Está chovendo, é de noite. Solitário em um trem, chego a uma pequena cidadezinha do interior e tudo o que encontro é a recepcionista de uma pousada totalmente vazia, que oferece abrigo no quartinho do sótão, só para no dia seguinte receber um convite para ficar um pouco mais. Aquilo que poderia muito bem ser a cena inicial de um filme de terror clássico é, na verdade, a cena de abertura de Hokko Life, novo life simulator que chega (depois de um período em early access no PC) com aquele feeling de clone de Animal Crossing e outros jogos de fazendinha, mas que mostra bastante potencial em encontrar um outro público, encontrar seu espaço ao sol.
A jornada do estrangeiro, presente em tantos outros games similares, como os recentes Monster Harvest e Story of Seasons: Pioneers of Olive Town, não é uma novidade e tem como principal objetivo narrativo nos colocar no papel de alguém que ainda precisa aprender tudo sobre o local, suas regras sociais e a forma como o mundo funciona. Além disso, somos alçados a uma responsabilidade inesperada de transformação, de tornar um lugar que parece parado no tempo e no espaço algo diferente. Em Hokko Life não é diferente e nossa primeira missão, tão longo limpemos um terreno e revitalizemos aquela que será a nossa primeira casa, é a de trabalhar para que a cidade possa ser mais agradável, atrair novos moradores e se tornar mais próspera.
A cartilha é já velha conhecida de veteranos (ou menos, de iniciados) em games do tipo: será necessário coletar materiais diversos de construção como madeira, pedra, metais, flores; cultivar produtos que nos permitam autossuficiência em certos tipos de suprimentos; organizar ambientes e terrenos; construir (muitas) coisas; configurar o espaço urbano da cidade; e no caminho conhecer moradores, fazer amizades e, claro, criar um senso de comunidade. Não há, como de costume, um grande objetivo a ser atingido, um ponto B para se chegar, não se trata de um jogo de linearidades, mas de processos, de viver o dia. É uma história, portanto, em construção, emergente e sem grandes ambições.
O jogo, então, se parece com muita coisa que já vimos antes. Você tem tarefas específicas a cumprir, grande parte delas oriundas da demanda de alguns moradores, outra de metas estabelecidas pelo próprio jogo para que possamos liberar novos tipos de atividades e ferramentas. O modelo destas tarefas, aliás, beira o anacrônico, e confesso que incomoda um pouco, em pleno 2022, missões do tipo “me traga cinco bananas” e aí você as consegue, precisa achar o sujeito que pediu andando por aí, e quando entrega, ele agradece e manda colocá-las dentro da casa dele, algo que até mesmo as principais referências do formato parecem ter superado. Não são raros os momentos onde tais missões se tornam só um mais do mesmo aleatório que parecem muito mais um empilhamento vazio de demandas do que algo que nos leve a novas coisas.
Outras coisas que você já fez centenas de outras vezes são parte do dia a dia do jogo, como cortar árvores para conseguir madeira (e depois manufaturá-las para fabricar tábuas e outros produtos mais elaborados); arrebentar pedras e outros minérios para conseguir, adivinha, pedra, prata, ferro, carvão e giz; cavucar o chão para encontrar argila, areia e minhocas; plantar flores e frutas; pescar e por aí vai. Com tudo isso, você terá uma oficina a disposição para criar coisas que realmente serão úteis, como móveis, pontes, escadas, luminárias, camas, ferramentas e assim por diante. Qualquer pessoa que já tenha experimentado algo do tipo se sentirá extremamente confortável aqui sem quaisquer grandes novidades nos sistemas de crafting, cultivo e coleta, salvo um ou outro detalhe mais específico que acaba se encaixando bem no modelo.
Hokko Life, porém, não tem nenhuma pretensão em complicar a sua vida. É verdade que há obstáculos, como por exemplo a necessidade de se criar um sistema de iluminação para minas escuras, ou da busca por equipamentos especializados para certos tipos de materiais, ou ainda na fabricação de iscas especiais para se alcançar as melhores presas, mas para isso o jogo espera muito mais a sua atenção do que sua capacidade de gestão. Isso porque não há qualquer tipo de limitação de estamina (ou energia, de modo geral) para as atividades braçais, como é bastante comum. Quer passar a noite inteira cortando uma floresta inteira para acumular madeira? Tranquilo. Quem quebrar pedras por dias seguidos? Vai lá. Quer ficar pescando até não aguentar mais? Sem problemas. Não é o jogo que limita o que se vai ou não fazer, mas sim a vontade do próprio jogador.
A maior limitação inicial está não na ação, mas sim na diversidade, isso porque o grande calcanhar que Aquiles de todo acumulador pode ser um incômodo para quem busca uma certa coerência contextual. Você pode carregar poucos itens diferentes na sua bolsa, e quando quase metade deles são ferramentas que não podem ser deixadas por aí porque ora ou outra serão necessárias, isso é um problema. Mas só se você se preocupar demais. Isso porque nada impede que se deixe caixas com borboletas ou madeira por aí, nem sacos de dinheiro no meio da rua, porque mais tarde esses itens continuarão lá. Não demora também para que possamos fabricar armários para arquivamento de itens, e são tão baratos (em termos de recursos necessários) que se pode fabricar às dezenas sem qualquer prejuízo. No máximo, passar mais alguns minutos cortando madeira.
E se você achar que a sua casa é pequena e fica feia cheia de armários para guardar coisas, sem problemas. É só jogar esses itens dentro das casas dos vizinhos e está tudo certo. De novo, tudo fica onde deixamos, então como uma grande comunidade transcendente, nada impede que deixemos nossas tralhas onde quisermos. O ônus é, claro, saber onde tudo foi deixado. Isso se você é, como eu, aquela pessoa precavida que adora guardar meia dúzia de unidades de cada item que encontra com o sentimento de que uma hora aquilo será útil. Porque, mais cedo ou mais tarde, aparecerá um morador que sem qualquer aviso, vai pedir cinco borboletas do tipo rabo-de-andorinha, ou então quatro tintas de tecido verde-escuro. Ou talvez nunca peçam aquela bota velha que você pescou, vai saber.
Para os desapegados, guardar não precisa ser uma opção, já que qualquer coisa pode ser vendida para o comerciante da cidade. Absolutamente tudo. Seja uma boa pescaria com doze peixes-piranha, seja o lixo que você recolheu de um lago, tudo tem seu preço. Algumas coisas podem ser compradas também, mas como o jogo demora a liberar de fato um catálogo mais parrudo de itens variados, ele nos ensina que aquilo que temos pode ser vendido, aquilo que queremos deve ser coletado, fabricado ou conquistado. Curiosamente, porém, como somos nós quem decoramos a cidade toda, nada nos impede de pegar algo que gostamos e levemos pra nós. Confesso que meu primeiro armário foi pego do quarto do hotel onde fiquei na primeira noite e a primeira cama foi surrupiada da casa do Senhor Poa. Depois fiz outra para ele, fique tranquilo.
O grande diferencial de Hokko Life está, portanto, na liberdade de ação e customização desse universo de acordo com as nossas vontades sem muitas amarras morais ou regras condicionantes. Não é um jogo que vai reprimir o jogador por qualquer escolha que tenha feito, ou que vai punir uma ação realizada fora de hora, o que é ótimo considerando que tudo bem tirar uma ponte do lugar só para poder passar um tempo a pintando. Entretanto, essa livre escolha, por consequência, sacrifica qualquer noção de verossimilhança e, pior, de importância real daquilo que fazemos. Afinal, não há medidores de satisfação com a qualidade do que é feito, ou como as pessoas se sentem em relação a esse mundo. Tudo bem fazer uma casa das mais simples ou outra das mais exigentes, porque o resultado prático é o mesmo.
Este direcionamento para a criação livre e sem amarras fica ainda mais evidente dentro de uma das mais complexas e sofisticadas mecânicas do jogo, que a de fabricação dedicada de móveis e outros apetrechos. Aqui sim há uma exigência maior de habilidades, que remetem inclusive a noções de modelagem 3D, mesmo que de forma rústica. Você pode, por exemplo, fazer uma mesa de centro a partir de um modelo determinado, mas tem completa liberdade para mexer em qualquer parte, colocar oito pernas, dois andares, sete lados, pintar de rosa com marrom, enfim, construir do jeito que achar melhor. E tudo bem, porque será uma mesa, você pode colocar na casa de quem quiser, e até trocar pela que estava lá se assim desejar. Não é o jogo que vai dizer que sua mesa funciona (ainda que tenha uma ou outra revisão mínima antes de salvar e exportar), mas sim você mesmo.
Essa fabricação de itens especiais e de decoração é também responsável pelo elemento on-line do jogo, já que ao pegar o trem para dar uma volta na cidade grande, você pode visitar o showroom de outros jogadores que colocam lá suas produções para download – e por enquanto, tudo está de graça, então vale a pena decorar o seu vilarejo todo com o que há de melhor na produção da comunidade – bem como expor e disponibilizar também o que você fez. Ainda que tenha me orgulhado de uma ou outra estante que fiz, confesso que o que tenho de melhor foi copiado de outras pessoas e mesmo ainda em um estágio de lançamento, há coisas muito boas por aí que provam o quanto a ferramenta é bem feita, mesmo que com comandos bem desajeitados para o controle de mão. Não duvido que os melhores itens do jogo são feitos por jogadores de PC, com mouse.
Este certo deslumbre pela criação de objetos cênicos customizáveis não é uma surpresa já que o jogo trabalha para o encantamento visual desde o começo. Se não é uma produção de altíssimo orçamento que transborda virtudes técnicas como as maiores produções recentes, sua estilo artístico tem algumas das melhores qualidades para arrebatar seu público alvo, com uma modelagem low poly que abusa da fofurice. Não importa o quanto nos esforcemos para o contrário, nosso avatar customizado sempre será uma graça, e os moradores da cidade, naquele formato de animais antropomórficos, estão sempre com um sorriso no rosto. Hokko Life também não economiza no uso de cores fortes e marcantes, e não à toa, há uma diversidade enorme de combinações para se fazer tintas cada vez mais extravagantes.
A movimentação, porém, é bastante simplificada, com animações bem limitadas e certos problemas de colisão, e não é raro entrar em uma pedra ou ficar enroscado em uma árvore mal plantada, bem como se deparar com uma série de paredes invisíveis e cenografia sem qualquer textura mais palpável. Elementos visuais mais profundos, como a projeção de sombras ou geração de partículas também são um tanto quanto simplórios, e a iluminação, mesmo nos momentos onde ela se torna um elemento do gameplay, não chega a se destacar. Outra coisa que pode incomodar é a possibilidade de algumas pinturas ou texturas a serem usadas nas paredes e no chão se mostrarem de baixa definição, quase como aquele efeito de usar uma imagem no formato jpeg sem muito preparo como preenchimento de um objeto 3D. Algumas decorações disponíveis, belas em teoria, ficam borradas e feias quando aplicadas, por exemplo.
Sem dublagem, o maior trunfo sonoro do jogo está na sua trilha musical muito condizente com a proposta tranquilizadora de ser um jogo, sobretudo, para se desfrutar sem pressa ou estresse. Os efeitos de ambientação funcionam, mesmo estando aquém quando se imagina a construção de uma ambientação bucólica, e como não há trabalho de vozes, todos os diálogos são realizados por texto, felizmente bem traduzidos para o nosso português brasileiro. Certos moradores apresentam pequenos traços de personalidade bem interessantes em uma fala ou outra, mas nada que os tire daquela zona de conforto onde nada deve ser levado a sério demais. Se um deles reclamar da vida, por exemplo, não se preocupe. No encontro seguinte ele estará feliz pelo sol e pelo dia tranquilo. Afinal, tirando um ou outro, nenhum deles parece fazer nada da vida além de estarem lá.
O maior trunfo de Hokko Life pode ser também seu maior defeito. É um jogo simples, de ações singelas, de escolhas sem gravidade. Ao não estabelecer parâmetros ou restrições severas para o que se pode fazer, ele não enrosca a vida de quem só está lá para curtir. Você pode cortar quantas árvores quiser, por exemplo, porque nunca faltarão sementes gratuitas para se plantar novas, e a cada uma que você derruba, outras infinitas brotarão. Mesmo que alguns recursos sejam mais raros ou demorados de se conseguir, nada é de fato desafiador para o jogador que não a própria vontade ou pressa. Este não é daqueles jogos de 10 ou 15 minutos, é sim daqueles de se virar a madrugada jogando sem sentir o tempo passar, porque sempre se pode encontrar mais uma borboleta, fabricar uma nova tintura ou construir uma nova casa para um pretenso morador. Há quem possa se entediar com tal proposta, há quem possa se encantar exatamente por ela.
De uma forma ou de outra, Hokko Life não consegue escapar dos rótulos que inevitavelmente lhe serão estabelecidos, e provavelmente não tem nenhum intenção disso. Sim, esse é definitivamente uma alternativa a Animal Crossing para quem não tem um Nintendo Switch; é tipo um Harvest Moon mais leve e descompromissado; é um life simulator infantilizado e voltado para um público casual ou simplesmente que esteja em busca de algo menos especializado para passar um tempo tranquilo e aconchegante. Se a cena inicial parece um convite convincente a uma aventura misteriosa, o que vem a seguir, de mistério, não tem nada além da própria vontade e curiosidade do jogador. Em tempos onde tudo quer ser mais e mais profundo, mais e mais complicado, Hokko Life talvez seja exatamente o oposto, e busque na mais pura simplicidade seu motivo de existir.
Jogo (versão de PS4) analisado no PS5 com código fornecido pela Team17.
Veredito
Embora se aproprie de mecânicas comuns e de um sistema de progressão quase protocolar, o que pode desagradar quem busca por algo diferente do que já vimos antes, Hokko Life, sem nenhuma vergonha de suas referências e inspirações, realmente se destaca pelo sistema de criação e customização de itens e principalmente pelo encantamento de sua proposta leve e pueril.
Although it takes advantage of common mechanics and an almost protocol progression system, which can displease those looking for something different from what we’ve seen before, Hokko Life, without any shame in its references and inspirations, really stands out for its creation system and customization of items and mainly for the enchantment of its light and childish proposal.
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