O conceito de casa mal assombrada é tão conhecido que seria uma grande surpresa ainda não termos um jogo que se utiliza exatamente desse título. Eu digo que seria porque obviamente que não é esse o caso. Haunted House, a versão original lançada para o inoxidável Atari 2600 em 1982, é para muitos um dos fundadores do gênero de terror nos videogames. Há quem diga que foi, de fato, o primeiro survivor horror da história, o que pode gerar uma ótima discussão para ser feita com os fanáticos pelos primórdios de Alone in the Dark. Para o escopo desta análise, contudo, importante destacar que mesmo com toda a simplicidade de seu tempo, o game é muito menos conhecido e reconhecido do que deveria.
Depois de algumas tentativas de retorno pouco convincentes na década passada, eis que chega a nós uma nova versão da experiência, que se configura apropriadamente como um típico roguelite, se formos mais severos com definições. No controle de uma criança que se perde de seus companheiros ao adentrar esta famigerada mansão nefasta, é nossa missão nos embrenhar por entre corredores labirínticos, superar puzzles e outros desafios lógicos, sobreviver a criaturas pouco simpáticas à nossa presença e outras armadilhas mortais para, no processo, encontrar nossos amigos perdidos e escapar, de preferência com vida, daquele lugar assustador.
A tarefa não é nada fácil, já que uma estranha magia transforma todo o leiaute do lugar o tempo todo, e cada vez que somos derrotados, retornamos ao hall de entrada de onde será necessário começar tudo de novo. Não exatamente do zero, porque alguns recursos que coletamos são importantes para que consigamos desbloquear melhorias permanentes com alguns dos estranhos, mas ao menos amistosos moradores do lugar, o que, em outras palavras, é exatamente uma definição objetiva do gênero, onde cada run é única, e a resiliência nos permite premiações que nos dão melhores condições para ir um pouco mais longe na próxima investida.
Estes recursos são basicamente moedas conquistadas a cada nova sala superada – todas elas tem um desafio específico a ser cumprido, como acabar com todos os inimigos ali presentes, acionar alguns interruptores espalhados, etc. – e algumas raridades, estas mais limitadas e escondidas em lugares pouco óbvios. Os comerciantes de melhorias, se assim posso chamá-los por falta de um título melhor, são bastante simpáticos e além de nos permitir upgrades necessários, nos ajudam a entender também a pequena, mas importante lore daquele lugar maldito. Neste aspecto, independentemente do contexto, qualquer pessoa que tenha experimentado um jogo similar irá reconhecer os arquétipos e a dinâmica cíclica que, para ser sincero, parece estar chegando (ou já ter ultrapassado) em um estado de saturação no mercado atual.
Se estamos no controle de uma criança comum, é importante saber que o sistema de enfrentamento das criaturas sobrenaturais não é um dos maiores destaques dentre as mecânicas do jogo. Isso não é caça-fantasmas, e não temos em mãos muitos recursos mediúnicos, então obviamente são poucas as armas para um combate mais direto com as assombrações que povoam o lugar. A lanterna é a nossa melhor amiga na maioria do tempo, não só por nos ajudar a encontrar caminhos em meio a quase completa escuridão, como também por nos permitir eliminar inimigos distraídos. É pouco efetiva quando estamos sendo perseguidos, mas premia uma ação furtiva eficiente.
Por outro lado, há alguns tipos de armadilhas mais potentes que podem ser arremessadas à distância ou posicionadas estrategicamente no caminho de um fantasma em vigília. Prever o movimento dos inimigos não é das tarefas mais difíceis, já que eles mantem ciclos contínuos em trajetos identificáveis e a maioria tem evidente o campo de visão, facilitando um posicionamento que nos dê vantagem nesse enfrentamento. Atirar coisas é um pouco mais complicado e demanda uma certa aprendizagem de timing para não desperdiçar coisas em ataques falhos. O ponto de vista isométrico, aliado a certos obstáculos na visualização dos cenários, não ajuda nesta previsão e é fácil errar ataques que deveriam ser óbvios.
Os consumíveis temporários do jogo, porém, não se limitam a recursos de ataque e, ao contrário, valorizam o progresso sorrateiro. Há uma série de elementos que nos ajudam a distrair aqueles que estão em nosso caminho, além de outros que potencializam nossa saúde para que mesmo na falha momentânea, consigamos seguir em frente. A abordagem stealth é claramente a mais recomendada, salvo obviamente as salas onde eliminar os inimigos seja a tarefa obrigatória. Tentar limpar área por área é uma ação temerária porque consome todos os recursos (grande parte deles coletados nos poucos baús disponíveis) muito mais rápido do que conseguimos acumular. Escolha lutar sempre e já na terceira ou na quarta sala você não terá mais que um pato de borracha em seu arsenal.
Não há dúvidas de que Haunted House sabe exatamente como se apropriar do ciclo de incursões tão típico do gênero, e toda a sua estruturação é feita para que aprendamos as melhores estratégias de jogo enquanto acumulamos recursos para melhorias permanentes. A curva de aprendizagem e de dificuldade seguem consonantes de forma bastante sólida, culminando em uma combinação perfeita para que finalmente o jogador possa chegar ao fim da aventura de forma satisfatória, vencendo os chefes de forma segura e libertando seus coleguinhas das garras do mal. Pode ser que isso demore um pouco mais pra uns do que pra outros, mas essa capacidade adaptativa é essencial para o sucesso de um game como esse. A dinâmica roguelite parece ser feita para esse jogo e vice-versa.
Uma das maiores armadilhas do jogo poderia ser a impossibilidade de variar os cenários, visto que por mais fantástica que seja a temática, ainda estamos falando do interior de uma mansão antiga. Porões sujos, quartos cafonas, bibliotecas abarrotadas e salões cheios de ostentação são grande parte dos cômodos que visitamos, mas surpreendentemente, há uma variedade de desenhos de fase que conseguem sustentar a repetitividade das inúmeras jornadas. O estilo artístico do jogo, que brinca com uma estética cartunesca mais infantil aliada a ótimas soluções de iluminação e volumetria, também é competente em equilibrar a temática de horror a uma aventura vespertina de Halloween.
Isso significa que a arte desenhada à mão pode até parecer pouco inspirada em alguns momentos, como no design de grande parte dos monstros da casa, mas brilha na maior parte do tempo, seja nos ricos cenários compostos, seja no carisma de personagens. Por sua vez, a trilha musical é ótima e lembra uma mistura entre os melhores momentos de Scooby-Doo com a Família Addams, acelerando e cadenciando nos momentos certos, ainda que eventualmente se torne um tanto quanto cansativa com o tempo, principalmente porque não há pontos de interrupção. Os diálogos, quando aparecem, são feitos somente por texto (felizmente localizados para o nosso português brasileiro) e os efeitos e ruídos são tímidos demais considerando o papel protagonista que deveriam assumir num jogo como esse. Em termos audiovisuais, há um charme desajeitado e pouco usual que faz bem para o tom da produção.
As consequências destas escolhas, porém, podem ser um pouco irritantes quando a perspectiva não nos dá informações o suficiente de distância e de alcance tanto de nós para com os inimigos, como deles para conosco. Com algumas ações dependendo de decisões em frações de segundo, é comum ser detectado simplesmente porque a resposta do prompt de comando não foi condizente com aquilo que queremos fazer. Falhar por incompetência nossa é parte do aprendizado, mas quando isso acontece pela demora de um jogo que exige precisão, a frustração é genuína. A aprendizagem ofererida pelo jogo é algo também insuficiente, já que ensina algo com alguns inimigos comuns, mas aqueles mais interessantes precisam de um processo empírico de compreensão, o que poderia ser interessante não fosse a punição por ousar testar algo ser recomeçar tudo de novo.
Na soma de todos os fatores, Haunted House é vítima de todas as suas particularidades, daquilo que faz dele algo genuíno. Considerando a saturação do gênero, o jogo consegue se destacar com um sistema bastante preciso e equilibrado entre fracassos e recompensas, e funciona exatamente como se espera. Isso significa também que esperar qualquer elemento de originalidade aqui é uma forma enorme de se decepcionar. A inovação pode ser percebida na dinâmica interna de cada unidade celular, que prioriza a furtividade em detrimento à ação direta e à habilidade de combate, mas passar uma aventura inteira se esgueirando é algo que pode não agradar todo tipo de jogador. No fim, é um jogo para um nicho dentro do nicho, não se esforçando jamais em agradar quem estiver fora desta bolha.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Atari.
Veredito
Haunted House é exatamente aquilo que se espera de um roguelite convencional, favorecendo a furtividade em detrimento ao combate direto. Abusando de um estilo artístico cartunesco, oferece boas, mas por vezes instáveis mecânicas, além de um modelo de progressão sólido, porém repetitivo e nem sempre recompensador.
Haunted House is exactly what you expect from a conventional roguelite, favoring stealth over direct combat. Abusing a cartoonish artistic style, it offers good but sometimes unstable mechanics, as well as a solid but repetitive and not always rewarding progression model.
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