Ao longo dos últimos anos, tem sido bem interessante acompanhar o desenvolvimento e crescimento de estúdios asiáticos fora do tradicional eixo de desenvolvimento japonês. Talvez por não possuírem diretrizes e padrões tão enrijecidos que acabam travando qualquer semente de experimentação e risco que, no fim das contas, é a força-motriz por trás do crescimento da indústria de games.
É nessa vertente que Mato Anomalies, jogo do estúdio chinês Arrowiz, que foi fundado em 2016 por veteranos da indústria na região, foi lançado. Buscando ser mais um passo na caminhada do estúdio em busca de se tornar uma das referências em jogos narrativos após o bem-sucedido lançamento da visual novel Hermitage Strange Case Files, é um interessante RPG que mistura elementos de investigação, batalhas por turnos e jogo de cartas.
Desenvolvido com financiamento da Prime Matter, braço da Plaion responsável por financiar alguns dos mais distintos e experimentais títulos dos últimos anos, o êxito ou não de Mato Anomalies naquilo que ele se propôs a fazer é complexo. Capaz de agradar a alguns enquanto os frustra ou frustrar outros loucamente enquanto agrada em certos pontos, tudo dependerá muito do que você espera do título.
Ambientado na cidade de Mato, uma distópica e cyberpunk versão de “uma cidade asiática de uma era esquecida”, o jogador assume o comando do jovem detetive Doe, que, já acostumado a andar pelos becos escuros do submundo da cidade, acaba se envolvendo em uma trama maior do que ele poderia imaginar.
Tudo começa quando Doe se vê investigando a estranha situação envolvendo o tráfico de uma droga de elite chamada HANDOUT quando, por um acidente, ele acaba descobrindo que seu transporte está sendo feito através do uso de fendas interdimensionais. Ao entrar acidentalmente em uma dessas fendas, ele acaba sendo atacado por misteriosas criaturas chamadas de Bane Tide, monstros nascidos de emoções humanas.
Antes de encontrar seu fim, Doe é salvo por um misterioso xamã todo cheio de estilo chamado Gram que, apesar de silencioso, aos poucos vai se abrindo para Doe quando ambos são forçados a trabalhar em conjunto para fechar as várias fendas que vão se abrindo ao redor da cidade e salvar Mato da destruição que só um uma sociedade capitalista distópica pode causar.
Um dos pontos inegáveis é que o jogo apresenta suas influências logo de cara. Tanto em suas mecânicas quanto em sua narrativa, o jogo parece beber bastante de duas fontes em especial, as séries Persona e The Somnium Files. São fontes um tanto quanto distintas entre si, mas o jogo vai misturando pequenos elementos de uma e de outra para bater na cabeça do jogador com as críticas sociais que ele tenta fazer.
Primeiro de tudo, é preciso apontar: se você não gosta muito de elementos políticos em seus jogos, passe longe de Mato Anomalies. Apesar da falta de sutileza em suas críticas fazerem com que ele beire um pouco o tom de paródia, o jogo é claramente um tratado sobre como a vida sob o capitalismo tardio é doentia e monstruosa, muitas vezes até mais do que os mitos e assombrações que criamos em nossas cabeças para nos distrairmos da opressora realidade ao nosso redor.
Todos os personagens do jogo são criaturas cheias de problemas, longe de se mostrarem como seres humanos perfeitos. Mato representa bem uma sociedade onde cada pessoa ali está agindo apenas pelos seus desejos e vontades, buscando saciar apenas os seus interesses, quase sempre em detrimento de quem está ao seu redor. É um jogo sobre como cada degrau da pirâmide tenta explorar quem está abaixo dele, seja para uma gratificação imediata, seja para conseguir ganhar mais espaço na busca pela sobrevivência no capitalismo selvagem.
Onde o jogo perde um pouco na mão é na sua total e completa falta de sutileza. De certa forma, alguns dos seus elementos parecem quase saídos de paródias ou teorias da conspiração. Sem entrar em spoilers, ele acaba errando um pouco por não querer deixar nada subentendido, por mais justo e válido que sejam a maioria das críticas sociais feitas aqui.
Dois elementos contribuem bastante para esse sucesso: a ambientação e a forma como a história é contada. Mato é uma cidade que acaba sendo muito bem construída, com um constante clima de opressão a medida em que você a explora ajudando a fazê-la parecer mais um personagem do jogo. Mesmo nos elementos mais clichês da sua construção, como o excesso de neon, ela se mostra com uma personalidade real.
A forma como a narrativa é construída também é legal, com o jogo usando e abusando de elementos distintos como pequenas cutscenes em formato de HQ e até mesmo FMVs. É só uma pena que as limitações técnicas do jogo acabam fazendo com que várias cenas sejam um tanto toscas, dando um ar de amadorismo e galhofa justamente quando o jogo mais tenta ser sério.
Por fim, sobre a história, cabe dizer aqui que apesar dos bons personagens e da trama muito bem construída, ela acaba caindo num mesmo problema que um outro jogo famoso também sofre: jogar toda a crítica social feita e todos os elementos mais instigantes da sua história e jogar a responsabilidade de tudo e todos os seus males em cima de uma certa entidade. Embora ele faça isso logo de cara, ainda tira muito dos tons de cinza que ajudariam a elevar a história a um novo patamar ao invés dessa visão dicotômica que tem sido a razão de vários problemas sociais, ironicamente.
A dublagem e trilha sonora são bem inconsistentes, com alguns pontos sendo muito bem executados e outros, novamente, beirando o amadorismo, algo especialmente notório com os personagens sendo incapazes de calar a boca em combate. E o fato dos modelos de personagens serem bem duros e um tanto feios também não ajuda.
Dito isso, explorar a cidade coletando evidências que lhe ajudarão a progredir pela história é algo muito bem-vindo, especialmente dado o quão rara a ideia de ser um detetive investigando mistérios sobrenaturais é pouco utilizada em jogos (apesar de ser uma premissa bem atraente). Poderia ser algo melhor explorado e, principalmente, melhor utilizado, mas é um conceito interessante introduzido pelo jogo aqui.
O problema é que ele vem atrelado ao pior elemento do jogo, que é justamente a dinâmica de cartas introduzida através do sistema chamado de “Mind Hacking”. Aqui, você precisa literalmente entrar na mente de determinadas pessoas para obter informações e, para isso, precisa, quase que literalmente, vencê-las pelo cansaço mental. É aqui que você precisa usar o seu deck de habilidades para esgotar o HP do inimigo e derrotar os demônios que vão surgindo para defendê-lo. É tudo bem simples e direto, mas chato e cansativo sem muita estratégia ou desafio para o jogador.
Sobre as dungeons, aqui é onde o jogo mais peca pela sua falta de originalidade. Há uma constante sensação de que os desenvolvedores jogaram muito Persona 5 e o usaram como base para construção de suas dungeons, ao ponto de algumas delas parecerem quase cópia direta de certos Palaces daquele jogo.
Aqui chamados de Lairs, a exploração aqui é até bem divertida, bebendo também de uma certa verticalidade que traz uma variação ao mundo, mas a falta de originalidade em vários dos seus designs acabam tornando andar por esse mundo menos interessante. A ideia de baseá-los em certas emoções humanas é bem-vinda, mas se construídas por si só talvez teriam mais impacto do que a constante sensação de já ter visto algo parecido antes.
Um ponto positivo, no entanto, é o fato da exploração ser diretamente conectada ao que você consegue descobrir através das suas investigações ao redor de Mato. Dependendo das informações às quais você tiver acesso, diferentes caminhos vão sendo abertos que podem afetar a quais itens você terá acesso durante sua exploração. Ainda assim, os caminhos são relativamente lineares, algo que parece ser, novamente, reflexo do orçamento limitado do jogo.
Sobre o combate, ele é algo bem dentro do esperado, sendo o tradicional sistema por turnos no qual cada personagem age no seu turno. Dito isso, o jogo traz dois elementos relativamente novos que aumentam o nível de estratégia dos combates. O primeiro deles é que toda a sua party compartilha a mesma barra de HP (que é, essencialmente, a barra de vida do Doe), então dano a um aliado é dano para todos eles, o que aumenta a sua fragilidade e a necessidade de estar constantemente ligado na sua vida.
A outra é que cada habilidade possui um tempo de espera para ser usada. Esse tempo de “cooldown” é proporcional ao poder da habilidade então quanto mais forte ela for, mais turnos você precisará esperar. Cabe dizer também que ele não é zerado após cada batalha e, como inimigos desaparecem ao ser derrotados, é bem fácil chegar em batalhas com chefes, por exemplo, e se ver sem poder usar suas melhores habilidades por algum tempo por tê-las gastado na batalha anterior.
A progressão dos personagens é algo compartilhado também, nos mesmos moldes do seu HP. Cada personagem ganha um ponto ao subir de nível que pode ser usado para melhorar uma de três árvores de habilidades: Yin, que é usado para estatísticas ofensivas; Yang, para estatísticas defensivas; Ultimate, que te dá acesso a ataques mais potentes. Há ainda diferentes tipos de equipamentos e Gears, que podem ser equipados por seus personagens e vão dando bônus para suas estatísticas.
Dito tudo isso, Mato Anomalies é uma interessante e divertida tentativa de entregar um bom RPG narrativo que, apesar de suas claras limitações e vários problemas que vão tornando a experiência frustrante, tem potencial para agradar aos fãs de RPGs orientais. Parte do problema é tentar fazer coisas demais com um orçamento limitado ao invés de se focar no que ele faz de melhor o que, apesar de ser reconhecida a ambição dos desenvolvedores, acaba atrapalhando o resultado.
Ele passa bastante longe de ser um jogo perfeito ou até mesmo um título que precisa ser adquirido por preço completo, mas vale muito a sua atenção em potenciais promoções daqui pra frente. Com alguns pequenos ajustes e melhorias em jogos futuros, ele é uma clara demonstração de como o mercado chinês e a própria Arrowiz vem evoluindo e galgando espaço dentre aquelas que mais devem fazer barulho no futuro da indústria.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Prime Matter.
Veredito
Mato Anomalies é um bom jogo que erra ao tentar incluir, desnecessariamente, elementos demais em sua fórmula. Ainda assim, seus bons personagens e plot interessante conseguem sustentá-lo por toda sua duração e o combate traz coisas novas o suficiente para se manter desafiador.
Mato Anomalies is a good game that fails for trying to include, unnecessarily, too many elements in its formula. Despite this, its good characters and interesting plot manage to sustain it for its entire duration and the combat brings enough new elements to remain challenging.
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