Não importa se você, eu, ou qualquer outra pessoa próxima do nosso contexto é religiosa de um modo mais ou menos dedicado e praticante, pois tratar, em obras de ficção, de temas relacionados à fé, principalmente a de natureza cristã, é sempre algo bastante delicado. Não é como falar de divindades e outros elementos culturais de povos antigos, como a cultura pop já cansou de fazer com as mitologias grega, nórdica, celta, egípcia, dentre outras, cuja liberdade criativa tende a ficar bastante afastada de quaisquer polêmicas sobre o respeito, ou a falta dele, à crença alheia.
Talvez seja exatamente esta linha tênue que tenha me atraído para Gray Dawn, jogo de estreia do estúdio romeno Interactive Stone lançado lá em 2018 e que agora chega às plataformas Playstation contando a história do Padre Abraham Markus, um homem atormentado por acusações públicas bastante graves, envolvendo o assassinato de crianças do orfanato St. Ana’s. A partir do ponto de vista dele mesmo (uma narrativa não confiável, portanto), embarcamos em uma jornada investigativa de mistério e suspense na busca pela verdade, seja ela qual for. Guiado pela voz de um desses garotos, o qual parece ter alguma conexão com a plano sagrado, ele vai para além dos limites da realidade e da própria mente tentando entender o que aconteceu e, no caminho, entender a si mesmo.
Sem qualquer cerimônia, iniciamos a experiência em uma sala comum de um casarão, encontrando algumas pistas sobre onde estamos e quem somos, ouvindo relatos da imprensa sobre tais eventos criminosos e todas as acusações das quais o personagem central quer se defender. Em primeira pessoa, aprendemos o modus operandi básico do game, um clássico simulador de caminhada, cujo objetivo é investigar pistas, resolver puzzles e compreender os mistérios que ali habitam. Não demora para que o pretenso realismo da cena se dissipe em uma perturbação que mais parece disparada por alguns gatilhos que, mais tarde, descobriremos quais são. Definitivamente, o protagonista desta história é perturbado não só pelos eventos recentes, mas por outras angústias do seu passado.
Seguir além disso no que se refere à trama seria um desserviço, porque o maior e mais instigante atrativo do jogo está justamente naquilo que descobrimos a cada nova sala que se abre e, principalmente, na transição entre diferentes planos que flertam com o horror sobrenatural, algo parecido com o que fez recentemente o mais novo Alone in the Dark, mas de uma forma menor protocolar e, digamos, deliciosamente mais caótica. Se em jogos como Silent Hill e The Medium, só pra ficar nos exemplos mais óbvios, a distinção entre dimensões é bastante cartesiana, em Gray Dawn a coisa é um pouco mais complexa do que isso. As barreiras entre o fantástico e a insanidade parecem bem mais turvas do que estamos acostumados em obras do gênero.
Se o aspecto religioso é intrínseco à ambientação – no final das contas, o jogo é centrado em um padre e nos questionamentos de sua própria fé – os dogmas cristãos são parte essencial também de toda a contextualização da investigação guiada por nós. Não porque colecionáveis são, literalmente, imagens sacras espalhadas pelos diferentes ambientes, mas principalmente porque muito da sua simbologia se apoia no que conhecemos da tradição clerical dominante no ocidente. É evidente que o trabalho de roteiro e construção de mundo se apoia em muito conhecimento de causa para além dos clichês vistos no cinema e em outras artes mais populares, fruto de uma direção de arte afiada e bem respaldada por uma boa pesquisa.
São metáforas, das mais sutis às mais explícitas, que tratam de templos, ensinamentos, regras morais e outros temas que funcionam como o fio guia do comportamento esperado para o jogador. Não há melhor exemplo do que rezar para apaziguar o sofrimento, algo visto nos primeiros instantes do game, o que parece trivial e óbvio, mas que se torna um pouco mais complexo mais adiante, quando o game não se furta em tocar em pontos mais sensíveis, como possessão demoníaca, rituais de purificação e coisas do gênero. Sem qualquer receio de se aprofundar, o jogo se apoia em signos e símbolos que criam no jogador um sentimento de reconhecimento, mas ao mesmo tempo de pouca previsibilidade.
Para se sustentar, porém, sem elementos comuns em jogos de terror mais convencionais, como sistemas de combate ou furtividade, a essência da jogabilidade está pautada no ritmo das revelações e eventos-chave. Não há aqui um grande fator labiríntico que nos deixa perdidos pela casa que centraliza as ações principais da trama, e portanto não espere por um sistema de backtracking como nos clássicos Resident Evil. O roteiro é convencionalmente linear, e mesmo que nos coloque para procurar a porta certa em um ou outro momento, tudo é mais objetivo. Saímos de um local de interesse, quase sempre, diretamente para outro. Mesmo sem um mapa ou artifícios de localização, tudo parece fluído e orgânico, as vezes até demais.
Verdade seja dita, nem tudo. Em certas passagens, espaços pequenos para solução de enigmas na maioria das vezes, é comum ficamos presos procurando pelo que deve ser feito exatamente. Como a interface foi desenhada originalmente para computadores e, portanto, para o uso de mouse, emulando um adventure point-and-click, os pontos de interação nem sempre são óbvios ou fáceis de se ver. O problema de usabilidade (que não é uma dificuldade proposital, mas sim um ruído de interface) da iconografia clara fica ainda pior em ambientes bem iluminados, onde a “mãozinha” que indica que uma ação é possível se confunde com o plano de fundo. Nas oportunidades que fiquei meio perdido, a resposta era óbvia, mas pouco visível.
No mais, o jogo não apresenta muitas dificuldades que não seguir os trilhos. Os quebra-cabeças, na sua grande maioria, são óbvios e pouco inventivos, e se mostram atraentes muito mais pelo que significam do que pelas mecânicas em si. Alinhar três símbolos que lembram runas que aparecem brilhando quase em neon logo ao lado, está muito mais próximo do tutorial de jogos mais sofisticados nesse quesito do que algo realmente desafiador para um momento avançado na história. Se há algo onde se pode investir um pouco mais de tempo é na busca pelas gravuras dos santos, objetivos opcionais que geram, cara um deles, um troféu para os colecionistas de plantão. Gray Dawn não é feito para enroscar ou desafiar, mas sim para envolver a sua audiência em uma trama crescente e de ritmo constante.
Ainda assim, esses detalhes semiescondidos são de extrema importância não só para o envolvimento emocional, mas também vão compor a entrega do final da campanha. Negligenciar alguns ícones pode nos levar a um final inesperado, ruim de certa maneira, então mesmo que a exploração não seja o ponto mais forte desta produção, não são as escolhas, mas sim a atenção aos detalhes que podem mudar tudo. Claro que a maioria de nós, entusiastas, buscaremos ver os diferentes finais de uma forma ou de outra, até porque a campanha não dura mais que suas 4 horas em uma primeira iteração, menos ainda nas demais, mas como a primeira run é sempre a mais impactante, esse é um cuidado que deve ser tomado. Não é porque algo não trava o avanço que não tem importância, uma característica que me atrai bastante porque, de novo, ao não ser escancarado ou óbvio demais, não me subestima enquanto jogador.
Para valorizar esse engajamento, o jogo é consistentemente bem desenhado e visualmente muito convincente. Ciente de suas limitações técnicas, as soluções criativas são brilhantes ao transformar modelos humanos, os mais complexos de se moldar de forma realista, em objetos perturbadoramente irreais. Se é verdade que mesmo as maiores produções tendem a mostrar pessoas como bonecos animados, Gray Dawn abraça isso com todas as forças e deixa tudo um pouco mais bizarro. Também gosto de outras escolhas artísticas, como colocar filtros e superfícies disformes entre nós e outras figuras humanas nas poucas vezes que elas aparecem, criando a sensação de distanciamento e mantendo o clima bem sinistro.
Já na cenografia e nos cenários, também é bastante agradável ver a atenção aos detalhes, como mobiliário, texturas de materiais e preenchimento dos vazios. Espaços abertos e naturais são um pouco menos inspirados, mas cumprem muito bem o seu papel com ótimas soluções de vegetação, terreno e água. Encontrei algumas texturas genéricas aqui e outras borradas acolá, o que derruba a imersão de vez em quando, mas felizmente são exceções que não mancham a regra. Com uma surpreendente diversidade de espaços, independentemente de estarem restritos e cercados por paredes invisíveis, é um jogo bonito e bem cuidado, com notável capricho aos detalhes, e mais uma vez, um ótimo trabalho de pesquisa na iconografia religiosa.
Há alguns problemas de desempenho ainda notáveis, felizmente quase inofensivos. As telas de carregamento entre algumas missões são quase instantâneas no PS5 e trazem resumos escritos que ajudam a nos localizar na história. Destaque também para o sistema de iluminação, que foge dos virtuosismos técnicos e aposta no exagero quase barroco da temperatura de cor. Alguns filtros e efeitos são um tanto quanto cafonas, mas mesmo eles cabem no tom carregado do game, algo que vale também para as distorções no som, incluindo vozes e trilha musical. A mixagem de ruídos é econômica, as vezes repetitiva, e o trabalho de interpretação parece um tanto quanto protocolar principalmente ao precisar retratar uma pessoa emocionalmente em frangalhos.
Com ótimas melodias para pontos centrais na jornada, que trazem uma mistura entre o sacro e o profano sem apelar para hinos ou corais convencionais, há méritos que merecem o uso de um bom headset para se criar as condições certas para a tensão da proposta. Entretanto, pelo conjunto da obra, a banda sonora parece ser o ponto mais deficitário da obra. Impossível não lamentar ainda a falta de ao menos legendas em português, já que é um jogo que precisa ser bem compreendido para seu aproveitamento pleno.
Muito provavelmente eu não sou a pessoa mais indicada do mundo para dizer o quão fiel e representativo Gray Dawn é no que se refere ao respeito para com os paradigmas que lhe dão sustentação, mesmo conhecendo relativamente bem a maioria deles. Ainda assim, é evidente que o cuidado em não tornar personagens e situações uma caricatura de si mesmos traz ótimos resultados para um jogo que cai, vez ou outra, na armadilha do susto gratuito ou na repetição de padrões comuns, mas que no geral se constitui em um bom – e inesperado, devo acrescentar – thriller sobrenatural. Se o tema me intrigou quando ouvi sobre o jogo pela primeira vez, foi a construção de uma experiência modesta, mas sólida que me manteve lá até o final.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Interactive Stone.
Veredito
Um meio termo entre um adventure point-and-click e um walk simulator, Gray Dawn é intrigante e usa bem a temática religiosa para sustentar um bom suspense sobrenatural, mas peca pela falta de ousadia em puzzles e mecânicas, além de sua usabilidade ser pouco responsiva.
A middle ground between a point-and-click adventure and a walking simulator, Gray Dawn is intriguing and makes good use of the religious theme to sustain a good supernatural thriller, but it lacks boldness in its puzzles and mechanics, in addition to its usability being unresponsive.
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