não há poderes ou habilidades especiais a se desbloquear. Toda a escalada da dificuldade, que nunca chega a ser punitiva mesmo para quem está pouco habituado com jogos primordialmente stealth, é voltada para a capacidade do jogador em se apropriar das técnicas aprendidas lá no começo para se safar de situações mais elaboradas. Ao contrário, foi exatamente ao se questionar sobre o que fazia de Gollum um personagem tão único é que encontraram aquilo que poderia ser seu maior diferencial, o eterno conflito entre um pacato Hobbit deturpado que ainda resiste em sua mente e sua contraparte extremamente corrompida pelos séculos sob influência da materialização do mal. Este é um personagem essencialmente trágico, aqui tratado com uma leveza quase caricata. Se não é um herói elegante e infalível, não há dúvidas de que, seja como Sméagol, seja como Gollum, ele é nada menos que precioso. Já o seu primeiro game como protagonista, nem tanto.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Daedalic Entertainment.
Veredito
The Lord of the Rings: Gollum consegue se apropriar das melhores características de um dos melhores e mais complexos personagens criados dentro de uma mitologia inquestionável, mas uma representação estética limitada do mundo que o circunda e sistemas de movimentação desleixados impedem que o jogo seja precioso como deveria.
The Lord of the Rings: Gollum manages to appropriate the best features of one of the best and most complex characters created within an unquestioned mythology, but a limited aesthetic representation of the world surrounding it and sloppy movement systems prevent the the game from being as precious as it should be.
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