Ao longo dos últimos dias, tenho me deparado com alguns dilemas para a redação da análise de uma terceira versão de um jogo tão aclamado como é The Last of Us. Por um lado, é inegável que esta é uma obra-prima e ponto. Não tem “mas”, não tem “porém”, não tem “todavia” e não tem qualquer asterisco ou nota de rodapé. Não é unânime, como nada o é, mas a história reserva para este clássico do fim da era do PlayStation 3 um lugar muito especial. Ao mesmo tempo, desde os primeiros burburinhos até anúncios oficiais de como seria e de quanto custaria essa reformulação do jogo, a pergunta era tão óbvia quanto necessária: Precisa? Talvez eu ainda não consiga respondê-la, e provavelmente nem deva fazer isso. Mas posso dizer o que esta nova versão trouxe de novo.
Antes de mais nada, esta é a terceira vez que o jogo é analisado por aqui, e você pode conferir nossas avaliações anteriores aqui e aqui, e logo de cara perceberá que todos os reviews são de autores distintos. O jogo é um dos mais bem avaliados do site e há uma série de detalhes já relatados antes que não precisam ser repetidos para não nos repetirmos demais. Dito isso, e considerando que sendo um jogo com uma história de quase 10 anos e que muita gente nunca jogou (ou só jogou no lançamento em 2013 ou na remasterização de 2014), certas coisas podem ter mudado pouco em essência, mas ganham novos contornos e significados para os dias atuais, principalmente quando consideramos tudo o que aconteceu no mundo real nesses últimos três anos.
Para não me alongar demais, um breve resumo: a trama nos coloca na pele de Joel, homem comum de meia idade e pai solo de uma adolescente que, de uma hora para outra, vê sua vida virar do avesso quando o mundo é assolado por um surto de contaminação por um fungo, o famigerado cordyceps, que basicamente zumbifica as vítimas, as tornando selvagens e violentas e, em estados mais avançados, lhes tira todos os traços de humanidade. A tragédia que lhe tomou aquilo que ele mais amava o tornou uma pessoa dura em um mundo cruel e, passados anos desde o início do fim, ele se mostra um sobrevivente amargo, uma pessoa que leva a vida como dá em meio a um submundo de excluídos de uma sociedade que já nem existe mais para além dos muros de zonas de quarentena controladas pelos militares.
Ao receber uma nova encomenda, a de levar sorrateiramente uma jovem de um ponto a outro do mapa, tudo muda mais uma vez. Ele eventualmente descobre que a missão é muito mais importante do que uma simples escolta, e a viagem será muito mais longa também. Nesse meio tempo, impossível que ele não se depare com os fantasmas de seu passado, com as portas que tinha fechado dentro da própria mente e com a pessoa que ele tentou deixar de ser. O desfecho dessa jornada já não é um segredo para grande parte de vocês que me leem agora, e será ainda conhecido com a chegada da vindoura série baseada na franquia que está em produção pelas mãos da HBO, mas me reservo o direito de não contar mais sobre a história porque mesmo que já se saiba o que acontece, The Last of Us é o tipo de experiência feita para se sentir, não para se contar em parcas linhas escritas.
Uma das primeiras novidades que posso trazer sobre essa nova versão é que toda a linha narrativa do jogo original se mantém absolutamente intacta do primeiro ao último frame, sem inclusão de novos arcos ou coisas do tipo. O lado bom disso é que ele continua muito bem articulado em uma estrutura quase episódica de eventos e encontros impactantes que servem tanto para desenvolver os protagonistas e sua relação afetiva quanto para estabelecer um alicerce muito bem engendrado de ritmo, sobretudo considerando a mídia. Afinal, The Last of Us foi responsável por sedimentar alguns dos principais pilares da forma como muitos jogos que vieram depois resolveram contar suas histórias.
Para quem esperava algo diferente, porém, já que a Sony e a Naughty Dog insistem em promover esta nova versão como um remake completo e não só uma remasterização, sobra uma certa frustração. Há sim algumas diferenças pontuais mais significativas aqui e ali, como algumas passagens que valorizam certas inserções feitas no segundo jogo, mas na quase totalidade do tempo, tudo é exatamente como nos lembramos, incluindo diálogos, cortes, enquadramentos e tudo mais. Eu esperava que tivéssemos, por exemplo, mais construções abertas para exploração – em algumas regiões, há muitas casas abandonadas, mas poucas delas podem ser acessadas – além de outras áreas escondidas, mapas ampliados, colecionáveis extras, mas não é o caso. Tudo está lá, basicamente intocado.
O mesmo pode ser dito sobre as principais mecânicas do jogo, também mantidas à risca, sem tirar e, principalmente, sem colocar algo novo. Diegeticamente, pode-se justificar uma performance física muito menos ágil na comparação com a continuação de 2020, já que obviamente Joel não é a Ellie, é mais velho e, diferente da moça que basicamente não conheceu o mundo pré-apocalíptico, era uma pessoa comum e civilizada até se deparar com a violência e a barbárie que derivam de um mundo caótico. Portanto, a ausência da esquiva, do movimento de rastejo e de outras habilidades mais atléticas tão celebradas em TLoU Part II faz todo o sentido contextual. Tecnicamente, explorando o game depois de ter jogado o segundo por algumas vezes, o design dos combates de fato poderia sofrer em se adaptar a adições severas desta natureza. Em outras palavras, qualquer alteração mais profunda poderia quebrar o jogo.
Isso não significa, porém, que a inclusão de mais movimentos e de mais variedade para o combate corpo-a-corpo não seria bem-vinda ou algo do tipo, e considerando sempre o mantra de ser um remake, nada impediria que grande parte das áreas pudesse passar por um redesign para incorporar tais novidades, como a inclusão de mais áreas com grama alta e outros artifícios de ambiente para furtividade, novas variações de inimigos e de suas estratégias de ataque, mais pontos de acesso, e tudo isso dialoga com aquilo que falei sobre inclusões e adequações. Elas existem, repito, mas são muito tímidas e, por vezes, quase imperceptíveis para quem não tem memórias tão recentes da versão original. A escolha, portanto, foi a de manter tudo muito fiel ao que já existia, com alguns ajustes muito mais estéticos do que estruturais.
Aliás, não há como falar de The Last of Us Part I e não citar a mais evidente (e óbvia) atualização, que é a questão gráfica. Não há dúvidas de que o jogo já era um dos mais impressionantes produtos da geração PS3, e mesmo sua remasterização chegando pouco tempo depois ainda no início da carreira do PS4, ela continua sendo uma das mais belas entradas dentre todos os principais jogos do console. Contudo, olhando em perspectiva, a versão de 2022 é simplesmente espetacular e está muito próxima do esmero visto na continuação ou mesmo nos jogos mais recentes produzidos com foco na nova geração. Texturas de pele, expressões faciais, detalhes na vegetação… tudo parece ainda mais palpável e realista ao extremo. Poucas vezes me vi apreciando uma simples calçada com mato aparente como em The Last of Us Part I.
Há também uma atenção especial para detalhes de iluminação muito mais dinâmicos, e isso não se resume só a belas paisagens com aquele lindo pôr-do-sol, mas sim a um contraste dinâmico, fontes de luz mais diversificadas e sobrepostas, e modelos de reflexo sobretudo em superfícies líquidas com mais vivacidade. Partículas como poeira e esporos também ganharam uma atenção especial, tal como efeitos de chamas e explosões. Nota-se ainda uma expansão na variedade dentre os NPCs e seus figurinos. Se os grupos inimigos não são tão organizados como os da sequência, ao menos eles ganham um pouco mais de personalidade, seja em diálogos, seja naquela expressão agonizante de uma morte certa. Destaque também para ambientes mais responsivos, como carros se destruindo durante os combates ou simplesmente sentindo o peso de alguém subindo neles.
Para não perder o costume, o jogo oferece as duas possibilidades já bem conhecidas entre o modo Desempenho e o modo Performance, que privilegiam respectivamente a fluidez dos 60 quadros por segundo ou a qualidade de imagem dos 4K. Por mais que eu seja um apreciador de boas paisagens, mesmo as compostas por destruição e alguns corpos putrefatos, não tive qualquer dúvida em escolher jogar com uma suavidade de movimento maior, algo que faz muita diferença seja nos trechos mais agitados, seja naquele giro de câmera mais contemplativo. Não gosto de ter que decidir entre uma coisa ou outra, mas como essa é a constante desta geração, que assim seja.
O pecado, porém, fica por conta de algumas animações que parecem ter envelhecido mal e que se mostram um pouco mais robóticas do que os games mais recentes nos acostumaram. Ainda assim, são detalhes espalhados, presentes principalmente em cutscenes que devem derivar das capturas de movimento e performance de uma década atrás, algo totalmente diferente da fluidez de movimentação in-game que parece bem mais natural e adaptativa. Corridas, mudanças de direção, troca rápida de armas, pancadaria, tudo está muito melhor e mais variado, o que valoriza o preparo do jogador em ajeitar o seu inventário para cada situação e a capacidade de lidar com diferentes abordagens dentro de uma mesma passagem. Alternar entre armas, usar bombas e descer um cano enferrujado na cara de malandro, tudo ao mesmo tempo, nunca foi tão dinâmico.
Por sua vez, a inteligência artificial ganhou contornos mais sofisticados. Sim, todos ainda são incapazes de vez a Ellie andando para lá e para cá na frente deles, algo que nos tira um pouco da imersão mas que funciona para o objetivo prático dela não entregar nossa posição. Também falta um pouco de visão panorâmica para alguns soldados comuns tal como sobra sabedoria quando somos detectados e nos movimentamos nas sombras e mesmo assim todos sabem para onde fomos. Mas por outro lado, as estratégias de nos franquear são mais espertas, e nota-se até diferenças entre soldados treinados ou um bando de vagabundos em suas táticas desordenadas. Como esperado, a distração é mais do que nunca uma ferramenta poderosa para lidar com grupos grandes de inimigos.
Outras das melhores qualidades da produção são herdadas da versão original e se mantém intactas aqui, com alguns requintes mais refinados. A trilha musical é magistral e cada entrada das conções em pontos-chave é um grande acerto que mexe com toda a nossa memória emocional. Toda a construção sonora, aliás, é muito bem feita e cada ruído, cada mumunha, cada estalar de um infectado adiciona uma carga ímpar à ambientação. Tão poucas foram as vezes onde a tridimensionalidade do desenho de som foi tão útil e tão imersiva quanto aqui, e The Last of Us Part I definitivamente merece ser apreciado com um bom headset. Pude experimenta-lo com o Pulse 3D que foi tão efetivo nesse quesito que por vezes foi mais útil em me orientar em meio a inimigos do que o sistema de escuta (aquele que funciona como um radar visual) tradicional do game.
Impossível também não citar o icônico trabalho de vozes do jogo, outro grande marco que elevou o sarrafo para produções assim e se estabeleceu como um divisor de águas inclusive para a localização para idiomas outros, incluindo o nosso. Se o primeiro jogo tinha alguns problemas de balanço e certos deslizes no volume, este trouxe boas correções que funcionam bem com a nova mixagem tridimensional. O resultado é que tanto a versão original como a brasileira estão primorosas, mesmo com alguns pequenos detalhes pequenos de lipsync que acabam passando. Particularmente, ainda que seja um grande apreciador do legado de Troy Baker e suas interpretações icônicas, Luiz Carlos Persy faz um trabalho excepcional, dando a Joel um tom mais cansado, mais desesperançoso, algo que funciona muito bem para o personagem. Simplesmente irretocável.
As atualizações não se restringem ao quesito audiovisual, porém. Como prometido, o uso dos recursos específicos do DualSense é muito competente e se equipara aos melhores exemplos do PS5. A sensação de chuva é catártica, a pressão dos gatilhos (seja para o uso de armas de fogo, seja para o icônico arco) é exemplar, e as diferentes texturas de terreno, mesmo que sutis, são essenciais para um engajamento quase hipnótico. Ainda não é Astro’s Playroom, mas é sem dúvidas uma adição valiosa à vivência da experiência. O tempo de carregamento, quase insuportável duas gerações atrás e irritante em sua remasterização, é quase imediato, mesmo na retomada pós-morte. Um verdadeiro alívio, devo admitir, mesmo não sendo um os quesitos que me influenciam a gostar ou não de um jogo.
A interface remodelada de menus é muito parecida com a Parte II e traz as ótimas possibilidades de acessibilidade tão elogiadas e necessárias para tempos atuais, permitindo várias opções de contraste, movimento de câmera, auxílio de mira, audiodescrição, dentre outras. Também há uma complexidade incrível na customização do nível do desafio, que vai desde o Muito Fácil até um Punitivo (com direito ao assustador Permadeath) e que permite que o jogador possa escolher ele mesmo quais aspectos serão mais ou menos amigáveis. É possível, por exemplo, aumentar o nível dos adversários, mas aumentar também a nossa barra de vida, ou então deixar o dano adversário absurdamente forte mas nos atribuir a capacidade de aniquilar quem quer que seja com um único tiro.
Adiciona-se a isso tudo um NG+ que já vem logo no lançamento, possibilitando recomeçar o jogo ou com todas as adições e equipamentos ajustados (como as armas e seus upgrades, algo muito interessante uma vez que é muito improvável que se consiga deixar tudo no ápice só com as peças encontradas na primeira run), ou só com as melhorias provenientes dos medicamentos, como barra de vida aumentada e escuta ampliada. Dá pra ligar ainda o Speedrun Mode, que adiciona um cronômetro de monitoramento do tempo de jogo para os entusiastas do “quanto mais rápido, melhor”.
Ainda há uma série de desbloqueáveis que custam a moeda interna do jogo, basicamente pontos conquistados conforme se avança na trama, que servem tanto para novas skins para os protagonistas e suas armas principais – muitas das quais homenageiam grandes marcas da família PlayStation, como Ratchet & Clank, Horizon Zero Dawn, Shadow of The Colossus, Ghost of Tsushima, Jak & Daxter e outros – além de modificadores gerais como som em 8 bits, modo espelhado ou aberrações cromáticas. E para os fotógrafos de plantão, o modo Photo mantém o ótimo padrão atual e pode garantir horas e horas de jogo pausado para encontrar o melhor ângulo, o melhor filtro, a melhor profundidade de campo para aquela bela imagem do fim do mundo.
The Last of Us Part I, em resumo, é sem dúvidas a melhor versão de um dos jogos mais importantes da história da marca PlayStation e, porque não, da história dos videogames. O game mantém tudo o que fez dele um clássico instantâneo, como locações impressionantes, gráficos dos mais belos já criados, uma jogabilidade que consegue se equilibrar entre o mais simples modelo de tiro em terceira pessoa e o sofisticado equilíbrio entre a sutileza da furtividade e a brutalidade crua de batalhas sem misericórdia, mas principalmente por um roteiro afiadíssimo, emocional e viceral, retratando personagens críveis e envolventes bem como um ritmo milimetricamente preciso que não parece apressado nem arrastado demais em nenhum momento.
Não costumo considerar preço de lançamento um argumento para uma análise crítica, salvo quando o modelo de monetização pode ser um elemento que irá definir se um jogo será ou não uma experiência divertida para quem o adquiriu, porque, tal como pequenos bugs que por ventura surjam nesse período (como por exemplo texturas estranhas em copos e objetos de vidro), é um fator que muda com o tempo e, além disso, é relativo para cada jogador. Diante às características relatadas nesta análise, a de algumas mudanças mais significativas e outras nem tanto, fica a seu critério avaliar se o custo/benefício é justo ou não. Certamente, como vem ocorrendo desde o anúncio do jogo, será uma questão bastante debatida em fóruns e outros canais de diálogo, mas desta discussão me abstenho.
Seja como for, é inevitável dizer que The Last of Us Part I é uma das mais intensas recomendações para qualquer amante de jogos do gênero. É intenso, viciante, e somado à sua expansão também disponível nesta versão como já o era em sua remasterização, traz no mínimo duas dezenas de horas de uma diversão íntima, envolvente e impactante. Para quem nunca o jogou, é quase uma obrigação, visto que este remake deve ter sido motivado também para que a versão de PC chegue o mais cedo possível para quem não é um adepto da família PlayStation. Para quem já jogou e se tornou um fã, é uma ótima desculpa para voltar novamente a esse mundo, que inclusive tem algumas referências bem legais que foram resgatadas no segundo game. Já quem esperava algo diferente do original não encontrará aqui nada de tão significativo a ponto de rever suas percepções.
Como um grande fã da franquia, posso dizer que mesmo com o esforço em analisar este jogo mais objetivamente, é impossível não me sentir bastante satisfeito em voltar uma vez mais, na terceira plataforma, para este mundo tão vazio de esperança que, ainda assim, abriga uma das jornadas mais tocantes que já tive a oportunidade de vivenciar. The Last of Us é um jogo sim sobre criaturas medonhas e pessoas vivendo em seu limite, é sobre sobreviver em meio a completa falta de anseios e aspirações, é sobre vencer um exército de inimigos, vivos ou nem tanto, com poucos recursos, é sobre a ação com doses de terror, mas é sobretudo sobre a humanidade, é sobre encontrar meios de amar mesmo diante às nossas imperfeições e fazer escolhas impossíveis. Joel não é um herói, nunca foi. Ellie não é uma princesa indefesa, longe disso. E talvez por serem tão essencialmente humanos, protagonizem uma das aventuras mais significativas do nosso tempo que sim, merece ser revistada tantas vezes quanto pudermos.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Sony Interactive Entertainment.
Veredito
Ainda que não traga tantas novidades como poderia se esperar de um remake, The Last of Us Part I é um espetáculo absoluto e sublime do começo ao fim. Mantém todas as melhores qualidades que fizeram dele um sucesso retumbante em seu lançamento original e melhora detalhes técnicos que agregam valor a essa jornada tão visceral e impactante.
Although it doesn’t bring as many new features as one might expect from a remake, The Last of Us Part I is an absolute and sublime spectacle from start to finish. It retains all the best qualities that made it a absolute success in its original release and it improves on the technical details that add value to this visceral and impactful journey.
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