Cresci assistindo animações oitentistas na TV aberta do final dos anos 1980 / início dos 1990, e sim, pegava qualquer vareta velha que encontrava na rua e transformava aquilo, com a força pouco exigente da imaginação de uma criança, em uma espada de poderes ancestrais que me dariam força e magia inimagináveis. Thundercats, He-Man, Comandos em Ação (nada de G.I. Joe por aqui), Caverna do Dragão, She-Ra, Os Herculóides, Space Ghost… alguns eram até muito mais antigos, mas isso importava muito pouco para quem esperava, entre uma gincana e uma apresentação musical dos matinais da época, por mais um episódio repetido daqueles universos fascinantes. Fica muito fácil uma proposta como a de MythForce seduzir alguém como eu com a sua proposta de emulação da estética desta época. Mais fácil ainda é, com uma animação de abertura que remete às melhores vinhetas já criadas, garantir a atenção. Pena que o jogo não vai muito além disso.
Assim que o jogo propriamente dito começa, todo o traço de personalidade nostálgica é automaticamente deixado de lado e, no lugar, entra uma aventura roguelite enfadonha, repetitiva e totalmente desprovida de de qualquer identidade. Ainda que traga muita força na estética cel shading para emular a textura de desenhos animados, incluindo ciclos de animação característicos, cores vibrantes e uma granulação saudosista, falta muito para que a atmosfera criada e prometida seja realmente alcançada. É estranho, mas o jogo parece, tematicamente, como uma tentativa de reproduzir a sua refeição favorita da casa da avó: você até pode juntar todos os ingredientes, perguntar quanto tempo tem que cozinhar, emular todos os pequenos preparos, mas sem aquele tempero que tornava a coisa tão especial você jamais terá a mesma sensação. E se, sim, estou mais velho e um pouco mais rabugento que naqueles tempos mais simples, o produto parece carecer daquele encantamento de onde bebeu.
Como mecânica, o game aposta na exploração segmentada de masmorras com leiautes aleatórios, nas quais encontramos hordas crescentes de inimigos e armadilhas mortais. Cada pequeno segmento deve ser totalmente limpo para que possamos progredir para o seguinte, passando por um portal e por um totem que nos oferece uma melhoria temporária para o que vem pela frente, seja um acréscimo na barra de vida, seja mais dano em nossos ataques, seja tempos de cooldown mais generosos para nossas habilidades especiais, coisas que qualquer um de nós que tenha experimentado jogos do gênero já conhecemos. Ademais, encontraremos alguns arquétipos quase que inevitáveis em aventuras de capa e espada, tais como esqueletos espadachins, orcs parrudos, goblins irritantes, lagartos antropomórficos, cogumelos ambulantes e coisas do tipo. Em ambientes nada amplos e com configurações genéricas, há pouco a explorar, ainda que alguns cantos escondam baús com poções de recuperação de vida e apetrechos a serem equipados, além de quinquilharias que valem ouro.
Para enfrentar tais desafios, assumimos o comando de um de quatro possíveis heróis, todos bastante clássicos, sendo Vitória, a guerreira brutamontes; Rico, o ladrão habilidoso; Maggie, a feiticeira; e Hawkins, o caçador. Cada um tem à disposição seus movimentos especiais, mas todos tem acesso a dois conjuntos de ataque que podem ser alternados com o toque de um botão, e ambos podem ser atualizados ou melhorados conforme avançamos no terreno e, mais tarde, como melhorias permanentes subindo de nível junto aos NPCs de suporte externo. Nem sempre é aquilo que desejamos, claro, já que o fator aleatório é parte de uma experiência roguelite, então já me acostumei com a possibilidade de me segurar como dava antes da próxima área para, na preparação, receber uma dádiva que pouco ou nada me ajudava com o meu estilo. Cansei de receber, por exemplo, vantagens para minhas armas de mão usando Maggie, quando na verdade só estava utilizando magias a distância.
Ainda que a repetitividade pouco sedutora sempre pareça um problema de design, e isso se deve bastante ao modelo randômico quase procedural de geração de cenários, é no desperdício da ambientação onde mais há frustração. Mesmo com chefões espalhados por todos os lados, não há sequer uma anunciação, uma dose de contexto para qualquer que seja a aventura, o que fere diretamente o elemento de imersão em um mundo inicialmente tão convidativo. Há, no final de cada mundo, o inimigo fazendo um discurso à distância e mandando lacaios nos atacarem, e só. Falta uma cena de introdução, um senso de propósito, um motivo para você estar dentro de um castelo lutando com uma série de criaturas fantásticas que não tem qualquer outro motivo de existir que não te atacar como se não houvesse amanhã. O ciclo é insípido ao extremo: escolha um herói, entre na masmorra e siga em frente até não aguentar mais. Se morrer, morreu. Vai lá e faça a mesma coisa. Termine a fase para abrir a seguinte ou morra tentando. E são muitas: são nove mundos ao todo, cada qual com três sequências que parecem intermináveis exatamente pela repetitividade.
A jogabilidade também não inspira nenhum guerreiro veterano, com movimentos lentos e ataques bastante convencionais com um alcance bem estranho. A visão em primeira pessoa não é das minhas favoritas para este tipo de aventura, mas aqui está longe de ser o maior problema, já que valoriza o inesperado e acrescenta em tensão, principalmente na dificuldade mais elevada, onde qualquer descuido é sinônimo de fracasso imediato. Claro que o modelo de colisão é primário e dá pra ficar preso numa quina mal projetada, mas isso é algo evitável pela previsibilidade dos adversários.
Os perigos, aliás, são muitos, e vão desde os ataques diretos até armadilhas nem sempre evidentes. Ser incendiado por um pilar flamejante na parede ou envenenado por um planta que explode com a proximidade são só alguns dos percalços espalhados pelo cenário. A distribuição nem sempre parece fazer sentido, e muitas vezes há armadilhas por onde nós jamais precisaríamos passar, mas faz parte do pacote da geração dos ambientes. Se na primeira vez eu queria zerar tudo – como pode ser visto no vídeo que abre esta análise – depois eu só me importava em fazer o mínimo para avançar, principalmente quando decoramos os principais mapas e nos aprimoramos para não precisar ficar medindo cada passo.
Evidentemente, esse é o tipo de jogo que se vale muito da boa vontade do jogador, principalmente se estiver acompanhado. Avançar sozinho é enfadonho, cansativo e torna difícil qualquer investida que ultrapasse uma, duas horas não pelo desafio, mas pela manutenção do interesse. Quando ao lado de alguém – são permitidos até quatro pessoas na mesma aventura – a coisa melhora porque o descompromisso com o que está acontecendo é tamanho que ninguém precisa prestar atenção a nada que não seja saber de onde está vindo aquele maldito inimigo que atacou pelos flancos, o que pode encorajar aquele bate papo sobre futebol no domingo a tarde. Se as frases ditas pelos personagens podem ser contadas nos dedos, dá pra até ignorar o áudio por completo só para curtir a jornada batendo no próximo pobre coitado. E o jogo conta ainda com um Quick Play que nos joga sem paraquedas em partidas com gente aleatória e cujo assunto normalmente é o mais completo silêncio, com cada um fazendo o que quer.
Sem qualquer traço de inteligência, os inimigos se dividem entre aqueles que só correm na nossa direção sem qualquer precaução e aqueles que saem correndo para se posicionar em um ponto distante para atirar em nós. Não é raro ver alguns presos em cantinhos ou atirando contra pilares que estão no meio da confusão. Funciona, claro, e os três níveis de dificuldade iniciais (mais alguns míticos que se abrem conforme superamos os níveis iniciais) são até bem justos com o que propõem, mas quase sempre é pela quantidade ou pela resistência, não pelo potencial do vilão.
De positivo, está o design que adota a caricatura típica das inspirações, e mesmo que o detalhamento seja bem simplório, há méritos no traço simples que se espera de uma aventura oitentista. Neste aspecto, o jogo não tem nenhum vergonha de assumir suas fontes, seja pelo uso das cores saturadas, dos figurinos que beiram o absurdo e do maniqueísmo simplista que evita a problematização e a profundidade de personalidade para dar espaço para a ação direta. Contudo, nota-se um estranhamento entre a textura de personagens e inimigos e a dos cenários, que parecem pertencer a tipos diferentes de desenho e colorização. Elementos como água e partículas são especialmente pobres e incoerentes com o resto. É fato que as animações antigas trabalhavam com layers onde somente o necessário se movia em um fundo estático, mas nem sempre a emulação simplória resolve a questão da inspiração. Fica só esquisito, não nostálgico.
Olhando para o todo, MythForce, que ao menos está totalmente localizado para o nosso português brasileiro em legendas, menus e interface, é um amálgama de boas ideias que se encontram em um conjunto pobre e genérico, um típico exemplo onde o conceito é muito melhor do que o resultado final. Fosse esse um jogo linear de duas ou três horas com fases intercaladas por algumas telas desenhadas com texto contando uma história comum daquelas esperadas de um episódio semanal, eu teria gostado mais, porque tal como foi feito, por mais que a progressão em camadas, as complementações bem implementadas e o ciclos bem estruturados em cenários procedurais consigam entreter por mais tempo, o resultado da experiência é ainda mais vazio do que as lições de moral que o He-Man proclamava ao final de cada episódio na TV.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Aspyr.
Veredito
MythForce tinha tudo para agradar uma geração inteira que cresceu se apaixonando pela estética peculiar das animações aventureiras dos anos 1980 e 1990, mas infelizmente as inspirações ficaram somente no conceito. Assim que o jogo inicia, só nos apresenta uma jornada roguelite genérica, simplória e desprovida de qualquer emoção.
MythForce had everything to please an entire generation that grew up falling in love with the peculiar aesthetics of adventurous animations from the 1980s and 1990s, but unfortunately the inspirations remained only in the concept. As soon as the game starts, it only presents us with a generic roguelite journey devoid of any emotion.
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