A arte é uma coisa estranha. Quando imaginamos que já estamos preparados para dialogar com um tipo de conteúdo específico, uma obra da qual já ouvimos falar, uma produção que tem referências conhecidas; quando acreditamos que já sabemos como seremos impactados, ela nos surpreende, nos supera, nos assusta. No mundo dos games, vez ou outra surge algo que nos tira do nosso lugar de conforto, inclusive quando nos metemos a racionalizar uma experiência para sistematizar uma análise, e Tchia é um destes casos. Esta característica de provocação, vale ressalvar, não significa necessariamente ser de alta qualidade ou não, são coisas que caminham felizmente em paralelo, mas nesse caso, ambas as coisas andam de mãos dadas.
Ambientado e imerso em uma região bastante específica e pouco conhecida do mundo, chamada hoje de Nova Caledônia, o game se posiciona desde sua apresentação como algo muito íntimo à equipe de desenvolvimento, que se apresenta na abertura do jogo agradecendo pela oportunidade de compartilhar um pouco sobre essa cultura riquíssima e que tem muito a nos ensinar. Partindo de uma premissa bastante singela, conhecemos a história de Tchia, uma jovem nativa daquela região que precisa se aventurar pelas ilhas do arquipélago em busca de seu pai, sequestrado pelo governante por motivos que vão sendo descobertos ao longo da jornada.
Contado como uma história infantil pelo que a literatura convencionou chamar de narrador não confiável, Tchia é uma narrativa, antes de mais nada, de descoberta, de deslumbre e de auto conhecimento, onde o conceito de resgate se mostra muito mais um artifício de roteiro para que embarquemos junto com a nossa heroína em uma viagem da qual, já sabemos, não há volta, não há um retorno para aquilo que parecia ser a normalidade. Tchia está passando por mudanças muitas vezes incompreensíveis para ela mesma e lida com suas angústias com a alegria juvenil que aprendera com aqueles que sempre estiveram presentes em sua vida, em seu amadurecimento. Desvendar o mundo é o meio para olhar para dentro, para compreender a si mesmo e o papel que ela deseja ocupar no mundo.
Quando assumimos o controle da protagonista, nossos primeiros passos são muito significativos sobre o que o jogo está nos propondo. Se temos em mãos uma ferramenta de ataque, um estilingue dado como presente de aniversário pelo pai, o recado é que com ele podemos atingir de coisas inanimadas a seres vivos, e que é importante ter cuidado com essa capacidade. Ao nos permitir acariciar todas as criaturas que encontramos, de serpentes marinhas a porquinhos, de um gato de estimação a golfinhos, Tchia estabelece uma conexão gentil e recíproca com a natureza, construindo sem pressa um modelo de personalidade responsável, de que aquele lugar responde a como o tratamos.
Não demora para que sejamos pegos, contudo, com outras ferramentas de jogabilidade que mudam completamente aquilo que nos era sugerido. Não quero entregar muitas surpresas, mas posso dizer que o sistema de combate do jogo é diversificado o suficiente para nos deixar interessados do começo ao fim, lidando com criaturas fantásticas que são evidentemente elementos estranhos em um mundo em relativo equilíbrio. Sair andando por aí a partir de diferentes perspectivas é das minhas atividades aleatórias e descompromissadas favoritas.
As referências do gameplay, aliás, aquelas que não são tão escondidas assim e nos parecem óbvias desde os primeiros materiais de divulgação, se mostram, desta forma, muito mais orgânicas do que só uma emulação vazia e, portanto, a liberdade de movimentação que vemos nas semelhanças com, claro, The Legend of Zelda: Breath of the Wild, serve à estrutura narrativa e à exploração em um movimento de cumplicidade com aquele lugar. A organização de tarefas e missões bem alinhadas, assim, não conflita com a sensação de escolha exatamente por evitarem mecanismos de urgência, algo que se mostra uma escolha coesa com a proposta da produção. Tchia tem um objetivo muito claro, mas é realmente livre para agir no mundo (e em equilíbrio com ele) e tornar suas responsabilidades possíveis. Ela não atravessa seu caminho, ela o vivencia.
De forma surpreendente, me vi envolvido por um sistema de movimentação sofisticado que se em algum ponto parece transparecer uma certa inocência desajeitada típica de uma garota (quase) comum, tal como é, por exemplo, o herói de The Last Guardian, também é muito satisfatório sentir que o jogo não parece fazer força para nos colocar cacos de adversidade só para oferecer uma resistência indelicada ao progresso. Tchia escala tão bem quanto um hábil membro do credo dos assassinos, e nada de forma tão fluida quanto uma certa exploradora de tumbas, porque tudo isso é parte daquilo que a faz ser quem é. Não é preciso aprender a viver no mundo dela, porque afinal, ele já a pertence. Claro, ela se cansa, e a gestão deste fôlego é parte da experiência, mas sem que isso pareça subestimá-la.
As diferentes atividades, algumas ilustradas em belas telas de carregamento, nos permitem peripécias muito funcionais, além de nos dar capacidades para quebra-cabeças e outras ações que são encadeadas pelo level design de um jeito que as tornam significativas e, mesmo que colocadas sempre de uma forma quase poética, ainda coerentes com a construção de mundo. Empilhar pedras para liberar acordes de uma canção, portanto, sem deixar a fantasia pueril de lado, é muito mais do que uma mecânica bacaninha ou um quick time event de respiro como muitas vezes vemos em outras produções. Tocar uma música utilizando um kulelê ou duas folhas secas, mais do que uma forma bonita de inserção cultural entre caminhadas, são ferramentas potentes de estabelecimento da ambientação.
Há então uma generosidade sobre o que é possível fazer em detrimento ao que deve ser feito obrigatoriamente. Para quem gosta de limpar o terreno antes de seguir para o próximo checkpoint das missões principais, Tchia é um prato cheio bem recheado, e há espaços que são muito mais dedicados a compor o universo do jogo do que lugares estritamente funcionais. A grande magia está no fato de que, ao contrário do que pode parecer e do que é, de fato, em outros exemplos, essa riqueza descompromissada de ambientes, cenários e lugares não obrigatórios não parece, em momento algum, um meio para alongar a narrativa para além do necessário. Na verdade, o jogo não está preocupado com tarefas “optatórias”, aquelas que se colocam como secundárias mas precisam ser feitas para obtenção de XP, equipamentos e coisas do tipo. Tchia não nos desafia a ficar no mundo deles, ele nos convida gentilmente. E o convite é irresistível.
Artisticamente, Tchia é um outro grande acerto em vários aspectos, e o primeiro deles está em um traço muito afável, que pode nos lembrar da simplicidade do desenho de uma criança ou de ilustrações de livros infanto-juvenis, mas que ao mesmo tempo sabe equilibrar muito bem modelos com uma sensação low poly com formas muito interessantes e bem resolvidas de iluminação e composição de cenários. O uso de partículas e de efeitos atmosféricos beira a materialidade, é quase que uma experiência sensorial seja na limpidez das suas águas até aquela suave névoa matutina que nos toca como um véu carinhoso. Soma-se a isso um belo trabalho de variabilidade climática que, quando trata da passagem do tempo vai para muito além de escurecer ou clarear cenários, e temos uma textura de produção surpreendente.
O uso das cores também se destaca por não economizar nos tons e tonalidades naturais, nos inundando com verdes e azuis desavergonhados, mas também por não fazer disso uma tela saturada e agressivamente pulsante. Tanto cenários naturalistas como construções humanas se mostram otimistas sem parecer que estão fazendo força para nos gritar que são bonitos. Cada quadro, cada passagem parece uma verdadeira pintura onde as cores mais parecem transparecer uma estado de espírito do que uma intenção previamente estabelecida. É como se essa intensidade fosse muito mais uma consequência do trabalho entre direção de arte e fotografia do que um objetivo final por si, muito mais um resultado do que uma ação deliberada. Ele não é belo porque se apropria incrivelmente bem das cores, mas sim, por mais contraditório que seja, é exatamente o contrário, as cores emanam da beleza que foi colocada ali.
O que me arrebata, porém, está muito mais naquilo que eu ouço do que naquilo que eu vejo. Com um trabalho de sonorização – muito bem mixado e envolvente no uso do Pulse 3D, diga-se de passagem – que flerta com o minimalismo em certos momentos e com a riqueza da diversidade em outros, o jogo nos brinda com um trabalho de vozes primoroso e diferente de tudo o que já estamos acostumados, não só por ser falado, em grande parte do tempo, em um dialeto incomum para nós, mas principalmente com uma naturalidade dos atores que foge de quaisquer pretensões megalomaníacas de interpretações afetadas, e incorpora a sutileza, o intimismo e a leveza tão valorizados na proposta com diálogos cheios de ternura e significado.
E tudo isso é potencializado por uma trilha musical encantadora, com canções que ficaram na minha mente, me emocionando de novo e de novo, que uma vez mais se aproveita daquilo que é tão local e que, exatamente por ser tão genuíno, nos afeta de modo universal. A música é um recurso intrínseco a cada novo vilarejo, a cada nova comunidade que conhecemos, e sua inclusão é absolutamente perfeita em forma e em conteúdo. Há, inclusive, três formas bem estabelecidas de se tocar um instrumento no game: seguindo uma canção como em jogos de ritmo convencionais, que serve como um minigame clássico de entrada em momentos chave; sacando o instrumento para tocar uma sequência que tem efeitos como invocar criaturas ou mudar o clima; ou simplesmente tocar livremente com uma profundidade que vai despertar belos sorrisos em quem sabe o que fazer com as notas.
Com um ritmo confortável e acertos que permeiam narrativa, audiovisual e as mecânicas de jogo, Tchia é um conjunto de elementos que transbordam uma evidente paixão de todos os envolvidos para nos entregar uma experiência simplesmente apaixonante. Para não deixar de citar aquela nota de rodapé, há alguns engasgos técnicos que podem acabar incomodando em certos momentos, como detalhes de colisão que surgem vez ou outra e nos enroscam em quinas e cantos tortuosos ou não deixam que as nossas pedras empilhadas caiam ou não do monte, pequenas arestas que tentem a ser resolvidas em ajustes e refinamentos nas atualizações futuras de desempenho. Também houve um problema, visto inclusive no vídeo, onde foi necessário recarregar o jogo para visualizá-lo já que por algum probleminha ele ficou completamente escuro, além de uma passagem de corrida que simplesmente não funcionou. Coisas pequenas diante o todo, mas que acabam sendo aspectos a serem relatados em uma análise objetiva.
No mais, destaque para o desenho de jogabilidade em navegação que me deixou boquiaberto ao criar camadas interessantes para uma atividade que em jogos mais gananciosos é tratado como algo leviano, e que aqui, até pelo valor a essa atividade dado pela comunidade ali retratada, é muito mais complexo e, exatamente por isso, também mais divertido. Não devo esquecer ainda de falar sobre uma interface de menus e uso de itens que poderia muito bem cair no óbvio mas que, de novo, buscou na originalidade uma forma de nos envolver com as coisas mais simples, como pegar uma frigideira, por exemplo, e decidir se vai guardá-la, ou arremessá-la do mesmo jeito que fazemos com frutas ou com gatos. Chega a ser hilário levantar um porquinho e ter que tomar a decisão do que fazer com aquilo. Um bobeira, claro, mas são as bobeiras que fazem toda a diferença. Porém, o mapa do jogo e a localização de tarefas e pontos de interesse poderiam ser um pouquinho mais intuitivos.
Tchia, como creio ter ficado evidente ao longo desta análise, me proporcionou uma experiência bastante única e por mais que eu tenha me preparado para o formato que os materiais de divulgação demonstravam, tudo me capturou intensamente e me trouxe sensações inexplicáveis. Encantador do começo ao fim, o jogo é um verdadeiro deleite para adultos e crianças ao ser muito verdadeiro consigo mesmo e com a história que se propôs a nos contar, do modo como deveria ser contado. Emocionante, intenso e intimo, ele não se furta em tratar de temas complexos ou até espinhosos, porque estava muito certo da forma como escolheu abordar suas temáticas. Sem pirotecnias, aquilo que torna o jogo tão imersivo não é sair por aí fazendo malabarismos, nadando com golfinhos ou vencendo a opressão política, mas o simples ato de viver este mundo pelos olhos de Tchia em seus medos, aspirações e motivações, e com isso permitir que ele nos tome por completo e nos transforme para sempre. E não é para isso que serve a arte?
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Awaceb.
Veredito
Com pequenos ajustes técnicos a serem feitos, Tchia é uma verdadeira obra de arte em todos os seus aspectos que, somados, nos permitem uma viagem pela rica e ainda desconhecida cultura da Nova Caledônia. Com solidez e leveza na jogabilidade, gráficos cativantes, música hipnotizante e uma narrativa sutil e delicada, é um jogo simplesmente encantador.
With minor technical adjustments to be made, Tchia is a true masterpiece in all its aspects, which together allow us a journey through the rich and still unknown culture of New Caledonia. With solid and light gameplay, captivating graphics, mesmerizing music, and a subtle and delicate narrative, it is a simply delightful game.
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