Um jogo de mistério em primeira pessoa, um adventure clássico com visão isométrica, um típico game de fantasia com combate por turnos… The Bookwalker: Thief of Tales é tudo isso e também não é nada disso. Vez ou outra, o mercado independente nos surpreende com algo que deixa de lado a simplificação classificatória em gêneros e se coloca como uma proposta experimental que se apropria sim de muitos dos recursos e artifícios consagrados na indústria, mas com um propósito nobre de subverter expectativas. Soma-se a isso um trabalho de arte peculiar atrelado à temática do universo fantástico da literatura, infinito em possibilidades, e a mistura pode ser nada menos que espetacular.
The Bookwalker nos coloca na pele de Etienne Quist, um escritor que, por algum motivo pregresso ao início de nossa aventura, está passando por uma condenação literária que o impede de escrever por um tempo maior do que qualquer artista gostaria de ficar tolhido de sua labuta. Suas alternativas são a de esperar sua pena terminar, pacientemente, recolhido em sua vida suburbana mequetrefe, ou procurar algum meio de encurtar extraoficialmente à força, se entende o que eu quero dizer, o seu castigo. Se há algo que as grandes mentes criativas tem em comum é uma certa incapacidade em seguir regras, principalmente as que lhes tiram a liberdade, e não é difícil imaginar que logo nos primeiros instantes, estaremos diante uma jornada onde será necessário fazer de tudo um pouco em troca da promessa por dias mais interessantes.
Nosso herói tem, pois, uma grande habilidade muito especial, a de adentrar obras da ficção de modo literal. Em uma forma quase que monstruosa, ele consegue andar pelos corredores escuros de masmorras, explorar laboratórios experimentais de um cientista desvairado, desbravar o universo em uma nave espacial futurista ou ainda caminhar tranquilamente por gélidas montanhas e, no caminho, conhecer personagens marcantes, resolver mistérios e, quiçá, levar alguma lembrancinha para o mundo real. Grandes poderes, claro, trazem grandes possibilidades de confusão, e tais capacidades chamam a atenção de gente muito poderosa com intenções diferentes da curiosidade. É servindo a esse tipo de demanda obscura que nosso protagonista se torna um ladrão.
O jogo, portanto, nos coloca em uma jornada nada nobre de roubar itens lendários dentro de livros em troca de uma possibilidade de nos libertar das algemas que nos impedem de escrever. As contas estão chegando, as cobranças não param e os credores são implacáveis, então as questões éticas ficam facilmente relativizadas. Mas nem todas as decisões serão tão simples assim de serem tomadas, e algumas encruzilhadas serão determinantes para que, quase sem querer querendo, nos importemos com quais as grandes motivações para o resgate, se assim podemos dizer, de relíquias que podem transformar para sempre o destino de mundos – assim mesmo, no plural. Mas, se afinal, estas são criações irreais, qual seria o motivo de nos preocuparmos? Essa é a pergunta que irá nos perseguir ao longo da aventura.
A exploração é muito bem articulada entre dois momentos principais: em um deles, no mundo real, exploramos um espaço bastante restrito da vizinhança de Etienne em primeira pessoa e lidamos com nosso reservado contratante. Os vizinhos parecem ranzinzas e pouco amigáveis e nosso apartamento é tão interessante quanto o caderno de economia do jornal. Ao entrar em um livro, a coisa muda, nosso personagem assume um visual peculiar com o rosto formado por páginas de livro e a perspectiva é alterada para um ponto de vista isométrico. Aqui, podemos interagir com objetivos em um modelo point and click, coletando recursos (como comida para restaurar pontos de vida, peças para criar ferramentas e lixo, que será útil de alguma forma), e resolvendo puzzles para progredir e alcançar os objetivos da missão.
Há ainda um terceiro momento onde criaturas alheias à obra parecem pouco contentes com a nossa presença por lá a ponto de nos desafiarem para batalhas mortais, assumindo formas específicas que aterrorizam seus inimigos, tal como o Bicho-papão da saga Harry Potter. Não dá para combater o medo, dentro de livros, com armas convencionais, claro. O grande trunfo no arsenal de nosso inesperado herói é extrair toda a tinta de seus inimigos para enfim, eliminá-los antes que façam o mesmo com ele. A tinta, aqui, é diegeticamente o poder de um escritor, e na prática funciona como a mana de um feiticeiro. Temos um barra limitada do recurso que pode ser investida em diferentes ataques em um formato por turnos. Inimigos tombados nos devolvem tinta, assim como alguns ataques permitem que recuperemos certas quantidades de volta. Como é de se concluir, gastar mais do que se tem pode trazer consequências bastante indesejadas.
Há, porém, o lixo, sempre o lixo. Não demoramos para aprender que alguns espaços chamados de bancadas são muito úteis não só para elaborar ferramentas como para extrair toda a tinta de coisas que não servem para mais nada. É assim que recarregamos nosso estoque quando fora de combate, o que faz da exploração de cada cantinho mais do que um fetiche de um bom adventure, mas uma necessidade para sobrevivência. E é nesse momento onde o level design de cada masmorra brilha, já que mesmo em desenhos labirínticos, poucas vezes nos faz sentir perdidos e desorientados. Os caminhos fazem sentido, a interligação entre um e outro cenário são autênticos e a solução de enigmas pode estar muito provavelmente nos diálogos tanto com outros personagens da trama como com nosso inusitado acompanhante, que faz as vezes, narrativamente, daquele melhor amigo para quem o personagem principal relata sentimentos e verbaliza intencionalidades.
Tudo seria muito bem azeitado se não tivesse um certo enrosco de interação. Por vezes é difícil se aproximar adequadamente de algum objeto que esteja próximo de outro, ou mesmo que esteja em algum canto menos acessível. Dois pontos de interesse próximos podem ser um incômodo, algo que evidencia que falta um leve ajuste no que se refere a acessibilidade para o modelo de consoles. Além disso, para constar, há ainda nesse momento pré-lançamento alguns engasgos técnicos, com um certo ponto de crash que ocorre sempre na mesma transição. Não costumo considerar estas derrapadas na análise, mas como aconteceu três vezes no mesmo lugar, parece ser algo relevante que muito provavelmente será corrigido em alguma das primeiras atualizações.
“Você está em um calabouço”, diz o jogo, como em um clássico RPG baseado em textos. O sistema de diálogos do game evidencia um texto afiado e muito bem articulado ciente de seu poder narrativo, algo que se espera de uma obra tão vinculada à literatura. Em um formato que lembra, de longe, clássicos modernos como Disco Elysium, há conversas que são passivas e outras que demandam uma decisão de rumos para o personagem, com direito a escolhas morais que moldam uma personalidade mais gentil ou mais calculista. A única falha aqui é, muitas vezes, a impessoalidade da coisa, já que em muitos casos fica difícil identificar, via interface, quem está falando o que, principalmente quando o rosto do interlocutor ainda é um mistério sobretudo no mundo real. Nada que seja incontornável, mas para quem está acostumado com toda uma sinalização gráfica em momentos assim, pode fazer falta algo mais didático.
A interface, aliás, demanda um certo aprendizado na gestão (ou na falta de) de inventário, já que é pouco evidente a forma com a qual os itens são organizados e para que cada um deles existe. O enquadramento diminuto da área de jogo em vários mapas (alguns deles exemplificados aqui nas ilustrações da análise), quando dentro dos livros, também pode ser questionável, já que os outros elementos complementares ocupam muito mais espaço do que deveriam. O resultado é que temos grandes manchas nos cantos da tela com a indicação de comandos e um miolo de tela que nos deixa perder detalhes em cenários, passagens e outros becos. O formato, uma vez mais, remete a clássicos do gênero dos anos 1990 dedicados ao PC, mas considerando o jogo em console com a tela da TV normalmente mais afastada que um monitor, poderia haver um equilíbrio maior. É possível ainda aplicar efeitos de zoom, mas que pouco contribuem nesse aspecto da distribuição de elementos em tela.
Elementos estes que, aliás, também evidenciam uma certa limitação gráfica. O estilo artístico é lindo e particularmente gosto muito de ilustrações e do uso de cores e de iluminação, mas certos cenários são um tanto quanto repetitivos, com algumas texturas de baixa resolução e um sistema de colisão aquém do que se espera da geração atual. Por sua vez, no mundo real, o espaço tridimensional é aceitável e não traz grandes deméritos, e a textura meio borrada até confere um certo charme vintage para um lugar que é feito para ser sem-graça. A transição entre um mundo e outro, confesso, é dos efeitos mais simples e batidos, mas que ainda causa uma boa sensação. Animações de combate e a fluidez do mundo em primeira pessoa deixam a desejar, mas é na movimentação do protagonista, lenta e desajeitada, onde tudo parece um tanto quanto datado. Talvez seja exatamente essa a proposta, particularmente eu só me incomodei quando queria atravessar uma sala de forma mais rápida, mas no geral, é parte de uma experiência também apoiada na nostalgia.
O universo literário é uma justificativa quase catártica e um verdadeiro parque de diversões para o roteirista. Em grande parte das vezes, coisas do tipo podem ou cair em uma bagunça pouco atrativa e bizarra só pelo impacto, e outras, como no filme Coração de Tinta, pode transparecer só um arremedo seguro do que poderia ter sido. Felizmente, em The Bookwalker: Thief of Tales, sinto que foi alcançado um ótimo equilíbrio entre eventos non sense, soluções inesperadas e uma coesão de mundo e de tonalidade da narrativa. Mundos diversos trazem regras diferenciadas, lógicas próprias e a necessidade de se adequar ao que está sendo proposto. Ao mesmo tempo, ainda que seja organizado quase que de forma linear e episódica, há um certo movimento coerente para o qual estamos sendo convidados pelo game, e o resultado é vivenciar uma experiência imersiva e realmente provocante.
A sensibilidade para tratar destes temas, aliada a uma condução muito bem orquestrada dos mistérios que encontramos (ou que nos encontram inadvertidamente), tal como a forma como as respostas vão se desvelando organicamente, é o que há de melhor no game. O ritmo da ação pode ser um tanto quanto cadenciado demais para os mais afoitos, e o sistema de batalha está longe de quaisquer elementos de inovação ou de renovação daquilo que já vimos dezenas de vezes antes. Entretanto, é no conjunto que o jogo se destaca, se valoriza, e ganha força. No final, The Bookwalker se leva tão a sério quanto poderia, transformando metalinguisticamente a si mesmo em um conto investigativo que, unindo o noir ao tradicional point and click, cria um conjunto muito maior do que a soma de suas partes.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela tinyBuild Games.
Veredito
The Bookwalker: Thief of Tales é o típico jogo que poderia ser subestimado à primeira vista e que, sem avisos, nos captura de forma arrebatadora, nos fazendo querer mais. Se tem suas carências em termos de batalhas e composição gráfica, compensa com um design preciso e uma história corajosa, ousada e cativante.
The Bookwalker: Thief of Tales is the typical game that could be underestimated at first glance and that, without warning, captures us in a gripping way and makes us want more. If it has its shortcomings in terms of battle and graphical composition, it makes up for it with precise design and a brave, bold and captivating story.
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