O sistema independente de produção cultural – sobretudo na área de games – é muito provavelmente a maior e mais significativa revolução das últimas décadas e que cada vez mais toma contornos interessantes no que se refere a um multiculturalismo policêntrico. Se houve um tempo, lá atrás, onde os pequenos desenvolvedores investiam mais em tratar de temáticas universais com vistas a um alcance global de suas obras, é realmente instigante acompanhar um movimento crescente nos últimos anos de valorização de elementos locais, de histórias características de um povo, algumas sobre as quais muito provavelmente jamais ouviríamos falar não fossem produções como Helvetii.
A pequena Team KwaKwa, com base na Suíça, nos propõe uma experiência intensa de ação bidimensional no melhor estilo roguelike que traz em sua narrativa elementos de mitos gauleses e helvécios cujas características estéticas nos lembram de muito do que já vimos em histórias com origem no velho continente, mas que ao mesmo tempo trazem particularidades e regionalismos capazes de nos encantar por um mundo novo. Em outras palavras, toda a ambientação do jogo bebe de várias referências conhecidas e, ainda assim, tem uma capacidade bem-vinda de nos surpreender, seja com uma frase solta dita pela coruja comerciante, seja no design de um inimigo que parece ter brotado do chão.
O jogo é localizado no que já foi conhecido antigamente com a região da Gália (o que corresponde ao que atualmente é a parte ocidental da Suíça), agora livre do domínio do poderoso império romano. Divico, um grande herói de seu povo, é conhecido por liderar uma vitória categórica sobre os invasores usando poderes extraordinários que, contudo, tiveram um custo alto, e o pacto ao qual ele se subjulgara começa a cobrar seu preço, com o que se convencionou chamar de podridão se espalhando por suas terras. Criaturas corrompidas, seres elementais e cultistas se proliferam, e não é difícil compreender que há alguém por trás de tudo isso, manipulando o mundo com seus interesses mais obscuros.
No game, temos a oportunidade de escolher dentre três personagens diferentes com arquétipos reconhecíveis: um guerreiro de capa e espada, que é o próprio Divico, personagem que equilibra elementos de combate próximo e a distância, além de força e agilidade; uma criatura meio-homem meio-raposa conhecida como Renart que empunha uma foice e é mais dedicado à velocidade e ataques incisivos; e um druida chamado Nammeios capaz de controlar forças da natureza e cuja técnica se destaca pela efetividade à distância, um tripé de perfis que não é difícil nos lembrar de tantos outros jogos que trazem possibilidades para se adequar melhor ao estilo do jogador.
Como já se pode antever pelo gênero, temos uma estrutura bastante sólida onde escolhemos nosso personagem para uma nova run pelo mundo desolado do jogo e acabar com a tal podridão que avança sobre tudo e sobre todos. Cada localidade é composta por dois níveis, o primeiro com um chefe intermediário e o segundo com o grande adversário deste mundo, e cada nível é dividido em quadrantes (nem sempre simétricos entre si) com um grupo de adversários que devem ser vencidos para que possamos avançar para o próximo. Com um mapa gerado proceduralmente – o que torna cada nova investida em uma experiência comparativamente diferente – há espaços especiais onde podemos desbloquear baús com melhorias e sala de compras, além da opção de acionar maldições.
Como há suas limitações por conta do fator randômico, o desenho de níveis é dos elementos menos impactantes porque se aproveita de alguns templates pré-programados e que são facilmente reconhecíveis depois de algum tempo, e na maioria das vezes é composta por trechos em linha reta que, quando muito, tem acesso a caminhos verticais, mas que pouco se aproveitam das possibilidades de terrenos acidentados ou até mesmo armadilhas móveis e outros artifícios similares para dar mais diversidade para os ambientes. Ainda que as fases avançadas sejam mais ousadas e possibilitem o uso da geografia até para montar combos ou mesmo se proteger de hordas volumosas, ainda haveria muito mais a se explorar nesse sentido.
Como já era de se esperar, tudo o que é adquirido in-game é de efeito temporário e vale somente para aquela run: tesouros, chaves para abrir baús, melhorias, maldições (que basicamente trocam pontos de vida por um benefício) e itens comprados, tudo se vai assim que caímos em batalha, algo que vai acontecer, e muito, até estarmos prontos para chegar ao fim da jornada. A única coisa que fica como legado são recompensas de desbloqueio de selos com melhorias permanentes, como pontos extras de vitalidade, itens extras logo de início e outras coisinhas mais. Para conquistar esse elemento precioso, é necessário vencer bem cada bloco de inimigos, de preferência alcançar um bom ranking em todos eles, e acabar com o chefe da fase, para assim contabilizar seus espólios. Aí sim os ganhos são contabilizados e podem ser utilizados nos tais selos.
Em resumo, é o típico jogo de paciência e resiliência que o gênero pede, sem tantas complicações e cuja melhor qualidade é ser objetivo ao máximo. Nada de ter um monte de moedas ou pontos de experiência diferentes, nada de inventário lotado de opções de armadura, armas e equipamentos, muito menos árvores de habilidades cheias de ramificações complexas, nada disso. A interface é limpa e permite que o jogador esteja totalmente focado em dar ao menos um passo a mais a cada nova investida, valorizando o aprendizado pela experiência e permitindo que se entenda as principais mecânicas de combate que, ao mesmo tempo, elevem a plasticidade de movimentos incisivos, e que nos deixem vulneráveis o mínimo possível, porque cada dano sofrido pode custar caro depois.
E se o estilo é um elemento importante, a ser considerado inclusive no momento de pontuarmos, é bastante gratificante compreender o sistema de combos desde o início, com um ataque rápido, um projétil providencial que consome nossa barra de mana, um ataque especial e a já indispensável esquiva. Conseguir compor movimentos calculados com essas possibilidades é uma das proezas mais satisfatórias de Helvetii. Soma-se a isso habilidades especiais que invocam divindades, seja para o ataque, seja para a defesa, e há um modelo de combate baseado na ação dos mais completos e prazerosos do gênero que transpira a máxima se ser fácil de aprender, mas bem difícil de se dominar.
Isso porque há uma fluidez de movimentos que fomentam o aprendizado do jogador em encontrar janelas que encadeiem ataques diferentes, como uma coreografia quase poética. A precisão de ataques demanda uma certa prática, mas os tutoriais são meros espaços para descobrirmos a natureza de cada comando, porque é na aventura onde as habilidades devem ser testadas. Mesmo os poucos elementos de plataforma conseguem ser responsivos o suficiente para que nos sintamos no controle da situação, evitando erros bobos e sem sentido como cair de um galho em espinhos, o que significa que, ao nos delegar esse domínio, Helvetii está indiretamente também colocando o sucesso ou fracasso exclusivamente na nossa conta.
O perigo desse tipo de jogo é, como sempre, cair em um estado de repetição permanente e de progressão custosa em termos de tempo e reiterações. Com um sistema sólido de combate, mas sem um modelo de progressão robusto, pode ser que o game se desgaste antes mesmo de chegarmos mais longe na história. Para passar do segundo ponto no mapa, só para exemplo, eu perdi as contas do quanto tive que repetir o primeiro e mesmo com a aleatoriedade ajudando no sentido de novidade, é cansativo passar pelos mesmos caminhos maquiados só para ter um pouco mais de recursos e bagagem. Ainda gosto muito mais desse formato ter praticamente substituído aquele mais tradicional onde havia contagem de vidas e quando elas acabavam voltávamos do zero sem nenhum bônus, mas mesmo assim, esse é o maior motivo pelo qual roguelikes não caem nas graças de uma parcela significativa dos jogadores. Se você está entre eles, Helvetii não vai fazer com que você mude de opinião.
Nada das melhores qualidades do game, contudo, seria tão encantadoramente visceral sem considerar o seu belíssimo trabalho artístico, com cenários muito bem detalhados pintados à mão e que transbordam profundidade de campo e movimento. É simplesmente deslumbrante. O mesmo vale para o design tanto dos protagonistas, cada qual com suas especificidades, e dos inimigos, mesmo os mais comuns e corriqueiros. Destaque, claro, para as nuances de cada chefão que conseguem se integrar ao ambiente de um modo rico e narrativamente coerente, mesmo com o elemento fantástico permeando toda a produção. Quando não estamos sendo massacrados por eles, claro, são absolutamente lindos.
Tão adequada quanto a arte é a trilha sonora, com belas canções permeando toda a aventura se mesclando com efeitos e ruídos muito bem colocados. Há uma certa imponência digna de grandes épicos, mas que ao mesmo tempo traz um tom intimista para uma jornada que está o tempo todo tão próxima. O mesmo vale para a localização dos textos para o nosso idioma, algo muito adequado e que nos ajuda a entender um pouco melhor o que está se passando e, mais ainda, a relação entre nossos heróis, mesmo que as melhores partes da interação não estejam em grandes cenas de corte.
Com inspirações que muito lembram do saudoso Muramasa: The Demon Blade e de outras obras da conhecida Vanillaware, Helvetii é uma bela obra de arte onde todo o aspecto audiovisual contribui para uma experiência catártica e bem equilibrada de um típico roguelike. Sem reinventar a roda, o game oferece uma ação mais direta e uma progressão simplificada que nos guia em um mundo claramente em desequilíbrio e que encontra nas mãos de três heróis a sua esperança. Se o level design sofre as consequências de ambientes mais fechados e dos modelos de geração randomizada, principalmente nos primeiros níveis, a caracterização de personagens e, principalmente, a composição de mundo brilham como poucos.
Jogo (versão de PS4) analisado no PS5 com código fornecido pela Red Art Games.
Veredito
Helvetii é belíssimo ao unir artes feitas à mão e mecânicas sólidas de movimentação e combate em uma estrutura desafiadora típica do roguelike, algo que certamente vai agradar qualquer fã do gênero. Porém, a exploração dos ambientes e a progressão relativamente lenta não são as melhores de suas qualidades.
Helvetii is beautifully crafted, blending handcrafted art and solid movement and combat mechanics into a challenging roguelike structure that is sure to please any fan of the genre. However, the exploration of the environments and the relatively slow progression are not the best of its qualities.
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