Confesso que meu primeiro contato com a marca Granblue, consolidada no mercado mobile sobretudo no Oriente com um universo de RPG dos mais ricos e instigantes, foi por meio do game de luta Granblue Fantasy Versus, que me chamou a atenção muito mais pelo envolvimento da quase infalível Arc System Works do que necessariamente pela história ali adaptada. Com um modo história robusto, personagens dos mais estravagantes e um desenho de narrativa convincente, fui tragado para esse universo de tal modo que eu jamais teria imaginado. Quando Granblue Fantasy: Relink foi anunciado como um RPG ambientado naquela mesma diegese do game de luta, que por sua vez fora inspirado em um universo de RPG, eu não tive dúvidas de que queria muito conhecê-lo de perto e descobrir o que a Cygames, principal desenvolvedora por trás da franquia, havia preparado para debutar em sistemas como o PC e, claro, o PS5.
Quão surpreso fiquei quando, já na demo, descobri que a parceria com a Nuuvem havia possibilitado a localização para o português brasileiro, algo ainda não tão comum como em outros gêneros. As expectativas que eu havia criado, somadas às que o jogo havia demonstrado de potencial naqueles poucos minutos, foram o suficiente para elevar ainda mais o hype, e com o jogo em mãos em sua íntegra, posso adiantar, sem medo de entregar spoilers desta análise, que as minhas dezenas de horas diante o mundo de Granblue foram acompanhados de um sorriso perene de satisfação. Se não atinge a perfeição em um ou outro detalhe pouco importante, é fato que me diverti muito durante esta incrível e fascinante jornada.
Granblue Fantasy: Relink é, antes de mais nada, um típico RPG de ação em grupo com progressão primordialmente linear onde acompanhamos o protagonista – que oficialmente se chama Gran, é chamado nos diálogos de “capitão”, mas que pode ser renomeado logo de partida – junto a seus companheiros em uma típica aventura de resgate que, de quebra, precisa evitar a destruição de tudo o que existe. Lyria, de aparência delicada mas detentora de um imenso poder, é sequestrada por uma entidade que pertence a um povo multidimensional conhecido como Os Astrais. Os motivos para isso e as consequências desastrosas que derivam desse fato serão pouco a pouco relevados durante a trama, que conta com doses controladas de reviravoltas e pontos de virada antecipáveis, mas posso dizer que ainda que previsíveis, há eventos que podem fazer vibrar os mais empolgados, incluindo este que vos fala.
Experimentar a dinâmica estrutural do jogo nos faz lembrar, se é que em algum ponto esquecemos, que os conceitos de RPG e mundo aberto são inexoravelmente dissociados, mesmo que o mercado atual pareça nos querer fazer acreditar no contrário. Organizado cartesianamente em missões sequenciais e numeradas, o game não perde tempo com mapas gigantescos e complexos, múltiplos pontos de interesse, exploração exaustiva e backtracking, e funciona em um formato episódico, com tarefas demarcadas com começo, meio e fim. Temos um objetivo, subimos em nosso navio flutuante, cumprimos a meta e voltamos para a base, no melhor estilo old school. Claro que há capítulos que podem ser encadeados um em seguida do outro, mas nem mesmo o jogo parece querer que avancemos assim. Uma companheira está em perigo, o mundo pode estar acabando, mas sempre há tempo para retornar para a cidade onde somos bem-vindos.
Esta base – na verdade, são algumas que vamos desbloqueando conforme avançamos na história – funciona exatamente como o esperado. É onde encontramos NPCs pedindo alguma tarefa secundária, onde o comerciante nos vende bugigangas que não sabemos pra que servem só para minutos depois estarmos minerando aquele item desesperadamente, e onde também há o ferreiro que faz alguns serviços importantes pelo preço certo. A economia do jogo parece um tanto quanto complexa, por vezes temos que ganhar rúpias, trocar por itens que depois podem ser trocados, em outro lugar, por outras coisas, mas a dinâmica acaba sendo incorporada rapidamente. O que pode frear um pouco o ritmo da coisa toda é que o avanço tranquilo depende de níveis de evolução bem mais complexos de cada integrante da nossa party.
Primeiro, há os inevitáveis níveis de personagens, que são incrementados a partir da vivência em batalhas. Cada nível acrescenta alguns pontos nos atributos mais tradicionais, como pontos de vida, de ataque e tudo mais que já estamos acostumados. Há também o nível de nossas armas principais, estes que precisam ser melhorados manualmente trocando por fragmentos de coisas etéreas, como coragem. Dá para aumentar o máximo que cada arma pode ser evoluída com outro tipo de consumível mais raro. Podemos equipar selos que dão um incremento específico em aspectos como força, barra de vida, resistência a elementos e coisas assim. Além de tudo isso, há árvores de habilidade gigantescas para cada personagem, subdivididas entre ataque, defesa e equipamento. Para desbloquear cada nó desta árvore ramificada, há pontos de maestria que também podem ser conquistados com o cumprimento de certos objetivos secundários e missões. Em miúdos, há uma tonelada de coisas para se elevar as bases de cada personagem.
Falando neles, espere por muitos companheiros prontos para acompanhá-lo em suas andanças. Logo de cara começamos na companhia dos personagens essenciais da sua tripulação, aqueles que tem papéis arquetípicos para desempenhar ao longo da história e que aparecem nas cutscenes independentemente de estarem escalados pro time ou não. Mas outros podem ser incorporados ao grupo conforme conquistamos cartas de resgate de personagens, e escolhemos, diante uma lista de opções, aquele que melhor preenche as lacunas do coletivo. Se, por exemplo, a sua Katalina parece não estar cumprindo seu papel, há outros espadachins hábeis para substituí-la. Se Io parece estar aquém para a vaga de ataques a distância e suporte, escolha outra pessoa que pode fazer esse papel. Compor os seus três acompanhantes é uma das tarefas mais gratificantes dessa preparação.
Melhor ainda que há uma preocupação efetiva em dar a cada membro da tripulação um background que não só lhe dá profundidade como também incrementa a construção do tal Mundo dos Céus onde a aventura se passa. Há histórias paralelas que podem ser lidas, como em um visual novel, que nos permitem conhecer melhor cada um deles. E, de quebra, somos premiados ao assistir essas historietas com alguns pontos a mais de bônus nos atributos deles. Tudo, de alguma forma, soma para nos deixar preparados para os encontros complicados e desafios titânicos que nos esperam nas ilhas que iremos visitar, muitas delas representando biomas tradicionais que guardam suas particularidades geográficos e, claro de inimigos sedentos.
Para alimentar todas estas fontes de progressão, as missões de história estão longe de serem suficientes. As tarefas secundárias dão pro gasto, mas na grande maioria das vezes, nós as cumprimos automaticamente sem esforço. A dinâmica é pegar todas as demandas que estiverem disponíveis pela cidade, partir para a próxima fase, e quando voltar provavelmente todas elas estarão cumpridas, porque normalmente elas se ambientam no que vem pela frente. Por exemplo, quando alguém pede para trazermos cinco presas de cobra do deserto, convenientemente o próximo desafio se ambienta neste espaço. Simples, eficiente, e ainda evita o cansaço do formato das missões secundárias de leva-e-traz. Entretanto, o que vai engordar mesmo a campanha são as missões extras e avulsas centralizadas na personagem que mais parece uma guia de viagem.
Funciona como qualquer outro parêntese na trama: tem um chefão incomodando em algum ponto do mapa, ou uma horda atacando um comerciante, ou uma base a ser defendida, e é necessário partimos como verdadeiros mercenários. Em essência, são objetivos em arena, como eliminar um certo número de inimigos, um adversário poderoso, ou sobreviver a ondas por um tempo estabelecido que, no final, nos dará um ranking de desempenho e bonificações complementares que, ao final, nos levam de volta ao lobby. São quase como missões paralelas mesmo, por vezes enfrentando de novo um mesmo chefe já superado, só que sem estarem contextualizadas no mapa, com a vantagem de poderem ser repetidas ou ignoradas de acordo com os desejos do jogador. Na prática, são ferramentas escancaradas para se farmar dinheiro, itens, pontos de maestria e XP. Pra melhorar, são passíveis de serem jogadas em formato multiplayer on-line, então representam uma fonte generosa de diversão para quem gosta de se aventurar com amigos.
O que pode cair na armadilha da repetitividade só sobrevive graças a um modelo de gameplay altamente viciante. Com uma fluidez de movimento digna dos melhores sistemas de hack ‘n slash, os combos são bastantes simples, compondo ataque comum e ataque forte com uma variedade grande de combinações. Há o botão de pulo para poucos pontos de plataforma e para os muitos embates contra inimigos; um sistema de esquiva em três níveis bem eficiente que premia a precisão; uma defesa protocolar e um botão so para encaixar golpes combinados quando há uma combinação certa. Segurar o R1 abre ainda uma roda de até quatro movimentos especiais, cada qual com seu cooldown, que vão sendo destravados naquela árvore de habilidades da qual falei anteriormente. E quando uma barra se enche, há um grande especial espalhafatoso que vale a pena ser guardado para os momentos de aperto.
A velocidade de movimentos combinada com a quantidade de ação se desenvolvendo em um pequeno pedaço de cenário eleva a adrenalina, e em alguns casos é até difícil de se entender o que está acontecendo na tela. O movimento da câmera é, surpreendentemente, muito confortável, e só pode ficar um pouco perdido caso travemos o alvo de forma descuidada. Efeitos visuais e diversidade de movimentos de ataque e defesa são alguns dos maiores trunfos de Granblue Fantasy: Relink, que sabe muito bem tratar seus personagens com o cuidado que cada um merece. Imagine tantos heróis e heroínas diferentes, cada qual com sua arma característica, história, habilidades e movimentos únicos e tente calcular o quão diversas são as possibilidades de composição do seu grupo ideal.
Talvez esta diversidade não possa ser encontrada do lado de lá, porém. São poucas as vezes onde encontramos hordas diversificadas realmente organizadas e inimigos mais espertos. Mesmo com a troca de biomas, é nítido que muitos dos adversários são exatamente o mesmo com skins temáticas, e vários deles tem pouco a acrescentar no que se refere a táticas de enfrentamento em grupo, porque a grande maioria é composta por um bando de doidos correndo na sua direção e atacando como se não houvesse amanhã. Um ou outro tem lá seus escudos ou ficam na retaguarda com ataques a distância, quem sabe conseguem fazer até um recuo estratégico, mas via de regra, são adversários bem tapados cuja dificuldade está na capacidade de absorver dano. Dependendo do nível do inimigo e do seu grupo, certas batalhas são mais uma prova de resistência do que uma dinâmica de enfrentamento. Felizmente, como dito, espancar uma esponja de dano nesse jogo é divertido demais pelas mecânicas intrínsecas.
Ajuda o fato de que, com pouca enrolação, mais da metade do tempo será dedicado para o quebra-pau contra grandes – as vezes colossais – chefes, e não bolsões e mais bolsões de soldados rasos. Granblue Fantasy: Relink vai direto ao ponto e usa dos seus minions como aquilo que deveriam ser: meros peões que mais servem para nos prepararmos para o que realmente importa. Portanto, entrar numa fase e eliminar dois ou três grupos grandes funciona como um aquecimento para fazer o que deve ser feito, sempre seguindo em frente, cabendo a exploração de um cantinho ou outro somente para busca de baús com dinheirinho e consumíveis extras. De resto, é chefão imponente, apresentação dramática, e conflitos com doses deliciosamente exageradas de intensidade. Cada besta que cai, por mais bobo que seja vencê-lo golpeando só o seu dedo mindinho, é digno da grandiosidade épica de uma aventura juvenil menos preocupada com verossimilhança do que com o quanto aquilo foi legal.
Ajuda o fato de que o design de personagens, principalmente dos mais importantes, é impecável. Do primeiro ao último chefão, todos mostram muitos detalhes bem cuidados, texturas de alta qualidade e movimentação que por vezes vale a pena parar um pouco só pra notar como aquilo se mostra bem feito. Os protagonistas não ficam atrás, com armaduras e vestimentas bem finalizadas e movimentos plásticos como a estética anime tridimensional tem feito nos últimos anos. A expressividade dos rostos em diálogo ainda parece um pouco menos impactante, mas o bom texto compensa e torna as relativamente longas sessões de diálogo agradáveis. Para quem não gosta, porém, de movimentos superlativos e dos exageros estilísticos do gênero, não há muito aqui que possa mudar ideias. Das falas arquetípicas a sotaques canastrões, tudo o que o formato guarda está em Granblue Fantasy: Relink.
Impossível ainda não falar das ótimas canções da produção, que variam entre a agitação do tema de batalha com o que há de mais singelo em cenas emocionantes e introspectivas. Menos destaque, no quesito sonoro, está na ambientação de cenários, incluindo os que demandam mais vida para o espaço cênico. Se os ruídos de batalha são tão empolgantes quanto a geração de partículas e os efeitos elementais, o mesmo vale do outro lado do espectro, para cenários não tão inspirados e pouco detalhados em termos de áudio e de imagem. Mapas menos amplos e corredores mais focados minimizam uma cenografia pouco inspirada, mas nos poucos espaços mais abertos, como nas passagens de deserto, há uma sensação de grandes vazios com áreas de interesse, o que pode até ser coerente dada o aridez de lugares assim, mas que não deixa de passar uma sensação de vazio que não parece ser bem parte da narrativa não-verbal de obras do tipo.
No conjunto da obra, é inegável que o saldo é extremamente positivo. Granblue Fantasy: Relink é deliciosamente leve e conta uma história que homenageia os maiores expoentes do RPG oriental abusando dos absurdos em prol da sensação de grandiosidade. Os elementos de uma boa jornada heroica estão lá, principalmente para quem aprecia um bom anime que nos permite acompanhar o guerreiro falho contra a magnitude invencível que, no final, com os fundamentos da amizade e da persistência, encontra um meio para a vitória improvável. Sem tentar engrossar a campanha por meio de áreas abertas desnecessárias, o jogo lança mão de artifícios como missões secundárias simplórias e tarefas de arena para garimpar pontos de experiência, mas jamais camufla suas intenções no uso destas ferramentas.
Com um desenvolvimento narrativo e de poder bastante sofisticados que valorizam seus personagens, e mecânicas simples de se aprender e gostosas de se dominar, o jogo é uma recomendação fácil não só para quem gosta de um bom e velho RPG linear das antigas ou de animes pautados por uma fantasia medieval anacrônica, mas para qualquer jogador que desejar adentrar um mundo fantástico, se aprofundar na construção de um universo cheio de encantos e, no fim do dia, se deliciar derrubando criaturas maiores do que montanhas com habilidades inimagináveis. Se tem lá suas limitações na composição de cenários e tenha suas quebras de ritmo, nada disso diminui o quão divertido é o jogo. Granblue Fantasy: Relink é tudo o que eu esperava dele, o que já não era pouco, e felizmente também é muito mais.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Cygames.
Veredito
Granblue Fantasy: Relink é excelente em tudo aquilo que propõe e certamente tem os melhores ingredientes para agradar públicos distintos, inclusive os mais céticos. Fluido, belo, objetivo e emocionante na medida certa, o game é presença certa na minha lista de favoritos do gênero.
Granblue Fantasy: Relink is excellent in everything it proposes and certainly has the best ingredients to please different audiences, including the most skeptical ones. Beautiful, objective and exciting in the right way, the game is a sure presence on my list of favorites of the genre.
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