Um action-RPG single player com um sistema de progressão narrativa baseada em decisões morais em um mundo fantástico onde todo um reino está em conflito com inimigos bárbaros e monstruosos, com cada escolha do jogador podendo desvelar uma série de finais diferentes. Com essa descrição simples (e um tanto quanto ampla), você pode estar imaginando – como eu imaginei quando ouvi sobre o jogo pela primeira vez – que estou aqui para falar sobre um novo game com suas dezenas de horas, sistemas de evolução complexos, um mundo aberto gigantesco, cheio de missões paralelas e pontos de interesse e toneladas de diálogos, textos e documentos a se desvendar. Bem, hoje, esse não é o caso.
Hindsight 20/20: Wrath of the Raakshasa (título que, confesso, não me parece muito prático para o pessoal do marketing) é um jogo bastante simples. Cada escolha de design feita aqui pelo time de desenvolvedores da Triple-I Games – que conta com alguns veteranos da indústria – busca ser a mais descomplicada possível, a ponto de ser um tanto quanto decepcionante para quem leva algumas definições mais rígidas do RPG ao pé da letra. Para ser sincero, não fosse a possibilidade de caminhos e consequências possíveis, não sobraria quase nada dos elementos que consagraram o gênero ao longo dos últimos 30 anos.
Logo de início, somos apresentados ao misterioso Jehan, filho de um conhecido herói local do reino de Champaner, cujo assassinato político ainda lhe é bastante questionável. Descobrimos também que esse lugar, que decidiu por valorizar a vida, a não-violência e a convivência em harmonia está passando por dias complicados que os levam até mesmo a questionar o seu estilo pacífico de existir. Um vírus misterioso começa a transformar pessoas comuns em monstros sedentos por sangue, os Raakshasas, e toda o equilíbrio está ameaçado, cabendo a Jehan fazer as escolhas que irão desenhar o destino de cada um.
Isso significa que a forma como decidimos lidar com as missões que nos são apresentadas serão fundamentais para moldar como o mundo reage. O primeiro exemplo está logo na introdução, onde descobrimos que nosso melhor amigo é refém do guerreiro que também é aquele que matou o pai de Jehan. Para chegar a ele, enfrentamos alguns soldados da guarda real e somos introduzidos á primeira decisão significativa: enfrentá-los com uma força mortal, utilizando uma poderosa espada vermelha e eliminando-os violentamente, ou utilizar um bastão azul não-letal para incapacitá-los. Esta dualidade dará o tom de toda a aventura e, de algumas formas, definem não só nosso preceito ético para com esse mundo, como principalmente como todo o resto irá reagir conosco.
Na prática, há algumas diferenças importantes. A espada nos permite combos potentes, agressivos e mais fortes contra os adversários, enquanto o bastão é mais adequado para controle de múltiplos inimigos. Ambos os modelos são apresentados via flashs bastante didáticos, que nos ensinam a utilizar um botão de ação principal e outro para um dash bastante providencial. Mais tarde, aprendemos comandos que valem, com algumas variações mínimas, para os dois estilos, aqui chamados de Misericordioso e Implacável. É possível inclusive variar entre ambos a todo momento, mas escolher com qual seguir por padrão facilita quando se define aquilo que se quer fazer. A recomendação é definir um ou outro e seguir até o fim com ele, pelo menos nas primeiras runs, e depois brincar com a alternância para descobrir o que cada variação traz de consequências.
Cada estilo também deve ser contemplado com até quatro movimentos especiais principais e um golpe mais forte, ambos que podem ser utilizados ao se carregar uma barra secundária, semelhante (mas não equivalente, já que não temos magia) a mana, técnicas aqui chamadas de Shakti. Ela vai se enchendo à medida em que coletamos espólios das batalhas e, quando completa, pode ser usada tanto para ataques únicos e devastadores (utilizando o botão círculo) ou uma série de golpes diferenciados com o triângulo. Por fim, há ainda uma barreira de defesa que minimiza danos inimigos, um movimento que combina agilidade e potência, e outro que se apropria dessa barra especial. Parece mais complicado do que é, mas na prática, e é algo com que logo se acostuma.
Esse e o modelo básico de jogabilidade: ataques comuns e combos utilizando um único botão, o dash (que também é limitado por uma barra de estamina) e alguns movimentos especiais que se apropriam de uma barra determinada. Soma-se a isso somente mais uma função, que é a de puxar e empurrar caixas para resolução de puzzles. Não há saltos ou elementos de plataforma, por exemplo, e as interações com objetos são das mais simplificadas. O mesmo vale para o modelo de progresso, bastante linear. A narrativa é dividida em três atos, com o primeiro deles dividido entre a introdução e algumas missões no estilo dungeons pela capital do reino. Entre, enfrente os inimigos sala após sala, resolva alguns quebra-cabeças, recolha chaves, abra as passagens e chegue ao ponto de interesse. Ainda há alguns documentos colecionáveis com informações adicionais pelo caminho, nada demais.
O segundo e o terceiro atos são ainda mais diretos, onde não há sequer exploração ou qualquer liberdade de exploração. Entramos em um caminho segmentado por bolsões com desafios de combate ou puzzles até chegar ao chefão. Uma estrutura bastante rasa e sem qualquer diversidade ou surpresa, um tanto quanto frustrante considerando que a primeira metade trazia alguns elementos de ambientação que prometiam e que nunca se realizam de fato. Se no começo podemos andar pela cidade, conversar com os moradores, descobrir vielas e mesmo sem muita integração com o cenário, sentir esse universo, a segunda metade é apressada, extremamente protocolar e sem qualquer desenvolvimento e aprofundamento narrativo.
O desequilíbrio fica ainda mais evidente quando o verdadeiro conflito nunca chega a se desenrolar de fato. É como se mesmo com os três atos básicos de uma narrativa clássica – apresentação, desenvolvimento e conclusão – o jogo dedicasse dois deles para preparar o jogador e todo o resto fosse comprimido, sem qualquer profundidade, num trecho final. Explico melhor: o primeiro terço do jogo é dedicado a como decidimos nos comportar com os humanos, decidindo se e como vamos ajudá-los, e isso reflete na forma como eles nos vêem, como um herói ou uma ameaça. Na segunda passagem, somos sujeitados às provações do rei que decidirá se somos ou não dignos da tarefa de vencer o mal. Aí sim, quando nos mostramos capazes, já vamos para o final. O jogo termina, em termos de história, quando deveria estar começando de verdade.
Quando comentei lá no primeiro parágrafo sobre Hindsight 20/20: Wrath of the Raakshasa subverter as expectativas criadas pela sua sinopse, isso também fala sobre o desenvolvimento da trama e, consequentemente, sobre a sua campanha curtíssima (algo em torno de três a quatro horas, no máximo, da primeira vez, e muito menos nas seguintes), o que é muito pouco, mesmo considerando o escopo de produção independente. De alguma forma, isso é muito interessante e proposital, já que permitiu que eu, por exemplo, pudesse jogar o game inteiro algumas vezes para conhecer comportamentos, desdobramentos e finais diferentes, em uma uma estrutura, à sua maneira, de ciclos e loopings temporais. Por outro lado, falta densidade, falta gravidade, faltam uma série de elementos de engajamento para uma trama desse porte. Pelo que apresenta, pelo que promete, acaba se mostrando um jogo raso e extremamente apressado.
Olhando por uma prisma diferente, porém, a jornada é bastante adequada quando se considera um modelo de gameplay sem quaisquer variações ou distrações, já que dura o suficiente para que saibamos lidar bem com as mecânicas e funções disponíveis sem se tornar extremamente repetitivo. Não sei bem se isso é exatamente uma qualidade, já que ao não oferecer diversidade e inventividade suficientes para manter a atenção e a curva de aprendizagem em constante crescimento, o jogo parece muito mais uma ideia do que um projeto sólido de fato. Os quebra-cabeças, algo que poderia trazer novidade e equilíbrio aos trechos de batalha, são extremamente fáceis e muito mais trabalhosos pelo exercício braçal de ficar arrastando blocos para lá e para cá do que pelo exercício mental da solução.
Armadilhas, timing, precisão de movimento, padrões de inimigos, tudo é bastante comum e não oferece muito ao jogador. A variação da dificuldade está muito mais na agressividade dos inimigos, estes que sim, podem ser mais complicados, até porque uma sequência de golpes desfavorável pode nos eliminar sem muito aviso. Ainda assim, isso só começa a exigir mais do jogador nos dois níveis mais elevados. No modo normal (como pode ser conferido no vídeo do início desta análise), a curva de dificuldade não tem qualquer gradação. O que você vê nesses primeiros 40 minutos é a constante da jornada toda. Mesmo chefões usam quase dos mesmos padrões do que é visto nesse início. Do começo ao fim, não se aprende algo de realmente novo, e o jogo também não exige que isso aconteça.
A diversidade, contudo, é uma das qualidades no aspecto estético, ainda que mesmo aqui haja uma série de inconstâncias. Nosso herói é sim bastante estiloso, com uma máscara que nos impede de reconhecer seu rosto e um figurino que nos remete, livremente, a referências diversas como Assassin’s Creed ou até Star Wars. O fato do protagonista não ter um dos braços só aumenta esse tom de mistério sobre ele, algo que o jogo usa com sabedoria. Ao não saber muito sobre seu passado mais recente, cabe ao jogador preencher, quase que por instinto, seus traços de personalidade.
Elogios também à cenografia, sobretudo dos trechos dentro da capital do reino, e também das terras estrangeiras, com paletas de cores bastante particulares e que valorizam, para depois questionarem, o maniqueísmo dicotômico das primeiras impressões. O ambiente é bonito, com construções que trazem, em si, suas próprias características e que renderiam muito mais profundidade se assim desejasse quem está contando essa história. Há suas limitações, claro, até pelo escopo da produção independente, mas dentro do seu contexto, é um jogo bastante exuberante em certos recortes.
Por outro lado, a modelagem da maioria dos personagens é bastante pobre. À exceção de um ou outro personagem mais importantes para a história, todos os demais parecem uma mistura pouco inspirada de bonecos Playmobil com avatares comuns do Miiverso da Nintendo, só que sem carisma ou individualidade. Mesmo alguns dos NPCs mais destacados não contam com qualquer personalidade e se mostram esquecíveis. Essa falta de diversidade afeta também o gameplay, já que são pouquíssimos os tipos de inimigos diferentes, e os monstros, quando surgem, só parecem skins para o que já vimos com a roupagem dos soldados humanos. Com um ou outro elemento mais pontual, há muito pouco o que prestar atenção nesse aspecto. Você pode até conversar com algumas pessoas na rua ou ouvir inimigos que decidiu poupar, mas jamais vai se lembrar (ou se importar) com algum deles.
A texturização do jogo me soou estranha desde o princípio – até fui garantir que não era algum problema na configuração do jogo ou do meu console para ter certeza – e ainda que seja algo diferente do convencional, nunca me convenci de que funciona. O modelo de iluminação global também não chama muito a atenção e ambientes internos são muito menos inspirados que os cenários principais. O game parece sempre arranhar algo realmente mais ousado, mas no geral acaba apostando no comum. Sonoramente a história é outra, com algumas boas canções orquestradas que abusam dos instrumentos de corda para oferecer um elemento épico a combates ou até de tensão a trechos sombrios, sem conflitar com um bom trabalho de ruídos que lida bem com o que tem. Não há grandes passagens onde a ambiência faz diferença, mas no geral, o som está muito acima da imagem.
Todavia, há o sistema de escolhas, talvez o principal diferencial do game. E sim, aqui há méritos e potencialidades, que valorizam o fator replay. Isso porque não há simplesmente a dualidade entre ser violento ou não contra os adversários. Escolher entre ser misericordioso com um monstro ou um soldado pode mudar como esses personagens irão interferir no seu futuro; escolher entre lutar ou não pode salvar (ou condenar) alguém, decidir se você resgata criancinhas ou as deixa ao cuidado do exército define até como a população se sente em relação à sua presença. Cada decisão pode mudar quais escolhas você pode fazer inclusive no encontro com os principais personagens e até adicionar trechos de gameplay ausentes em outros caminhos.
Retornar ao começo para fazer escolhas diferentes, em tempos onde universos possíveis estão em voga na cultura pop, é algo até incentivado ao final de cada run concluída, quando o jogo pergunta se você deseja voltar no tempo para tomar outras decisões, em uma espécie de New Game + disfarçado. Nesse aspecto, a curta duração é uma grande vantagem, já que não existe save state aqui, o que inviabiliza, por exemplo, que retornemos até um ponto específico para seguir dali. Para ver finais diferentes, é necessário sempre recomeçar do zero. É verdade que depois de uma terceira vez, dá vontade de ter a possibilidade de só recarregar um save lá pelo meio da trama para ver um desdobramento de uma ou outra decisão, mas enfim, não é possível, uma escolha de design que deve buscar privilegiar a permanência no jogo.
Curioso dizer que mesmo com todas as ressalvas que apresentei ao longo do texto, essa característica narrativa me cativou e eu realmente desejei jogar a campanha mais vezes, independentemente da necessidade disso para essa análise. A estrutura narrativa é bastante falha e a história não vai ganhar nenhum prêmio de originalidade; artisticamente o jogo tem seus momentos, mas não chega a se destacar verdadeiramente; e o gameplay é bastante básico sobretudo para um jogo que se pretende um RPG de ação tridimensional com duas abordagens diferentes, mas mesmo assim, temos um protagonista sem rosto com um passado nebuloso (figura clássica de uma boa história do solitário errante) e um sistema de escolhas que realmente nos desperta a pergunta “e se…?”, algo que muito AAA sofre em propor.
Como um todo, Hindsight 20/20: Wrath of the Raakshasa parece um grande ensaio para uma ideia realmente inovadora e divertida, mas em vários aspectos acaba ficando no “quase”. Eu queria mesmo ter gostado mais de várias de suas características, como gostei de algumas, mas elementos como ritmo, construção narrativa e progressão da relação desafio/habilidade são fundamentais para uma experiência profunda e marcante. São aspectos que até trazem conceitos promissores, mas que não passam disso, e o modelo de moralidade e possibilidades alternativas é o que mais me chamou a atenção, a ponto de eu me ver repetindo coisas sem qualquer interesse só pra ver o que vai acontecer quando eu decidir fazer isso ou aquilo horas depois. Se a essência da experiência do jogo, como já diria o teórico dos jogos Johan Huizinga há décadas atrás, é o jogo em si, e não o objetivo-fim, gostar menos do processo do que do resultado não é dos sintomas mais desejados para uma obra como essa.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Triple-I Games.
Veredito
Hindsight 20/20: Wrath of the Raakshasa traz algumas ótimas ideias, principalmente em quesitos como escolhas possíveis, causa e consequências e narrativas bifurcadas, mas isso não é o suficiente quando há falhas significativas em quesitos deficientes como a narrativa apressada, a jogabilidade rasa e um visual inconstante. Tem méritos, mas falta muito para se tornar aquilo que deveria ser.
Hindsight 20/20: Wrath of the Raakshasa brings some great ideas, especially in terms of possible choices, cause and consequences, and bifurcated narratives, but that’s not enough when there are significant flaws in weak aspects such as rushed narrative, shallow gameplay and inconsistent visuals. It has merits, but there is still a long way to go before it becomes what it should be.
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