Quando se é criança, algumas profissões dos sonhos se tornaram clichês. Há quem deseje ser astronauta, há quem queira ser jogador de futebol. E há também, desde os idos dos anos 1990, aqueles que sempre quiseram fazer videogames, criar seus próprios mundos, suas próprias aventuras. Para quem se aventurava em dar o passo seguinte nesta última opção, mais cedo ou mais tarde iria se deparar com o RPG Maker, cuja primeira versão foi lançada no longínquo ano de 1997 para computadores, garantindo a possibilidade de criação de jogos no melhor estilo isométrico que havia ficado consagrado com jogos como The Legend of Zelda, Final Fantasy, Dragon Quest e Chrone Trigger, só para citar alguns dos maiores expoentes do gênero.
Mais do que um modismo, a plataforma se tornou bastante sólida ao longo dos anos e algumas das produções realizadas por ela, como The Witches House, Rakuen e o celebrado To The Moon, se tornaram grandes marcos do potencial daquilo que se poderia produzir com essa ferramenta. Os anos se passaram, e surgiram outras possibilidades acessíveis para os desenvolvedores iniciantes e profissionais, sobretudo pós-popularização dos games em três dimensões, como o Unity, o Unreal e assim por diante. Mesmo em consoles não faltam exemplos como o recente Dreams, Super Mario Maker, Big Little Planet ou o famigerado Minecraft. Mas o RPG Maker se manteve firme e chega aos consoles, em sua versão MV depois de fazer uma bela carreira na plataforma original desde 2015. E, melhor de tudo, totalmente localizado para o português brasileiro, algo que é absolutamente bem-vindo para algo com tantas nuances e possibilidades.
Uma análise de RPG Maker MV para o Playstation 4, portanto, parece algo um pouco diferente do que costumamos fazer aqui. Obviamente, é muito mais uma avaliação de software do que de jogo, mas o objetivo aqui é ficar distante dos termos mais técnicos (até porque não somos programadores, de fato) e compreender como as mecânicas propostas e solidificadas da ferramenta funcionam com a interface de um console doméstico. E essa provavelmente é a maior dificuldade que os desenvolvedores tiveram para adaptar um sistema tão próprio dos computadores para a tela da TV e, principalmente para o Dual Shock 4. Felizmente, essa é a primeira boa notícia: apesar de todas as limitações e diferenças óbvias de um sistema e outro, a adaptação da interface e o mapeamento dos comandos funciona bem, mesmo que demande um pouco mais de paciência do que de costume.
São dois os elementos fundamentais nisso tudo: os caminhos de seleção dos infindáveis menus e submenus disponíveis em todas as áreas de trabalho e a entrada de informações, como imagens, alguns poucos códigos e, principalmente, textos de diálogos e outros. Por mais que tenhamos facilidade com o teclado virtual do Playstation 4, tudo é muito mais demorado do que um teclado comum; por mais que saibamos lidar com o cursor em um plano cartesiano usando os direcionais, nada mais ágil que um mouse. Claro, há uma enorme diversidade de funções e comandos que exigem aprendizado e/ou adaptação, mas nesses dois aspectos específicos, tudo funciona relativamente bem, ainda que demandem muita paciência, muita paz interior até. É importante estar ciente de que para produzir algo para além de experimentações, são necessárias várias e várias (e outras várias) horas na plataforma.
O sistema da interface, em termos mais diretos, é dividido entre a sua ramificação de mapas criados; menu de sprites possíveis para aquele tipo de mapa selecionado (dependendo da categoria, como ambiente interno, ambiente externo, calabouços, mapa geral, etc., mudam-se os sprites possíveis para evitar que tenhamos milhares de possibilidades o tempo todo ali); menu principal com configurações gerais e a tela principal, o stage do jogo em si. Há dois modos principais para o stage, que é a construção visual (ao selecionar um sprite, você o posiciona no mapa e vai desenhando suas fases); e a configuração de eventos (que é basicamente quando se programa o que acontece quando se faz alguma coisa). De forma bem rasa, é uma divisão entre as construções visual e de mecânica do jogo. Para compreender melhor essa composição, dá uma olhadinha no nosso vídeo dos primeiros passos no jogo, que é basicamente o tutorial explicando tudo isso.
O momento pós-tutorial, contudo, é de um certo vazio. Afinal, para ser ágil e prático, lá aprendemos a fazer alguns ajustes em um material já bem adiantado. Inserir uma flor em um jardim pronto, inserir uma transição entre um mapa e outro, e assim por diante. A folha em branco é, por outro lado, muito mais desafiadora. Começar um projeto do zero é, de certa forma, tão propositivo quanto abrir um documento novo no editor de texto sabendo que o resultado final é uma tese de 100 páginas. E aqui entra algo para muito além do RPG Maker MV: o planejamento e a roteirização, que somam habilidades do desenvolvimento de sistemas e da criação audiovisual em um pacote que faz um bom design de jogos. O maior defeito de um projeto e o motivo pelo qual ele não evolui é, normalmente, começar sem saber para onde ir.
Então, fica a primeira orientação: saiba exatamente o que fazer e qual o resultado final esperado antes mesmo de começar um projeto novo na ferramenta. Ou, no mínimo, tenha uma boa ideia do conjunto, do todo. Começar pensando em “vou fazer uma aventura medieval” é o prenúncio do fracasso, ou da necessidade de um recomeço contínuo do projeto. A vantagem para jogadores, mesmo aqueles que não são especialistas em programação, em sistemas computacionais, ou mesmo em composição de ambientes, ou ainda em roteirização de narrativas interativas, é que a partir da vivência em experiências similares, dá para desenhar algumas propostas bem ricas para si.
Só a título de exemplo, me apropriei de histórias que inventei para minha filha (que por sua vez era uma mistureba de coisas que eu já tinha lido, assistido e jogado) para propor o projeto que usei como base para avaliar a ferramenta para esta análise. Mas, confesso, demorei tanto tempo para projetar no papel quanto para realizá-lo no RPG Maker MV. E ainda falta muita coisa, várias delas tiveram que passar por adaptações, seja por limitações na ferramenta em si, seja porque, na maioria das vezes, eu ainda não sabia como fazer funcionar do jeito que tinha imaginado. Aí entra um segundo aspecto de pré-requisito: um conhecimento básico de programação, fluxogramas e desenvolvimento de software.
Como dito, o RPG Maker MV não vai exigir, em 99% do tempo, qualquer conhecimento prévio de linguagens de programação, como linhas de código, comandos, manipulação de variáveis e base de dados via sistemas. Tudo está muito bem adaptado a um sistema visual que facilita para os não-profissionais. Mas conceitos mais abstratos precisam estar muito bem sedimentados para quem se propõe a criar algo nele. Saber o princípio básico de funções como “Se, então, senão” (que determina alguns gatilhos para que uma coisa ou outra aconteçam a partir de uma escolha ou uma ação) ou ainda a aplicação de interruptores (que ajudam a dar andamento em loopings e repetições) são essenciais para se criar um jogo minimamente parecido com o que já conhecemos.
Por exemplo, o esquema básico de quests: você vai até um NPC, ele pede para você ir até uma caverna, vencer um monstro e voltar para receber a recompensa, uma chave, por exemplo. Se quem programar não souber acionar um mecanismo binário de “sim” e “não” quando se derrota a criatura, não dá para sair do looping de diálogo inicial. Há formas de driblar o sistema, claro. Você pode dizer que assim que matar a criatura, o jogador precisa ir até certo lugar para coletar os espólios. Mas sem ter qualquer mecanismo de disparo de um evento, todos ficam disponíveis desde e para sempre. O mesmo vale para o sistema base de escolha: sem ele, tudo se torna somente diálogo linear, que pode fazer parte do projeto, claro – nem sempre os diálogos precisam ser interativos por obrigação – mas estamos tratando de um RPG Maker, e narrativas onde se faz escolhas são parte da essência de RPGs. Abrir mão desse dispositivo é limitar muito o que se pode fazer.
A configuração de base de dados, por sua vez, deve ser uma das primeiras tarefas do desenvolvedor entusiasta: determinar quem serão os personagens, quais são suas habilidades, quais serão suas forças e fraquezas; determinar quem são os inimigos, quais são os itens, quais são as magias, quais são as recompensas por batalhas. Claro, não há qualquer entrave para ir acrescentando elementos em cada um desses aspectos ao longo do desenvolvimento do projeto. Você pode muito bem criar um chefão novo a ser adicionado em uma dungeon secundária, ou pode ainda configurar um machado de gelo quando a narrativa exigir. Mas ajustes mais finos podem influenciar diretamente na reformulação de tantos outros detalhes já definidos.
Por exemplo, se você altera a quantidade de HP de um monstro comum, de um adversário, pode ser que isso quebre com todo o balanceamento prévio e aí será necessário rever também dano de armas, dano base dos protagonistas, premiação, e assim por diante. Felizmente, há alguns aspectos padrão já configurados a priori, então para quem tiver qualquer dificuldade em configurar elementos como probabilidade de acerto e coisas do tipo, basta copiar algo já existente e só alterar aquilo que for necessário. Por exemplo, para criar uma espada de fogo, mais fácil do que fazer do zero é copiar a espada normal e só acrescentar o elemento desejado, talvez um pouco mais de dano, talvez um pouco mais de área, talvez uma animação diferente. Mas sem precisar fazer tudo do nada. O mesmo vale para magias, personagens, inimigos, tropas, etc. As diferenças mais sofisticadas vem com experimentações, mas a base de sustentação deve estar estável antes.
Outra questão que vai fazer diferença, e aí não tem muito o que fazer, é a disposição das informações na tela e a nossa capacidade de educar o olhar. Perceba: a ferramenta, como qualquer software desktop, é pensado para um usuário próximo da tela. Isso significa que muitas vezes, pelos ajustes finos, a distância para quem joga no sofá de casa pode não ser adequada. É só fazer um teste: pense nos programas que costuma usar no PC, seja a trabalho, a estudo ou de forma casual. Tente projetar no mesmo local onde você joga e imagine se cada menu ou elemento gráfico vai funcionar para você. Na minha experiência, tive que colocar uma cadeira na frente da TV bem mais próximo do que a forma como costumo jogar. Pode parecer um detalhe menor, mas ilustra algo que tem que ficar bastante claro: esse não é um aplicativo pensado para o console e mesmo que as adequações sejam bem funcionais, continuam sendo um remendo, uma forma de adaptar algo. O game designer de console precisa ter essa noção caso queira se aventurar aqui.
Considerando o escopo deste projeto, as opções disponíveis – diferente do PC, ficamos restritos aos elementos gráficos e sonoros disponíveis nas bibliotecas padrão do aplicativo – são bastante variadas e surpreendentemente plurais. Claro, nem tudo o que você imaginar terá sua correspondência ali, e mesmo tendo várias opções mais modernas, o forte do sistema são elementos de fantasia medieval. Se quiser montar uma proposta na linha do ciberpunk, ou do dieselpunk, terá que fazer algumas concessões narrativas. Mesmo assim, há muito o que se explorar criativamente aqui. A trilha musical, em especial, é bem diversa e adaptativa para contextos e situações tradicionais de RPGs. Em alguns casos, faltam correspondências. Por exemplo, para fazer uma caixa de diálogo com o rosto de um monstro, nem sempre você encontra aquilo que se espera. Mas são questões menores, ajustes que podem até serem melhorados ao longo do tempo com pacotes de DLC ou atualizações.
Você certamente terá algumas dificuldades na criação de mapas visualmente mais sofisticados. Só do fato de precisar entender a diferença entre um tileset de chão e um de parede já dá uma dimensão de que, mesmo com ilustrações diversas disponíveis, montar um mosaico em um fundo quadriculado que se pareça com o que você tem em mente será um pouco mais complicado do que se imagina. Aqui, o método empírico da tentativa e erro será fundamental, mas certamente você poderá encontrar exemplos de guia na internet para facilitar seu trabalho. Mesmo assim, prepare-se para algumas boas horas até ter o interior de um castelo do qual se orgulhe. A construção de personagens – protagonistas ou NPCs já é mais simples e o editor padrão não é tão diferente assim de qualquer ferramenta de criação similar de outros jogos. Talvez o trabalho maior seja quando você quiser criar todos os personagens do seu jogo ao invés de usar os modelos já existentes ou o gerador randômico disponível. Isso fica por conta do preciosismo de detalhes de quem está produzindo.
Outros probleminhas mais pontuais estão na localização. Como dito, é fundamental termos o RPG Maker MV totalmente em português brasileiro (e são poucos os idiomas disponíveis). Mas com um recorte tão grande, algumas coisas passam. A construção de algumas frases padrão segue sintaxe gringa, alguns espaçamentos são esquecidos na junção de variáveis, e coisas assim. Para quem tem experiência de programação, a tradução de alguns termos já estabelecidos no mercado também pode soar estranha, mas é parte do processo e logo se acostuma. Para os fãs de mitologia medieval e literatura fantástica, os arquétipos estão todos lá. Já quem se acostumou com portais, magias, invocações, sistemas de combate por turno e tudo que mais se costuma encontrar nos jogos mais famosos (e mesmo nos mais obscuros) do gênero são facilmente reconhecíveis, então muita coisa flui no automático.
Toda essa experiência criativa ganha ainda mais valor quando você pode exportar o jogo que criou para compartilhá-lo com outras pessoas da comunidade. Em contrapartida, obviamente pode jogar coisas criadas pelas outras pessoas. Para tanto, é bom destacar que além de poder ser feito dentro do próprio RPG Maker MV, há um player (a princípio, gratuito) para que as pessoas possam jogar as criações da comunidade sem precisar ter a ferramenta completa. Nela, é só procurar o jogo pelo gênero ou por outras características, ou ainda escolher um ID específico caso conheça o projeto de alguém. Essa foi uma sacada perfeita para que as criações mais importantes cheguem a mais pessoas e tomara que essa importante função tenha uma divulgação abrangente. Afinal, parte do interesse em comprar o RPG Maker MV é ver o que dá pra fazer em exemplos sólidos, certo?
No PlayStation 4 você poderá encontrar ferramentas similares, e o destaque não poderia deixar de ser o já citado Dreams, que abre um escopo de possibilidades e gêneros muito maior do que no RPG Maker MV. Mas isso não tira o brilho e a solidez de um projeto tão longevo – lá se vão 23 anos de existência e de aprimoramento – sobretudo para quem sempre quis traduzir suas histórias (escritas ou mentais) para uma aventura cheia daquela aura dos RPGs que atravessaram as gerações como alguns dos maiores e mais marcantes jogos já criados. Para os entusiastas criativos, uma recomendação segura. Quem sabe você não pode criar o próximo To The Moon…
Jogo analisado no PS4 padrão com código fornecido pela NIS America.
Veredito
Não há dúvidas que RPG Maker MV, por conta de sua característica de ser um software adaptado para consoles, exige paciência para além do normal para os game designers amadores, e sua interface parece ser mais engessada do que deveria. Ainda assim, é uma ferramenta poderosa e fascinante, dispondo de muitas ótimas funções que permitem a criação de ótimos RPGs 2D de visão isométrica com forte apelo nostálgico.
There is no doubt that RPG Maker MV, due to its characteristic of being software adapted for consoles, requires patience beyond normal for amateur game designers. Still, it is a powerful and fascinating tool, with many great functions that allow the creation of great 2D RPGs with isometric view and strong nostalgic appeal.
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