Quando se fala do gênero de simulação nos games, alguns títulos vem à mente quase que instantaneamente, como Flight Simulator ou The Sims. Os mais saudosistas vão se lembrar de Spore e SimCity, e outros vão se lembrar de FarmVille e jogos da primeira geração mobile e de redes sociais. Atualmente, o gênero se expandiu, e temos à disposição, em diversas plataformas, a simulação de praticamente tudo: de cabra, de pombo, de cirurgia, de ganso, de caminhoneiro… isso sem contar os de administração de países inteiros, cidades, ou algum empreendimento específico, seja para os jogadores mais hardcore, seja para aqueles mais casuais. E é aí onde My Universe – Pet Clinic Cats & Dogs se encaixa e busca seu espaço.
Antes de mais nada, uma observação rápida. Quem acompanha o site e leu a minha análise de Patrulha Canina: Super Filhotes Salvam a Baía da Aventura já sabe que eu uso uma trapaça para poder trabalhar nesses textos: tenho uma filha pequena, e quando recebo jogos destinados ao público infantil, peço a ajuda valiosa dela para ter uma melhor percepção sobre o quanto o produto consegue – ou não – cativá-la, despertar interesse, imersão, e tudo mais. Então todas as horas que passei com esse jogo foram ao lado dela, jogando ou observando-a jogar. E, de cara, parto do pressuposto básico deste texto: My Universe – Pet Clinic Cats & Dogs não é um jogo para adultos, ou sequer adolescentes, e todas as escolhas da produção são muito bem desenhadas pensando nisso, ainda que algumas acertem mais que outras.
Assim, a história a ser contada é bastante simples: o jogador assume o avatar rapidamente customizável de um ou uma jovem personagem que herda uma clínica veterinária da família e precisa gerenciá-la, atendendo cães e gatos diariamente e, com os recursos ganhos, melhorar o estabelecimento para atender mais clientes e aumentar o leque de serviços oferecidos. É um game que segue o padrão cíclico – neste caso, um dia de trabalho que se inicia ao preparar a clínica, abri-la, atender os clientes, fazer os últimos ajustes e encerrar expediente para começar tudo de novo no dia seguinte – e com base na repetição, com alguns pontos-chave onde interagimos com outras pessoas, como companheiros de trabalho, família e outros. A trama rasa, porém, está longe de ser ponto de interesse no jogo e se mostra muito mais contextual do que algo com que se importar.
A base está, claro, nos bichinhos. Cada atendimento está pautado em uma sequência de ações bem diretas: acariciar o animal para acalmá-lo, fazer o diagnóstico do que pode estar acontecendo com ele, fazer o procedimento recomendado e dar alta. Essas ações são muito leves e fáceis de se executar, e há chances nulas de fracasso. Há, sim, medidas de execução, mas a única diferença entre acertar com perfeição e fazer o mínimo necessário é o quanto dinheiro se ganha com o atendimento. Por exemplo, remover carrapatos da pata de um cachorro no tempo estabelecido sem errar o ponto de retirada garante 100 moedas. Demorar demais e se enganar em alguns “cliques” diminui essa premiação para 50. Mas enquanto o jogador não terminar a tarefa, ela fica lá. Não há, por exemplo, como o cliente ir embora por um serviço ruim ou algo assim. Só paga menos.
Para qualificar esse atendimento geral, há um sistema de uma a três estrelas, que não está ligado à qualidade de como se executa cada ação, mas a atenção que se dá ao animal. Agradá-lo antes e depois dos procedimentos já garantem o máximo da pontuação. Há também o simbolismo da premiação em cada ação durante esse atendimento. Ações perfeitas garantem uma chancela de ouro, e cada cliente pode ter de dois a quatro passos. Algumas falhas podem baixar o prêmio para prata ou bronze. Isso será visível em uma tela de estatísticas simples, que não agrega tanto valor à experiência em si, a não ser pelo sistema de níveis, que em alguns momentos exige alguns pré-requisitos.
Explico melhor: o personagem, tal como em jogos do gênero, pode subir de nível a partir de algumas atividades bem-executadas, como por exemplo, conquistar um número estabelecido de estrelas, ganhar uma certa quantidade de dinheiro, atender uma quantidade estabelecida de clientes, e assim por diante. Não há XP ou algo assim, mas há tarefas a serem cumpridas, o que garante, dentre outras coisas, que o jogador explore todas as possibilidades oferecidas pelo jogo, mesmo que elas não sejam particularmente importantes para o crescimento da clínica em si. Um exemplo disso é a ação de regar algumas plantas que estão lá, tarefa rotineira que o jogador pode escolher fazer diariamente ou não, mas que em dois ou três níveis, é uma ação obrigatória.
Outras atividades são muito mais dedicadas a criar a ambiência, como por exemplo, usar alguns presentes dados pelos clientes satisfeitos para decorar o lugar. Vasos de flores, porta-retratos, quadros e xícaras de café são alguns desses mimos. Há alguns probleminhas nesse sistema de progressão, porém, como quando você depende de elementos de aleatoriedade para seguir adiante. Houve um momento onde eu precisava ganhar três presentes de decoração dos meus clientes para subir de nível e passei alguns ciclos diários ganhando só gorjetas (cada pacote de presente pode ter dinheiro, esses itens de decoração ou ambos). Mais repetição à toa.
Esses níveis servem para destravar melhorias no ambiente. Você pode, por exemplo, melhorar a recepção para atender mais clientes por dia no nível 10 ou abrir o centro cirúrgico da clínica a partir do nível 20. O vídeo de gameplay que disponibilizamos junto a esta análise já é de um trecho mais avançado no jogo (e não dos primeiros minutos) para dar uma melhor dimensão dessas possibilidades, já que no começo há muito pouco o que se pode fazer. Não que a variedade aumente exponencialmente ao longo da jornada, mas ao menos há uma amplitude maior para o jogador se divertir e, ao mesmo tempo, se importar com o que vem a seguir.
My Universe – Pet Clinic Cats & Dogs, essencialmente, se parece muito com um jogo mobile em vários aspectos. O mais evidente deles está nas ações de interação, que claramente são desenhados para toque, e estranhamento não se usa o touchpad do controle pra isso. Do carinho que se faz nos animais às interações no atendimento em si, tudo funcionaria melhor com a ponta do dedo na tela, e todas essas mecânicas são as mesmas de uma tonelada de jogos da Android Store ou da Apple Store (acredite, já instalei e desinstalei muitos deles ao longo dos últimos anos). Talvez a única funcionalidade mais adequada ao controle comum de um videogame seja o de caminhar pela clínica. No mais, tudo parece uma adaptação – as vezes, não tão confortável assim – das mecânicas mobile para o dual shock.
Outro aspecto que evidencia essa natureza original do mobile é o visual. Não pela qualidade ou pelo público-alvo em si, mas pelo estilo dos modelos e das animações. Curiosamente, não encontrei a citação de uma versão para iOS ou Android no material de divulgação do jogo, mas ele evidentemente foi construído para rodar em sistemas menos potentes que consoles de mesa. O mapa é detalhado, ainda que pequeno (obviamente, já que consiste em uma clínica normal) e com salas e mobiliário bem adequados. Já os modelos animados, como humanos e animais, são simplificados ao extremo, a ponto de exibirem uma movimentação engessada e quase robótica. Ainda que não seja especificamente feia, é uma estética rasa, com texturas básicas e pouco articuladas.
Os animais são os que mais evidenciam essa limitação técnica: ainda que bem diversificados – há cães e gatos de várias raças no jogo – esses bichinhos são fofos, mas com uma pelagem com aspecto plastificado. É como se fossem feitos de brinquedo ou algo assim. Ainda que obedeça uma linha estética de muitas animações infantis populares nos dias atuais, essas criaturas vivas acabam distantes se o objetivo é a sensação de estar cuidando delas. Alguns ciclos de animação são o máximo de movimentação presente e a inteligência artificial no passeio livre dos animais também não considera muito o que está na frente. Não são raros os momentos onde os animais simplesmente trombam um no outro ou, pior, se atravessam, simplesmente porque estão caminhando na mesma direção e não se percebem. Aliás, o sistema de colisão também é bastante deficiente, e é bastante comum vem coisas atravessando umas às outras.
O sistema de interação em si também apresenta alguns dos mesmos problemas. Ao atender animais de tamanhos diferentes, a área de contato parece não variar de acordo com as dimensões dos bichos. As vezes, por exemplo, um aparelho parece entrar no corpo do bicho, e outras ele sequer encosta. O mesmo vale para o posicionamento de alguns pontos de interesse (onde a ação fica disponível). Não é raro o fato de ficar tentando encaixar dois itens e sofrer mais do que o necessário para isso. É nesse momento que público-alvo importa mais do que o de costume, já que uma criança menos de 6 anos pode não ter a precisão ou a paciência de um adolescente ou um adulto para contornar esses engasgos.
Um exemplo disso é a ação de banho. O jogo reconhece que ao passar a ducha no miolo do corpo do animal é mais eficiente do que nas extremidades Ou seja, fica molhando o torso do animal funciona mais do que lavar orelhas e rabo, por exemplo. É um detalhe bobo, mas que faz toda diferença na imersão. Para quem não está se importando com esses aspectos técnicos, fica a sensação de que fazer direito é “menos bom” do que fazer aquilo que o jogo reconhece. Para o sistema de pontuação, vale mais deixar partes ainda ensaboadas do que fazer um serviço completo. Então é necessário escolher entre uma coisa e outra, o que é terrível para esse engajamento ativo.
Outro problema que vai se intensificando é que o jogo demora para engrenar, e mesmo quando o faz, é vagaroso em mostrar evolução para o jogador. Esse é um equilíbrio bastante importante quando se traz um modelo que funciona para partidas mais rápidas nos dispositivos móveis para sistemas de mesa. Afinal, ainda que haja diversidade em termos das enfermidades possíveis, a repetição enfadonha de procedimentos é inevitável a médio prazo. Quando se trata 20 vezes o mesmo arranhão na pata, ou se faz a mesma receita de medicamento pela 40ª vez, tudo se torna meio sem propósito, mesmo para crianças pequenas que tendem a valorizar a repetição mais do que nós, adultos.
A questão principal é que farmar por farmar é uma ação muito mais aceita por quem é adulto do que pelos pequenos. Repetir a mesma ação para ganhar os pontos suficientes para um objetivo outro, a longo prazo, nos é mais aceitável. Mas para uma criança que busca se divertir no momento mais imediato, acaba parecendo enfadonho. Na experiência aqui em casa, chegou o momento onde minha filha pedia para que eu repetisse os dias até chegar no momento de abrir uma nova sala, ou ter algo novo para fazer. Ela rapidamente se interessou pelos fins mais do que pelos meios, algo muito preocupante para um jogo dedicado a esse público.
Outra questão que normalmente não interfere na percepção geral é a localização para o português, mas que quando se pensa em produtos para crianças em fase de alfabetização ou até anterior a isso, a história é outra. My Universe – Pet Clinic Cats & Dogs não usa vozes, e toda a comunicação verbal é via texto, e está somente em inglês. Isso significa que crianças só conseguem compreender o que está acontecendo ao lado de um adulto que consiga ler nesse idioma, e mesmo assim lhes falta uma sensação de pertencimento e de controle.
Não que seja um problema não poder deixar uma criança sozinha, já que nessa idade a supervisão de um adulto em atividades culturais é necessária e importante, mas a sensação, para elas, é que por vezes estão só executando algo que outras pessoas pensaram e decidiram. É como se estivéssemos jogando algo em um idioma que não dominamos e ter alguém do lado falando “escolhe a segunda opção” ou “quando aparecer isso, você aperta o botão X”. Se jogar é ter a sensação de controle, perder essa sensação é horrível para o jogador e para a experiência em si. Em um momento onde muitos jogos estrangeiros para celular, inclusive os free-to-play, tem textos e voz em português, esse chegar somente com textos em inglês é um grande problema para o público-alvo brasileiro. Algo que pode ser ajustado com o tempo (com atualizações para o nosso idioma, por exemplo), mas que agora é sim um grande entrave.
No geral, My Universe – Pet Clinic Cats & Dogs tem charme, é um jogo completo e uma experiência duradoura para o público ao qual se dedica, mas peca pelo excesso da repetição, tarefas demasiadamente enfadonhas, falta de localização para o nosso idioma, artifícios descartáveis para tentar ampliar a variabilidade do gameplay e um sistema de níveis que cumpre o seu papel, mas que parece ser denso demais para o seu propósito. Aliado a sistemas de interação pouco adaptados ao sistema doméstico e visuais que se aproveitam mal a plataforma, parece ser um port com uma certa crise de identidade que tem seus méritos, mas que deixa a maioria deles para trás exatamente ao tentar ser mais abrangente do que é. O jogo acerta em cheio no público-alvo, mas tropeça ao engajá-lo.
Jogo analisado no PS4 padrão e no PS5 com código fornecido pela Microïds.
Veredito
My Universe – Pet Clinic Cats & Dogs tem boas intenções e algumas ótimas ideias de interação, enfermidades e cuidados com animais de estimação. Mas mesmo fofo e casual o suficiente para o público-alvo, falha ao oferecer ações extremamente repetitivas e um sistema de evolução que exige que se continue executando ações até o ponto do enjoo. Tem mecânicas falhas, uma execução estética muito aquém da plataforma e escolhas de design que não sabem bem a plataforma onde estão.
My Universe – Pet Clinic Cats & Dogs has good intentions and some great ideas for interaction, illness and pet care. But even being cute and casual enough for the target audience, it offers extremely repetitive actions and an evolution system that requires you to continue performing actions until the point of nausea. It has flawed mechanics, an aesthetic execution far below the platform and design choices that do not quite know the platform where they are.
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