Analisar um jogo pelo qual você estava ansioso é uma tarefa complexa. A própria tarefa de jogar um jogo para dar uma opinião sobre ele é revestida de vícios, uma vez que a nossa visão sobre um jogo sempre vai ser inerentemente afetada pelas nossas experiências, preferências e visões sobre nosso hobby favorito (e sobre o mundo).
Analisar um jogo então que é um dos títulos mais aguardados por você se torna uma batalha entre tentar manter uma visão mais distante e fria sobre a experiência, ainda que, lá no fundo, sua opinião ainda vá ser afetada pelo que você esperava ou não do título. O que isso tudo tem a ver com Scarlet Nexus, novo título da Bandai Namco lançado para PS4 e PS5?
Bom, eu estava hypado para Scarlet Nexus. Desde que o título apareceu pela primeira vez durante o Xbox Series X Showcase em maio de 2020, ele automaticamente se tornou um dos meus jogos mais aguardados desse começo de geração. Mesmo que RPGs de Ação não sejam meu subgênero favorito dentro dos meus amados JRPGs,qualquer tentativa de criar algo novo e único me cativa, e a Bandai Namco, quando foge da formulaica estrutura da série Tales, entrega algumas das mais distintas.
Afinal, dos experimentos lá no PS2 com Xenosaga à subestimada série God Eater, a Bamco sempre conseguiu entregar títulos divertidos mas que costumam passar batido do grande público graças à fama da publisher de só publicar jogos de anime. Mas, vez ou outra, vemos jogos com ambientações e premissas únicas sendo lançadas e mantendo a estética típica dos jogos da publisher.
De várias formas, Scarlet Nexus é mais uma obra nascida da união de mentes criativas únicas se libertando de certas amarras para criar algo totalmente novo (algo no qual eles bateram bastante durante a divulgação do jogo). Unindo o produtor Keita Iizuka (responsável por outra obra singular da Bandai Namco, Code Vein), com o diretor de batalha de Tales of Xillia, Kenji Anabuki, trata-se de um RPG de Ação em um futuro distópico com estética “brainpunk”.
Vamos ser honestos aqui. Brainpunk é… Um universo Cyberpunk em que tudo gira em torno do cérebro das pessoas. É um nome novo interessante e chamativo, mas não é um conceito tão único quanto pode parecer. O que isso significa é que os personagens do jogo se valem de uma tecnologia em que computadores estão conectados diretamente ao seu cérebro, sendo possível mandar mensagens, acessar computadores ou usar poderes graças ao quão evoluídos os cérebros humanos se tornaram.
Nesse contexto, os personagens principais do jogo, Yuito Sumeragi e Kasane Randall, fazem parte de uma organização chamada FSC (Força de Supressão de Criaturas), uma corporação de guerreiros de elite do país de Nova Himuka que trabalham para manter a população à salvo de monstros misteriosos chamados apenas de “Criaturas”.
O jogador, logo na tela de seleção, escolhe um dos protagonistas e verá todo o desenrolar da história do ponto de vista de Yuito ou Kasane. Essa decisão afeta bastante, já que por cerca de 80% do jogo os caminhos dos dois são opostos, com os personagens não sabendo o que está acontecendo com ninguém da outra equipe, salvo por raras interações.
É difícil falar muito sobre a história sem sentir que se está estragando a experiência. É suficiente dizer, no entanto, que apesar do jogo começar como uma simples história de novos cadetes se juntando a esse poderoso exército e lutando contra monstros, ela evolui para uma guerra civil, com uma ameaça capaz de destruir a Terra como plano de fundo para os acontecimentos.
A estrutura é interessante e que torna a narrativa bem mais misteriosa. A ideia de colocar o jogador no controle de dois protagonistas vendo lados distintos de uma história é algo que o próprio Tales of Xillia havia feito, mas a forma como é implantada aqui funciona para maximizar tornar os mistérios do título e a complexidade da narrativa proposta.
Isso se dá pois em momento algum você verá cenas pelos olhos de outros personagens. À todo momento você estará acompanhando Yuito ou Kasane, sem que o jogo te dê qualquer sinal do porquê determinadas coisas estão acontecendo até que o próprio personagem descubra.
Não quer dizer que seja uma decisão perfeita, pois até o capítulo 5 da sua primeira campanha você ficará bem confuso com a quantidade de informações que o jogo despeja em você sem te explicar. Há toda uma rede complexa de relações entre os personagens e suas famílias, conceitos desse mundo, lendas e conspirações que você simplesmente não tem como conhecer.
No entanto, após um determinado ponto, a história parece clicar no lugar e a narrativa deslancha. Não que ela traga grandes plot twists imprevisíveis, mas é tudo feito com muito cuidado, com a quantidade certa de indícios do caminho que será seguido, mas sem te entregar tudo de mão beijada e estragando a experiência.
Ainda assim, é uma história que exige muita atenção e é uma experiência que só se completa ao jogar com os dois protagonistas. Não é pra dizer que não há erros, já que existem algumas conveniências e coincidências que podem incomodar alguns jogadores e algumas das reviravoltas são meio exageradas.
Talvez o que mais tenha me cativado, no entanto, não seja o plot como um todo, mas a moral por trás do que Scarlet Nexus tenta contar. É fácil ver tanto Yuito quanto Kasane como protagonistas padrões de JRPGs, até mesmo pelo seu visual, mas ambos passam por um crescimento exponencial ao longo das cerca de 25-30 horas que cada campanha dura (e você precisará jogar as duas para entender tudo).
Em seu cerne, Scarlet Nexus é uma história sobre o quão falha a humanidade é. Sobre como não importa o quanto a tecnologia evolua, a busca incessante por poder é capaz de corromper à todos, mas só através do reconhecimento das nossas falhas e daquilo que nos torna únicos e a união de seres falhos em busca de um bem maior é a única coisa capaz de criar um futuro melhor.
Isso vai da evolução de Yuito, o membro mais novo da família mais tradicional de Nova Himuka e filho do Presidente do país, conhecendo seus defeitos, mas mantendo o seu coração bom para olhar além dos erros dos outros e unir o grupo de soldados ao seu redor e liderá-los. E vai também da evolução da Kasane, de extremamente poderosa mas incapaz de confiar nos outros mas que é forçada a aprender a se apoiar e contar com os demais membros do seu pelotão.
Aliás, aqui merece destaque também o fato de que todos os outros oito personagens principais também são muito bem desenvolvidos. Cada protagonista conta com outros 4 membros em seu pelotão, que o ajudam em combate e que estão ao seu lado durante a enorme maior parte do jogo.
Kasane conta com a superveloz Arashi Spring, o mestre da invisibilidade Kagero Donne, o eletrocinético Shiden Ritter e a “mãe” do pelotão capaz de se duplicar Kyoka Eden. Já Yuito tem ao seu lado o poder de teletransporte de Luka Travers, o poder de defesa de Gemma Garrison, a clarividência de Tsugumi Nazar e a pirocinese da sua amiga de infância Hanabi Ichijo.
Todos os personagens possuem personalidades bastante distintas entre si e funcionam muito bem individualmente, mas a combinação de todos é outro dos elementos que tornam Scarlet Nexus tão incrível. Cada personagem tem um papel importante no plot e ajuda a movê-lo para frente, sem que qualquer um deles seja deixado de lado ou pareça alheio aos acontecimentos do título.
Naturalmente, tudo ainda gira em torno de Yuito e Kasane, mas é fácil perceber como cada novo evento afeta os personagens em si e todos aqueles ao seu redor, incluindo outros personagens secundários. E é importante apontar aqui que o trabalho excepcional feito com a dublagem americana e japonesa contribui demais para o quão carismáticos os personagens são, com as vozes realmente casando com os personagens.
Nisso é importante apontar outro grande mérito da Bandai Namco: Scarlet Nexus está totalmente legendado em português brasileiro. Não há dublagem em nossa língua, mas todos os menus e todos os diálogos possuem tradução e, apesar de alguns pequenos erros, a localização condiz perfeitamente com o que está sendo dito nos diálogos.
Cabe também dizer que, embora Scarlet Nexus conte uma história completamente fechada em si, a ambientação é construída de forma magnífica e estabelece esse universo para ser expandido no futuro. O mundo em torno de Nova Himuka é fascinante, com vários elementos sendo explorados ao longo do jogo de forma a te deixar curioso para saber mais, além dele deixar fios o suficiente que podem ser puxados em diversas direções para contar várias novas histórias nesse universo.
Algo que também contribui para isso? Scarlet Nexus é lindo. Um dos pontos que chamou a atenção na revelação do título em 2020 foi a sua estética e não só ela é espetacular, como os elementos que compõem a parte visual do jogo são lindíssimos no PlayStation 5. O jogo realmente tira proveito do potencial da Unreal Engine 4 e do poder do novo console, entregando um jogo em 4K e que roda a 60 quadros por segundo, com algumas raras quedas para casa dos 50 quadros.
A única reclamação que pode ser feita aqui é que, apesar do quão bonito o jogo é, ele ainda cai na tradicional armadilha de contar sua história através de longas sessões de visual novel. Todas as cenas são geradas com os gráficos do próprio jogo, sem retratos em 2D e são exibidos de forma bem estilosa, mas se você tem problema com cenas com personagens parados conversando, vai sofrer aqui, já que cenas animadas de ação fora do combate são raras.
Apesar de todos os elogios feitos à história e ambientação, essa não é a melhor parte do jogo. O combate é. Talvez a melhor forma de entender o quão divertido o combate pode ser seja exatamente jogando a demo que a Bandai Namco lançou algumas semanas antes do título chegar oficialmente às lojas, mas vamos tentar descrevê-lo.
SN entrega um RPG de Ação extremamente estiloso. O combate te coloca no controle do protagonista selecionado, com cada um deles possuindo uma arma específica e ataques ligados a essa arma, além do mesmo poder: psicocinese. O jogador pode usar ataques leves e pesados com sua arma ou usar a psicocinese para lançar objetos contra os inimigos usando os gatilhos, se valendo de toda combinação possível para derrotar seus adversários.
Mas os poderes não ficam restritos à psicocinese, já que é sempre possível se valer dos poderes dos membros da equipe (através do SAS) e a medida que a história avança, não só eles se tornam mais poderosos como é possível aumentar o nível do seu relacionamento com eles através Episódios de Relação (similar aos Social Links de Persona, mas mais restritos e mais ligados ao desenvolvimento do plot).
Isso significa que segurando R1 e apertando um dos botões de face, você pega “emprestado” o poder de um dos seus aliados por um curto período de tempo (com o avançar na árvore de habilidades é possível ativar 2 ou até 4 simultaneamente). Depois de um tempo, é possível até mesmo usar Combos de Visão (ataques ativados com L1 e o respectivo botão de face) ou Visões de Assalto (ataque especiais ativados com maior frequência quanto maior o seu laço com seus aliados).
Saber usar todas essas mecânicas em combinação com esquiva e outras ferramentas é fundamental, já que cada inimigo do jogo possui diferentes pontos fracos a serem explorados para reduzir sua barra de vida e a barra de supressão. Essa segunda barra, ao zerar, libera um ataque especial chamado Supressão Cerebral que derrota instantaneamente a maioria dos adversários (e tem animações bem legais).
Quase todas as sessões de combate, mesmo contra inimigos mais comuns, costumam ser bastante divertidas e intensas, já que qualquer vacilo em combate pode ser fatal, já que os inimigos causam uma quantidade considerável de dano caso você vacile e é fácil se ver morto após uma sucessão de erros ou desatenção.
É importante dizer também que, em combate, (quase) sempre haverão dois aliados ao seu lado e a inteligência artificial deles é surpreendentemente boa, salvo pelos combates com uma Criatura em específico. É possível customizar o comportamento deles e aumentar a força deles através de equipamentos chamados Plug-ins de Paralelização (que o protagonista também pode equipar e dão bônus em várias características, de Pontos de Vida à Poder ou aumento do poder de supressão ou ganho de EXP).
O combate poderia se tornar repetitivo com o tempo, mas Scarlet Nexus, de alguma forma, consegue introduzir novos elementos durante toda a experiência. Parte disso é o quão aberta a progressão do personagem é, com o jogo te dando total liberdade para avançar pela árvore de habilidades como você bem entender e sempre havendo novos ataques a serem liberados e que mudam estratégias de combates já manjados. Outra parte é o simples fato do jogo realmente introduzir mecânicas bem criativas em pontos específicos, com coisas como Foco Cerebral e o Campo Cerebral se tornando mais importantes à medida que você avança no jogo.
Um elemento que ajuda nisso é a variedade de inimigos. À primeira vista, os inimigos comuns se encaixam todos em variações de 10 tipos distintos de Criaturas. No entanto, cada variação dessas possui uma estratégia específica para derrotá-las, sendo fraca um elemento distinto ou exigindo uma forma distinta de pensar como abordá-las, sendo fácil identificar pelas mudanças visuais e se adaptar rapidamente, com o jogo contrapondo isso com combinações novas entre inimigos o tempo todo e tornando os encontros sempre variados.
Mas o maior destaque fica mesmo para as Arquicriaturas, os chefes do jogo. Não são tantos assim ao longo dos 13 capítulos que o jogo possui, mas cada batalha contra um chefe é distinta das outras e elas sempre exigem uma nova forma de pensar para identificar o ponto fraco e como explorá-lo.
Não é que não existem problemas no combate. A câmera é absoluta atroz em certos momentos e o sistema de travamento de mira consegue fazer algumas coisas que atrapalham bastante em momentos mais intensos, mas é tudo tão divertido, bonito, responsivo e interessante que esses problemas acabam ficando de lado.
Há ainda um outro elemento que, ao mesmo tempo, traz uma outra variedade ao combate acaba sendo também uma reclamação, que é a estrutura de missões secundárias do jogo. Scarlet Nexus é tão focado na sua narrativa que não há sidequests tradicionais nele. No entanto, é possível conversar com moradores de Nova Himuka e Seiran em certos pontos do mapa para ativar “missões secundárias”.
Essas missões consistem em desafios de combate que podem ser executadas avançando pelo jogo (e completadas diretamente do menu para receber a recompensa instantaneamente). Normalmente elas se resumem a derrotar o inimigo X com o poder Y ativado ou usando um golpe Z como finalizador (seja um ataque específico do seu personagem ou o combo de visão de um companheiro). É interessante tentar completar essas missões e os prêmios por elas são bem úteis, mas soa um pouco como desperdício de potencial.
Dito tudo isso, acho que fica claro que, apesar dos desafios que Scarlet Nexus tinha em alcançar a expectativa que eu criei por ele e, no fim das contas, a experiência acabou sendo diferente do que eu esperava e em vários aspectos até mesmo superior. A demo e os trailers me fizeram esperar um jogo de combate divertido e história interessante.
O produto final não só entregou isso, como me fez me apaixonar pelo universo ali criado, entregando aquela que talvez seja a minha nova IP favorita em uma década, talvez tendo o maior impacto pessoal desde o meu primeiro contato com Trails in the Sky ou God Eater. Essa é uma história e uma experiência da qual eu não consegui ter o suficiente ainda e uma que eu recomendo a qualquer fã de JRPGs como uma experiência obrigatória e uma que estabelece a barra a ser superada por novas séries no PS5 de forma bem alta.
Veredito
Scarlet Nexus é uma experiência única e digna de todo hype. O universo criado pela Bandai Namco é rico e interessante, o combate consegue ser desafiador e divertido, os personagens são cativantes e o pacote como um todo vale cada minuto investido. Em um gênero muitas vezes visto como repetitivo, Scarlet Nexus mostra a coragem para pensar fora da caixa e injetar uma boa dose de novidade.
Scarlet Nexus is a unique experience worthy of all the hype. The universe created by Kenji Anabuki is rich and interesting, the combat manages to be challenging and fun, the characters are captivating and the whole package is worth every minute invested. In a genre seen as repetitive, Scarlet Nexus shows the courage to think outside the box and injects a good dose of freshness.
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