Não tem como contornar o fato de que análises são apresentações essencialmente subjetivas. Mesmo que isso seja claro, de vez em quando é bom reforçar a questão e indicar de onde vem o ponto de vista que deu origem ao texto — em outras palavras, qual é meu lugar de fala ao analisar TEVI.
Entrei no jogo ciente de duas perspectivas minhas em relação a certos aspectos dele. A primeira é que, mesmo lendo mangás há 25 anos, eu não gosto de waifus, furries e fan service de anime, coisas presentes nesse jogo. Não vou debater o tema, mas basta dizer que isso foi o bastante para o título passar longe do meu radar quando foi lançado em outras plataformas, no final de 2023. Inclusive, eu torcia o nariz para o estilo visual de Rabi-Ribi, o jogo anterior dos mesmos desenvolvedores.
A segunda perspectiva é que adoro metroidvanias e fiquei surpreso ao ver muitas pessoas em fóruns mencionarem que o jogo da coelhinha foi um dos melhores do gênero no ano passado. Isso despertou minha curiosidade e, agora que TEVI chegou ao PS5, resolvi ver como o game funciona para alguém com meus gostos descritos acima, fora do público alvo da estética proposta.
Felizmente, a resposta é positiva e a obra taiwanesa me convenceu de suas qualidades. Quais são elas? Vamos trilhar quatro vetores básicos: opções, história, combate e exploração.
Quero começar frisando um aspecto incomum para abrir uma análise: TEVI é repleto de opções e recursos de qualidade de vida. Comecei por esse ponto porque o retomarei em partes ao longo da review, mas o trabalho como um todo é muito bem feito nesse sentido e deve ser elogiado por colocar a experiência de quem joga em primeiro lugar, sem impor uma forma única para apreciar o jogo. A própria narrativa é um exemplo disso.
O título vem da protagonista Tevi, uma engenheira e exploradora com orelhas de coelho que vive em um mundo composto por três povos principais. Há os humanos (que possuem magia inata), os beastkins (aff, furries humanoides com traços animais, sem magia) e os magitechs (bioformas sintéticas mágicas). Entre estes últimos há vários tipos, incluindo os muito avançados anjos de Valhala e os demônios de Tartarus.
Nesse contexto em que magia e tecnologia têm a mesma fonte, o enredo envolve uma desastrosa revolta ocorrida no império de Az décadas atrás, uma imperatriz desaparecida e uma praga que se alastra. Também aborda o contato nem sempre tranquilo entre as diferentes gentes e facções que habitam nessas terras, balançando entre a comédia e o melodrama, a suavidade e o toque de morbidez, a fofura e a insinuação de sensualidade.
Em uma hora, prepare-se para passar alguns minutos lendo sobre a paixão por waffles; em outra, enfrente um vilão que faz experimentos em pessoas. Cientistas bobos, mas geniais, vão explicar suas pesquisas; rapazes ingênuos precisarão ouvir explicações, o que serve para passar informações a quem joga; rivais declamarão suas ambições, desconhecidos em necessidade contarão suas histórias trágicas ao nos pedir ajuda para salvar seus vilarejos e entes queridos.
Em resumo, TEVI costura vários clichês de anime em uma colcha de retalhos estilizada e, felizmente, bem construída, uma mistura de elementos que deve agradar aos apreciadores da categoria.
É importante entender que, no sentido narrativo, este é um ponto fora da curva entre os metroidvanias, se aproximando bastante dos JRPGs. As histórias vão percorrer o mundo, passando por várias cidades e conhecendo dúzias de NPCs. Temos até algo que lembra os grupos de JRPG, pois somos o tempo todo acompanhados pela anja Celia e o demônio Sable. Eles não são apenas companhia para a história, mas fazem parte das batalhas na forma de esferas tecno-mágicas que emitem nossos ataques à distância, o que justifica estarem sempre presentes com a heroína orelhuda e participarem de todos os aspectos do jogo.
Seguindo o ritmo dos JRPGs, é tudo contado sem pressa, com muitos e muitos diálogos, do tipo em que todo mundo tem algo a comentar, perguntar ou explicar, então prepare-se para muita exposição em todos os pontos-chave e até nas missões secundárias. Até o chapéu de Tevi é explicado para encaixar com a lógica da construção de mundo. Em geral, essa ficção é bem desenvolvida, especialmente os personagens e, ainda que não surpreenda nem inove, faz bom proveito dos estereótipos de animes/JRPGs.
Com tantos textos, o game também incorpora recursos para lidar com eles: podemos passar rapidamente as falas ou pular as cenas completamente, além de consultar um log do diálogo. Há ainda um vasto compêndio no menu que acumula todo o conhecimento adquirido para quando se quer lembrar dele. No entanto, não há tradução para português brasileiro, então temos que nos virar com o inglês ou outras opções de idiomas (o espanhol está nos planos futuros).
Todos os diálogos são dublados em japonês, contando com um elenco profissional de vasto currículo em animes e jogos. O trabalho é excelente e transmite muito bem as personalidades distintas e o clima de cada momento, juntando-se às ilustrações com expressões diversas e à escrita prolixa para formar um todo muito consistente que reforça a identidade de JRPG disfarçado de metroidvania. É sério, são dúzias e dúzias de personagens com ilustrações de múltiplas expressões.
Nisso, é preciso reconhecer a flexibilidade da execução de TEVI. Mesmo sendo construído com características narrativas de JRPG, seus criadores deixaram margem para quem não quer focar na história e até para quem quer ignorá-la completamente. Ainda assim, senti que muitas conversas se prolongam além do necessário e a única maneira de evitar isso é negligenciando a história, um aspecto que pode ser importante para você como é para mim. Diante desse impasse, creio que o mais indicado é entrar na aventura com disposição para alternar entre gameplay e leitura.
Para além da história longamente desenvolvida, temos no combate outro grande atrativo, repleto de sistemas profundos para concatenar as habilidades em combos longos e poderosos. Há uma infinidade de acessórios para equipar, limitados por uma pontuação que, na verdade, é bem generosa e permite usar dezenas deles ao mesmo tempo, gerando uma cascata de efeitos e vantagens que afetam todos os aspectos das lutas. Para ter uma ideia, os tipos de buffs e debuffs possíveis somados passam dos 100.
É nas batalhas contra chefes que o brilho tem sua força máxima. Mesmo sem ser acelerada, a ação é intensa e exige atenção para responder adequadamente. Todos os chefes têm múltiplas fases e carregam parte do DNA especial que TEVI herdou de Rabi-Ribi, o jogo anterior de seus criadores: ataques de bullet hell devastando a ação de plataforma 2D. A chuva de projéteis enche a tela mais e mais no decorrer da campanha e dá uma camada extra muito satisfatória aos combates com uma diversidade de padrões que faz cada chefe parecer único.
Devo admitir que achei as lutas um tanto mais longas que o necessário, pois todos os chefes têm mais de uma barra de vida, mas isso não chegou a manchar o alto nível de polidez e variedade que tornam esses numerosos conflitos os pontos altos do jogo inteiro e tais encontros foram sempre divertidos e desafiadores.
Se esse tipo de combate exigente assusta, não se preocupe, TEVI tem generosos oito níveis de dificuldade que podem ser alterados ao longo da campanha. Joguei boa parte no Normal+, que é o quarto mais difícil, mas depois, quando Tevi ficou mais poderosa, senti que precisava subir um degrau e fiquei mais engajado no modo Hard.
Há pequenas configurações que fazem bastante diferença, como uma que ajuda nas situações de bullet hell dos chefes: ela marca a hitbox de Tevi, isto é, o local onde ela é vulnerável a dano. Com isso, vemos que a maior parte do corpo dela não é atingido e apenas o pequeno losango branco (que você pode ver na imagem abaixo) pode ser danificado, o que é uma mão na roda para visualizar a noção espacial corretamente em meio ao caos de projéteis.
Outra menção notável é que dá até para ajustar a frequência em minutos com a qual o salvamento automático é ativado no arquivo de backup!
Também há opções para quem quer complicar a experiência. Ao iniciar um New Game nos deparamos com um menu de modificadores. São coisas como modo de speed run e de free roam. Este último retira todas as barreiras narrativas para permitir vagar pelo mundo de forma profundamente não linear, mas também elimina todas as cenas da história. Ainda que essas opções estejam disponíveis desde o começo, o próprio jogo indica que não são recomendáveis a quem se aventura ali pela primeira vez.
Ainda falta avaliar a exploração, certo? Afinal, disfarçado de JRPG ou não, este ainda é um metroidvania. Este ponto foi ambivalente para mim. Por um lado, achei os locais um tanto retilíneos demais. O foco é a pura travessia de locais enquanto encara inimigos até, eventualmente, esbarrar com o chefão local. Em poucos momentos TEVI requer pensar a respeito dos seus labirintos, então não espere puzzles ou uma grande variedade de mecânicas de terreno, embora ainda tenha alguns exemplares disso.
Por outro lado, ainda que se arrisque demais em chegar perto de ter um level design pouco inspirado, a agilidade das jornadas, a quantidade de itens escondidos e os cenários de fundo em pixel art bonita impediram que as áreas se tornassem interlúdios tediosos entre um chefão empolgante e outro. Isso é um alívio, pois o jogo é enorme e as aventureiras passarão por todo tipo de local em um metroidvania mais longo que a média, passando das 30 horas de conteúdo.
Na verdade, a variedade de áreas é um ponto positivo que ajuda a manter o interesse nas trilhas. É o de sempre: cidades, desertos, ruínas, locais submersos, e por aí vai. Cada local, porém, é bastante único e não passa a sensação de repetição visual. Para dar uma ideia, há pelo menos cinco florestas diferentes (sem contar pântano e jardim) e nenhuma delas se confunde com as outras.
O mundo é disposto em um mapa gigantesco, sem afunilar a protagonista em uma rota linear. De fato, há uma história principal a ser seguida, mas na maior parte do tempo não senti que estava preso a um único rumo. Sempre há alguma missão secundária ou área nova para ver até onde dá para explorar. O começo do aventura é um bom exemplo disso. Após a introdução, nos vemos com três objetivos diferentes marcados no mapa para cumprir em qualquer ordem. Ao terminar um deles, surgem mais dois, com um bom leque de opções.
Logo minha conclusão é que o level design não impressiona, mas se mantém interessante para, pelo menos, incentivar a procurar melhorias, descobrir caminhos e conhecer o vasto reino de Az e seus recantos misteriosos.
Para os caçadores de troféus, a boa notícia é que TEVI os tem de sobra: são 66 para conquistar. A má notícia é que muitos deles são dados ao finalizar o jogo sob condições específicas, sendo uma platina bem trabalhosa, voltada apenas para os mais dedicados que desejarão se aprimorar no jogo em várias runs.
Agora, tenho que reportar a parte chata: um bug me impediu de completar o jogo. Já estava em mais de 26 horas de campanha e 91% do mapa completo, o que me faz crer que era bem próximo do final, quando uma certa área mostrou-se uma grande bagunça, com transições entre salas que parecem estar desalinhadas e me levaram direto para dentro de paredes, além de problemas que barram o acesso a um dos objetivos secundários, necessário para prosseguir com o objetivo principal do local.
Não sei se esse problema atinge apenas algumas pessoas e eu dei azar ou se é uma pane geral, mas ele existe e é grave. O alívio é que entrei em contato com a CreSpirit e me responderam que estão cientes do erro e já trabalham na correção. Quando o jogo for atualizado e eu puder concluir a história, acrescentarei um parágrafo aqui notificando a melhoria, mas, infelizmente, por enquanto a experiência está passível dessa falha. A nota que seria 85 foi reduzida para 70.
As minhas 26 horas anteriores ao problema, no entanto, foram uma ótima experiência que superou minhas ressalvas pregressas. A estética proposta ainda não faz o meu tipo, mas o jogo não pode ser reduzido a essa faceta e mostra que tem isso e muito mais a oferecer em sua produção minuciosamente dedicada a entregar um bom jogo.
Jogo (versão de PS4) analisado no PS5 com código fornecido pela PM Studios.
Atualização (24/06/2024): o update 1.003, lançado em 24 de junho, corrigiu o bug de cenários que impediu meu progresso e eu pude concluir a dungeon sem mais problemas.
Veredito
Com exploração de metroidvania, intensidade de bullet hell, extensão narrativa e estética de JRPG e muita flexibilidade em suas opções, TEVI se destaca em seu meio com uma execução bem produzida em cada detalhe. Os longos diálogos podem atrapalhar o ritmo da jogatina e o design das áreas é relativamente simplista, mas isso não diminui o valor da obra como um todo, sendo recomendado a qualquer um que goste desses estilos. No entanto, há um erro que pode impedir o progresso em uma das áreas finais e, por consequência, a conclusão do jogo. A CreSpirit já trabalha na solução.
Delivering metroidvania exploration, bullet hell intensity, JRPG aesthetics and narrative, as well as a lot of flexibility in its options, TEVI stands out among its peers with a strong execution in every detail. The long dialogues can disrupt the pace of gameplay and the level design may be relatively simplistic, but this does not diminish the value of the work as a whole, which I recommended for anyone who likes those genres.
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