Ship of Fools – Review

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Estaríamos todos nós fartos de experiências do tipo roguelike (ou sua variação mais permissiva, o roguelite) dada a oferta extremamente generosa de jogos do gênero nesta última década? Certamente a resposta a esta pergunta depende do quanto cada um de nós investiu tempo e dinheiro em games como Returnal, Curse of the Dead Gods, Dead Cells ou mesmo o fenômeno cultural Hades, dentre tantos outros, mas não há dúvidas que o formato tem ganhado cada vez mais espaço, seja na produção independente, seja nas de grande orçamento e apelo, e nem sempre com a qualidade e o refinamento que fazem desse segmento aquilo que o tornou tão popular.

A boa notícia é que Ship Of Fools, desenvolvido pela Fika Productions e distribuído pela experiente Team17, não só se apropria de algumas das melhores qualidades desta abordagem cíclica como as une com outra ainda mais tradicional, a boa e velha defesa de torres, além de valorizar o já combalido coop local, sem descuidar da possibilidade on-line. A composição garante um certo frescor a uma aventura náutica simpática que nos conta sobre intrépidos heróis que decidem enfrentar os perigos do mar para trazer de volta a luz do Grande Farol para o seu povo poder voltar a velejar novamente em paz, sem o risco de serem devorados pelas grandes criaturas das profundezas.

Ao iniciarmos nossa jornada, ainda sozinhos jogados na praia, encontramos uma figura misteriosa que nos ensina tudo aquilo que precisamos saber sobre como sobreviver a águas misteriosas. Antes de mais nada, é necessário manter nossa embarcação íntegra o suficiente para não afundar, então peças de madeira, raras e valiosas quando em alto-mar, serão muito bem vindas para se arrumar eventuais avarias. Porém, melhor do que corrigir o que está quebrado é evitar que se chegue a esse ponto, ou ao menos adiar o inadiável pelo máximo de tempo possível. Só que não faltarão forças que farão de tudo para nos parar, e monstros são só uma pequena amostra dos perigos que nos aguardam.

O modelo, dito isso, é se avançar em incursões por um cenário compartimentalizado como uma tabuleiro hexagonal, com cada célula compondo um trecho do caminho a ser percorrido. Isso significa que há sempre algumas opções para o avanço do jogador depois de superados os desafios da localização atual, uma construção de trilha onde se pode priorizar o tipo de bonificação desejado. Por exemplo, alguns caminhos garantem madeira como prêmio; outros, dinheiro pra compra de alguns facilitadores (dos quais falarei mais adiante), além de baús secretos e ossuários, principal moeda do jogo para melhorias permanentes. Em outras palavras, acabar com os inimigos de cada trecho garante um tipo de prêmio diferente e o direito de continuar seguindo adiante.

A derrota, aquela que sempre vem, nos leva de volta à praia onde está o nosso hub de partida. Lá podemos nos alternar pelos personagens selecionáveis – dois dos quais já estão disponíveis logo de início e os demais sendo resgatados, de formas bem criativas, durante novas investidas – além de conversar com tipos esquisitos que nos guiam e nos oferecem upgrades permanentes em nossos cofres, nossas habilidades específicas e principalmente em nossa embarcação. É possível trocar ossuários por pontos extras de HP, munição especial e outras benesses que serão úteis mais adiante. Não demora para que tenhamos também uma mercadora que nos oferece novos armamentos e melhorias para eles. Em resumo, é onde damos um passo adiante em nossa preparação para termos condições de ir um pouco mais longe na próxima entrada.

Configura-se assim a receita básica para o tal roguelite, onde nossa estrutura inicial vai ganhando melhorias pontuais e definitivas de acordo com nosso aproveitamento durante as incursões anteriores. Há ainda adições pontuais que podem ser adquiridas ao longo de cada nova aventura, como dispositivos com novos tipos de munição, escudos para defesa adicional e outras traquitanas que, instaladas, podem gerar bônus de dano, de força, de defesa, de velocidade e outras possibilidades. Há outros gadgets que são implementados não na embarcação, mas ao personagem, o que na prática não muda tanto assim, sobretudo quando se joga em modo solo, mas que conceitualmente dá vantagens à atuação do personagem e não de forma passiva ao seu equipamento.

Tudo isso, claro, serve ao propósito básico de sobreviver enquanto tenta derrotar as grandes e verdadeiras ameaças dos sete mares, poderosos e imponentes, que avançam pelo mapa enquanto navegamos em direção ao conflito inadiável. Para tanto, nosso barco conta inicialmente com canhões que devem ser manipulados para evitar que quaisquer perigos se aproximem, e nosso imponente remo para uma luta mais intimista quando esta se faz necessária. Jogando sozinho, iniciamos com duas armas principais, sendo uma delas automatizada e pronta para atirar no que se mexer e a outra de operação manual. Ambas contam com munição limitada e precisam ser recarregadas pelo jogador. Com alguém ao lado, ambas devem ser controladas pelos jogadores, que devem se organizar para garantir que se cubra todas as vulnerabilidades da embarcação.

As canhoneiras, tal como outros dispositivos, podem ser movidos de lugar, então há uma liberdade em tempo real de se posicionar seus ativos onde for necessária a força. Se os inimigos se concentram a bombordo, por exemplo, pode-se colocar as armas deste único lado, mas o normal é cobrir ambas as laterais já que é mais comum inimigos múltiplos atacarem por todos os lados. Além de atirar, há invasores que devem ser expulsos na base da porrada, consertos a se realizar no casco avariado, recarga e outras atividades que merecem atenção, tudo acontecendo enquanto somos atacados vorazmente. Para os já iniciados, é um sistema bastante familiar de defesa de torres em tempo real, que mescla uma preparação anterior com a atuação direta no conflito.

Inicialmente, logo nas primeiras tentativas, tomamos um verdadeiro choque de realidade (e vocês podem conferir os meus primeiros momentos no vídeo que abre esta análise) que mostram o quão implacável é este mundo para calouros. Gerenciar as diversas demandas e os poucos recursos pode ser uma tarefa ingrata a princípio, mas não demora para que sintamos a maior demanda do gênero: a nossa capacidade de resiliência. A coleta gradativa de itens de melhoria – sejam eles pontuais ou permanentes – e a prática, juntas, levam a lugares mais interessantes e promissores, garantindo a sensação de progressão constante, ainda que lenta. É difícil voltar de uma investida sem ao menos alguns espólios úteis, então para quem se frustra com entradas infrutíferas e punitivas que podem parecer perda de tempo, a boa notícia é que dificilmente voltamos à base de mãos vazias.

A experiência em combate, aliás, é cada vez mais essencial, considerando que é necessário fazer muita coisa ao mesmo tempo. Cada passo é fundamental, e otimizar os movimentos é a diferença entre uma vitória arrasadora e uma derrota humilhante. Muitas vezes os comandos podem se misturar e nos fazer perder segundos preciosos, e poderia haver uma melhor distribuição de botões de ação para que, por exemplo, você não pegue um item jogado no chão ao invés de assumir o controle de um canhão instantes antes de um ataque inimigo. Não é difícil aprender os controles básicos, mas a interação com objetos, principalmente em momentos com mais coisas acontecendo em volta, pode enroscar a dinâmica toda. Pelo lado bom, essas confusões causam situações hilárias, quando não irritantes. Na maioria das vezes, as duas coisas ao mesmo tempo.

A notícia menos empolgante é que tudo isso depende de um modelo repetitivo e que perde o senso de novidade bem rápido. Mesmo com variações possíveis de caminhos, cada passagem tem alguns tipos bem definidos de inimigos e obstáculos, então não demora para que nos vejamos enfrentando exatamente as mesmas hordas que já vencemos dezenas de vezes antes, com estratégias que já sabemos usar bem, só para acumular riquezas. Sim, a repetição é parte da experiência, então já é esperada, mas ainda assim, com um modelo de combate bastante limitado, tudo se torna pragmático demais muito rapidamente. Não ajuda o fato de termos que repetir grandes trechos superados, incluindo batalhas contra chefes, a cada nova entrada, e mesmo que cada vez seja relativamente mais fácil por estarmos o tempo todo melhorando, é algo a se considerar na decisão de tentar mais uma vez, e de novo.

Ship Of Fools, portanto, pode ser um tanto quanto frustrante para se jogar sozinho por exigir muito e entregar um avanço bem comedido. Por outro lado, é um jogo que parece ser desenhado para a experiência compartilhada com outra pessoa, porque tudo que pode ser enfadonho mesmo para jogadores experimentados no gênero jogando sozinhos se torna extremamente divertido quando compartilhado com outro marujo ao lado, no sofá ou on-line. Pessoalmente, tracei um paralelo com a experiência de se jogar a série Overcooked sozinho ou acompanhado. Ainda que aqui a dependência de um parceiro seja menos intensa, o planejamento coletivo e a sincronia são tão proveitosos quanto, o que significa que o jogo é, em essência, muito melhor quando aproveitado ao lado de alguém.

Não há como não citar também o belíssimo trabalho artístico que permeia toda a obra. Se em um primeiro momento o estilo estético e a movimentação podem nos lembrar vagamente de jogos como Don’t Starve e Cult of the Lamb (este último dos mesmos desenvolvedores de Ship of Fools), bastam poucos minutos para nos encantarmos com um uso vibrante de cores e um detalhamento de cenário muito agradável. O traço cartunesco e exagerado salta aos olhos na composição extremamente feliz de cada personagem selecionável e, principalmente, dos NPCs que vão povoando o mundo a nossa volta, cada qual com uma referência marinha que poderia ser perturbadora, mas que ao invés disso os preenche com personalidade e carisma de um jeito bem, digamos, peculiar. Senti falta de diálogos e outras linhas opcionais que dessem mais profundidade a todos eles, mas entendo que é uma demanda muito mais pessoal do que uma falha em si, dado o formato do jogo.

Aliás, talvez o que melhor defina o quanto o visual do jogo é cativante é que os três níveis disponíveis parecem pouco. Faltam objetivos secundários, inimigos diferentes ocultos, ambientes secundários dentro do mesmo mundo, e variedade como um todo. Se cada lugar e cada inimigo tem seu charme, sua própria palheta de cores e componentes muito característicos, seria incrível ver o quão longe poderia se chegar com mais coisas representadas. O modelo de compartimentalização bem desenhado é permissivo e poderia ser escalado sem muitas dificuldades. E sim, estou clamando por mais Ship of Fools, seja em possíveis expansões, seja em futuras continuações.

Por outro lado, se há algo que satisfaz mais do que os gráficos, é a trilha sonora, composta por temas, que abusam de metais e cordas, simplesmente incríveis tanto para as passagens regulares quanto para seus chefes, que intensificam o senso de aventura e que tornam o caos ainda mais divertido. Soma-se um bom trabalho de ambientação e de ruídos e o pacote está completo, fazendo com que nem sintamos falta de vozes para os diálogos. Pena o texto estar somente em idioma estrangeiro, algo que pode enroscar algumas orientações e definições do que cada apetrecho faz para quem tem mais dificuldades com a língua inglesa.

Como um todo, Ship of Fools é uma experiência roguelite divertida e muito satisfatória, mesmo que possa se tornar extremamente repetitiva principalmente para quem se propõe a jogar sozinho e não tem paciência para reiterações constantes e sem tantos elementos de diferenciação entre uma corrida e outra. O jogo é, de certa forma, convidativo para novatos no gênero por premiar cada entrada com algo a se somar nas habilidades permanentes, algo que ameniza sensações de frustração típicas de roguelikes mais ferrenhos. Para os veteranos, já calejados, não há dúvidas que pode ser um investimento bastante satisfatório, principalmente se também houver o interesse pelo clássico tower defense. A recomendação máxima, porém, se dá quando, além de tudo isso, o jogador tiver alguém, um imediato, para poder compartilhar a loucura e a pilhagem de um dia comum em águas desconhecidas infestadas por criaturas vis e outros perigos.

Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Team17.

Veredito

Ship of Fools traz uma mistura inusitada e muito bem equilibrada entre a tradicional defesa de torres e a essência de um belo roguelite. Ainda que carregue consigo o ônus de um modelo que pressupõe a repetitividade, é divertido, caótico, belo e, como um todo, bem divertido.

80

Ship of Fools

Fabricante: Fika Productions

Plataforma: PS5

Gênero: Roguelite

Distribuidora: Team17

Lançamento: 22/11/2022

Dublado: Não

Legendado: Não

Troféus: Sim (inclusive Platina)

Comprar na

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Ship of Fools brings an unusual and very well balanced mix between traditional tower defense and the essence of a beautiful roguelite. Even though it carries with it the burden of a model that presupposes repetitiveness, it is fun, chaotic, beautiful and, as a whole, quite entertaining.

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Ship of Fools brings an unusual and very well balanced mix between traditional tower defense and the essence of a beautiful roguelite. Even though it carries with it the burden of a model that presupposes repetitiveness, it is fun, chaotic, beautiful and, as a whole, quite entertaining.

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