The Last Faith se autodefine como uma “aliança profana entre os gêneros metroidvania e soulslike”, o que é, de fato, uma descrição consistente. Se a ideia soa boa aos seus ouvidos, o jogo deverá agradar às suas expectativas, pois o que é prometido é exatamente o que é entregue.
Ainda temos que entender bem o que isso significa, certo? Primeiro, o próprio jogo fala de gêneros em sua apresentação. Gênero é uma categorização com base comparativa de semelhanças básicas sobre as quais se edifica a individualidade da obra. Logo, é válido começarmos apontando a genealogia do jogo.
The Last Faith é filho de Bloodborne na arquitetura tetricamente gótica e em suas pessoas afligidas pela praga que as transforma em feras. A dualidade de arma física auxiliada por arma de fogo, assim como as injeções vermelhas de cura, também fazem lembrar o único soulslike da FromSoftware que permanece exilado em um único console. Oh, e claro que também temos uma moça de vestido longo para canalizar o poder maldito que cresce dentrode nós (vulgo, “subir de nível”).
O estilo visual, porém, inevitavelmente leva a seu meio-irmão mais velho, Blasphemous. Aqui estão as cores opacas e pálidas, como uma versão sombria dos tons pastéis; a arte minuciosamente detalhada, parecendo mais desenhos convertidos em pixel art do que sprites construídos ponto a ponto; as cenas narrativas desenhadas nesse mesmo feitio rebuscado, mas movimentadas em animações minimalistas; as animações de execução que cada inimigo tem uma para chamar de sua; e, finalmente, o tema religioso, ainda que em The Last Faith este aspecto seja menos onipresente e, ehr, menos blasfemo. Oh, e sem elmo bizarro, felizmente!
Como um atavismo, The Last Faith lembra seus avós Castlevania, de Symphony of the Night em diante. Além do tema artístico de construções góticas, é claro, vejo a semelhança especialmente no andar do protagonista Eryk com sua casaca longa, não distante dos movimentos de Alucard, Soma e Shanoa na série de jogos de Drácula. Chego a pensar que os retratos de personagem presentes nos diálogos remetem ao estilo dos de Castlevania: Order of Ecclesia, mas chega de minúcias.
Entre seus primos metroidvanias, porém, o jogo de Eryk é um rebelde que prefere focar mais em criar atalhos destrancando portas e escadas e menos na aquisição de habilidades de ação e plataforma para promover o acesso expansivo e gradual ao mundo do jogo. É claro que elas existem, mas são pouco significativas para a gameplay em si, servindo mais como modos de destrancar bloqueios para liberar novas áreas e segredos.
A independência em relação ao lado soulslike da família está na ausência de um medidor de energia que limite suas ações. Portanto, sinta-se à vontade para usar combos e esquivar baseado apenas nas reações dos inimigos, não nas limitações de seu personagem.
Ainda assim, lá estão firmes e fortes o recurso único para subir de nível e fazer compras, a perda desse recurso acumulado ao morrer duas vezes, o sistema de melhoria de armas, os textos de descrição de itens, os chefes com barras de vida que exibem suas alcunhas. os NPCs dublados por vozes quase sussurrantes.
Atentem que as paredes quebráveis se fazem presentes aqui, sem qualquer indicativo disso além da sensação de que a sala parece ser um pouco maior do que aparenta. É sério, são muitas paredes quebráveis. Por isso, entrei no hábito de atacar toda parede e até descobri um chefe secreto ao acertar uma delas sem querer.
Ok, agora que acabamos as comparações, quão bem tudo isso funciona em The Last Faith?
É importante tratar de algo típico do gênero: a dificuldade. The Last Faith se orgulha da identidade de jogo desafiador e fará os jogadores terem boas doses de mortes para merecerem o direito de seguir adiante. No entanto, a dificuldade não é um valor absoluto em si mesmo, sendo influenciada por outros aspectos que vejo como elementos atenuantes das dores de Eryk e de quem joga.
O design de mundo, por exemplo. Os caminhos fazem voltas e retornam a pontos-chave, se reconectando por meio de muitos atalhos destrancados durante a exploração. O mapa inteiro é repleto disso e algumas áreas são estruturadas em torno de um portão trancado em um local central, que ramifica para uma porção de pequenos trechos onde estão os botões necessários para abrir a passagem. É um design seguro, mas competente em manter a coesão e o andamento da campanha passo a passo.
Agradeço pela filosofia de criar atalhos, pois eles minimizam o vai e vem de quando morremos e permitem que foquemos as forças em avançar, evitando o cansaço de ter que sobreviver repetidas vezes aos mesmos caminhos já trilhados.
Além disso, os pontos de salvamento são generosos. Alguns são temporários, mas a maioria proporciona também o alívio da viagem rápida: nas duas primeiras horas eu já havia desbloqueado seis ou sete pontos destes, praticamente anulando a frustração do backtracking, que é uma armadilha comum na realidade dos metroidvanias.
Os atalhos e pontos de viagem rápida se somam para o efeito benéfico de estimular a exploração de cada cantinho e o retorno aos locais já visitados para testar a capacidade de alcançar aquele item que deixamos passar antes. Por sinal, o mapa permite usar marcadores, um recurso que acredito que deveria existir em todo metroidvania. A variedade de ícones é baixa, mas são úteis para criar lembretes.
A própria campanha não aponta para um objetivo claro ao jogador, apenas nos deixa encontrar becos sem saída que serão revisitados por iniciativa nossa quando tivermos a habilidade adequada. Temos, portanto, um bom exemplar da não-linearidade esperada do gênero que define The Last Faith.
Por sua vez, o combate é exigente. No entanto, sem a barra de estamina, pode ser resumido a saber a hora de golpear e esquivar. Os inimigos batem forte, mas têm indicadores claros de quando vão atacar, o que remete à filosofia soulslike de observar os sinais, aprender o comportamento do oponente e esperar as brechas garantidas. Segundo essa filosofia, quem quiser esmagar botões e encaixar combos rápidos será punido por sua ganância.
Não há novidades nesse campo. Alterne entre duas armas em uma mão (com direito a ataques carregados) e, na outra, duas magias ou armas de fogo. O dano depende dos seus atributos, que serão aumentados a conta gotas se escolher consumir sua experiência para passar de nível.
Os equipamentos deixam a desejar por serem poucos e superficiais. Entendo que não é a proposta do jogo fornecer dezenas de opções de armas e feitiços, mas os acessórios parecem planejados pela metade: Eryk pode equipar até três amuletos, mas fiquei as primeiras horas sem nenhum deles e em quinze horas de jogo eu tinha encontrado apenas quatro, que concedem apenas bônus em forma de porcentagens. Ou seja: necessidade de escolha e influência estratégica praticamente nula.
Isso não chega a ser um problema, mas reforça a superficialidade de alguns sistemas que parecem estar lá apenas por força do gênero, entre os quais incluo os atributos de resistência aos elementos mágicos.
Deixei a história por último porque, honestamente, ela não faz grande diferença. Como já disse, nós controlamos Eryk, um prisioneiro amaldiçoado pela Nycrux que escapa em busca de uma cura, esperando encontrá-la em um mundo também afligido por uma praga. Ele não sabe onde está ou aonde deve ir, mas encontrará pessoas pelo caminho e na mansão que serve de local seguro que o explicarão sobre as cidades e instituições religiosas que formam aquele mundo.
Não que eu tenha entendido muito do que é explicado. Os personagens até falam bastante, mas é o tipo de texto de tom quase poético que serve mais para construir a atmosfera decadente do que para gerar entendimento. Talvez ser críptico seja parte do charme, mas certamente não colabora em tornar interessante a narrativa de um jogo que pode passar das 20 horas de duração para quem quer completar.
Um exemplo disso é quando uma mulher pede uma flor típica de certa rica cidade do mar, sem dizer o nome do lugar. Cheguei a uma nova cidade e só soube que era aquela quando encontrei o item correspondente. Nem mar havia lá, apenas pontes sobre o que parece mais um rio. Ou seja: a conexão veio pelo mero fato de achar uma flor qualquer após alguém ter pedido uma. O restante da descrição que a NPC fez da cidade deveria ter surtido algum tipo de antecipação emocional à minha chegada ao local, mas foi em vão.
Assim, continuei a desbravar um mundo de decadềncia, flagelos, mutações e escombros de religiões e suas catedrais, mesmo sem um destino certo. É mais ou menos como o próprio Eryk está, sem rumo, mas sem hesitação. Ele sabe que algo poderoso o consome por dentro e não deve sucumbir ao chamado sinistro da Nycrux que corre em suas veias.
The Last Faith é um jogo agradavelmente consistente e familiar, seguindo suas inspirações com orgulho e desenvoltura. Mesmo que não tenha algo que o torne único nem eleve os gêneros-fontes a novas alturas, os apreciadores de metroidvanias e soulslikes terão muitos motivos para participar da liturgia da última fé.
Em tempo: alguns problemas técnicos mostram que o título ainda precisa de polimento, pois até nas quedas de quadros por segundo parece seguir os souls da FromSoftware. Além disso, a tradução tem falhas simples, como portas “won’t open” adaptadas literalmente para ”não vai abrir”. quando o sentido convencional é “não abre”; ou o atributo “bleeding” como “sangrando” em vez de “sangramento”. É até estranho ver no menu de acessórios dois “charms”, traduzidos como “Charme da Noite”, em vez de Amuletos, como os demais. Dá para ver que não são questões que comprometam o bom aproveitamento do jogo, mas fica feio ver um jogo de pixel art tremer na tela e traduções simples passarem batidas.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Playstack.
Veredito
The Last Faith entra na ambivalência da familiaridade: ao mesmo tempo que cumpre sua promessa de misturar metroidvania e soulslike com competência, nunca surpreende ou inova. A campanha é desafiadora, mas seu bom ritmo de atalhos, pontos de viagem rápida e subida de nível nos impulsiona a avançar cada vez mais pelo mundo melancólico de pixel art gótica lindamente detalhada.
The Last Faith steps into the ambivalence of familiarity: while it fulfills its promise of aptly mixing metroidvania and soulslike, it never really surprises or innovates. Although the campaign is challenging, its good pace of shortcuts, fast travel and leveling up pushes us to advance further and further through its gothic world of beautifully detailed pixel art.
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