Pessoas comuns contra deuses, o mortal contra o eterno, o humano contra o divino. Desde sempre, somos fascinados pelo embate épico, pela vitória improvável, pela possibilidade de que mesmo contra todas as chances, o espírito humano possa superar o insuperável. Das histórias mais clássicas da literatura mundial às mais recentes e marcantes, estamos sempre nos colocando na condição da petulância contra seres superiores. Se foi assim na Odisseia de Homero, continua sendo assim em God of War. E assim é também em produções e histórias de menor escopo, como em Gods Will Fall.
Aqui, somos apresentados a um mundo de opressão e subserviência, onde dez divindades submetem os seres humanos aos seus caprichos há gerações. Um grupo de oito bravos guerreiros se levanta contra tudo isso e decide colocar um fim a seu sofrimento, seja qual forma for. Juntos, eles viajam até à terra onde vivem esses deuses, dispostos a dar a vida contra eles. E é nesse momento que começa a aventura do jogador. Assumindo a pele de cada um desses personagens – a cada nova investida, um novo grupo é formado a partir de características como força, velocidade, arma principal e outras – a missão é invadir a área de cada um desses grandes inimigos, enfrentar seus asseclas e, enfim, derrotar cada chefão. Uma estrutura bastante convencional em se tratando de um game, ainda que esteja organizada de uma forma não linear.
Explico melhor: todas as dungeons do game estão localizadas em uma região de livre acesso pelos jogadores, sendo possível transitar por entre elas de acordo com as preferências pessoais, mais ou menos como o sistema de Megaman X, por exemplo. O nível de dificuldade entre elas também não é tão diferente assim, e começar por qualquer uma não traz um prejuízo ou uma vantagem a priori. Claro que, jogando, você terá a percepção de desafios mais adequados ou mais confortáveis para o seu estilo, mas isso é muito particular. A vitória garante o retorno saudável do guerreiro vencedor a seu grupo, e alguns benefícios. A derrota, porém, pode significar sua prisão pela eternidade e até consequências para quem ficou para trás.
Isso porque cada fase do jogo é basicamente um mundo totalmente novo, com temas e estrutura bem próprias, de acordo com as principais características da própria divindade a ser desafiada. Somente um guerreiro de cada vez é permitido entrar nessa jornada e deverá enfrentar os desafios ali dispostos antes de ter o direito de encarar o grande inimigo. Como a derrota significa a perda (pelo menos momentânea, já que ele pode ser resgatado no caso de vitória posterior de um dos seus companheiros) do guerreiro, o jogador tem até 8 chances de vencer o chefe. A derrota de cada componente do grupo significa o impiedoso game over, sem save, sem checkpoint. Comece de novo.
Cada nova investida significa o reinício da dungeon, e consequentemente o respawn de todos os inimigos. Não há moleza. Ainda que você possa ter compreendido os caminhos possíveis e até evitar mais confrontos para chegar ao fim, isso também não é tão recomendado assim já que há uma funcionalidade muito esperta para garantir um interesse extra pela exploração de cada cantinho: inimigos vencidos garantem uma barra de vida menor no chefe final. É como se a barra de vida, que normalmente já é mostrada na tela desde sempre, não fosse do grande adversário, mas da dungeon em si. Em outras palavras, enfrentar inimigos comuns é perigoso, já que basta uma sequência ruim para todo o progresso ir para o ralo, mas também é recompensador no caso de um trabalho bem feito.
Falando em desafio, Gods Will Fall é tão simples quanto difícil. A barra de HP é, como todas as demais características, variável. E aqui, nada de tão surpreendente para quem conhece o balanceamento padrão de games do gênero. Personagens mais pesados, normalmente os que carregam machados e armas de duas mãos, tendem a ter uma vida maior, bem como serem mais lentos nos ataques. Personagens mais ágeis são mais frágeis, mas tendem a ser mais efetivos na esquiva. Mas independentemente desses aspectos, mesmo inimigos comuns podem ser bem cruéis. O alento aqui é que para recarregar a vida (ou ao menos parte dela) basta executar uma boa sequência de ataques sem tomar dano ou ainda aparagens bem-feitas, ainda que esta mecânica em si pareça um pouco desregulada. É como se o orgulho de um bom combate desse forças para esses bravos guerreiros.
O que é mais frustrante no jogo não é exatamente a dificuldade em si dos combates, mas alguns probleminhas de level design. Mortes por quedas irritam, e mesmo que se considere que saber se posicionar para não ficar na beirada é parte da proposta, cair de um barranco às vésperas do combate final porque o seu personagem andou demais em uma sequência de golpes não é o melhor dos sentimentos. A falta de um sistema de checkpoint pode ser um problema para alguns, mas mesmo querendo muito que isso existisse, é de se compreender que aí sim faz parte do pacote. A simplicidade do sistema de combate, ainda que efetiva, também pode parecer um tanto quanto repetitiva em algum momento, com seguidas jornadas reiniciadas.
Com tudo isso em mente, não espere pelo sucesso nas primeiras runs no game. Aproveite-as para aprender e dominar as principais mecânicas e timing de golpes rápidos e fortes com cada “classe”, as características dos inimigos de cada dungeon – que muitas vezes são os mesmos com skins diferentes, ou mudanças mais sutis – e entender com qual equipamento você se dá melhor. Eu mesmo me apeguei mais a personagens leves com espada, mas mesmo assim entendi que em certos cenários, o melhor é ir com brutamontes logo de cara. Com o tempo, os deuses começam a se tornar acessíveis, e invariavelmente eles começarão a cair, dando sentido ao título. A insistência e a resiliência são aqui características muito bem-vindas ao jogador, porém os mais imediatistas poderão se frustrar logo de cara.
A boa notícia, considerando esse elemento de repetição, é que o jogo é bastante bonito e variado, compreendendo o escopo de investimento da produção. São cenários inspirados, ambientes muito bem tratados em questão de tema e coerência estética. Normalmente internos, são bem inteligentes em economizar na grandiosidade e investir no detalhamento do espaço. Há também belas paisagens externas em alguns deles, o tratamento de cores é muito competente, a iluminação é um tanto quanto dura, mas funcional, e as texturas de cada canto não chegam a ser deslumbrantes e algumas acabam parecendo de baixa definição e de detalhamento inferior, mas no geral garantem uma qualidade artística admirável.
Os personagens em si talvez sejam um pontos menos notáveis da produção. Visualmente eles não são marcantes, e parecem muito mais versões genéricas dos vikings da franquia “Como Treinar o Seu Dragão”. Os inimigos comuns tem conceitos melhores do que a execução, e o maior destaque positivo fica para as divindades em si, totalmente diferentes um do outro e igualmente inspirados, deixando evidente o fato de que são eles as verdadeiras estrelas do game. Gods Will Fall um jogo que sabe onde e como investir seus recursos técnicos e estéticos e o faz bem, mesmo que sintamos que falta um passo adiante para a excelência.
O ponto de vista isométrico (tal como em Diablo, por exemplo) funciona e consegue oferecer uma boa dimensão do ambiente e dos combates. Por vezes, acabamos escondidos atrás de algum morro ou arbusto, o que prejudica um pouco principalmente se estivermos enfrentando alguém, mas com a maioria dos cenários se mostrando planos e sem grandes construções, momentos assim são exceção. Inimigos escondidos em pontos cegos também são raros, mas isso é muito mais um elemento a mais no cuidado da exploração do que um problema em si.
Por outro lado, as animações são um tanto quanto travadas e a movimentação lembra alguns padrões de gerações anteriores. Nesse aspecto, por vezes parece um jogo de PS2 remasterizado, com movimentação truncada e robótica. Funciona para o combate cadenciado, mas consegue ter alguns entraves no hitbox e na colisão. A interface limpa e sem informações desnecessárias acaba se mostrando um acerto. Um mapa, claro, ajudaria a perceber se há cantos inexplorados, mas faz sentido não ter esse elemento facilitador lá. Por outro lado, os poderes especiais coletados são pouco explicativos sobre sua serventia, e como são raríssimos, testá-los significa um inevitável desperdício. Por vezes, mesmo testando, é difícil de entender sua função para jornadas posteriores.
O aspecto sonoro, por sua vez, é um dos grande acertos da produção. Cada cenários traz consigo uma bela ambientação (ondas, insetos, eco de cavernas) e as composições musicais são econômicas, mas certeiras, com algumas batidas tribais e melodias de época. Os efeitos de combate garantem peso e gravidade e cada movimento, e as poucas falas do narrador em idioma próprio são guturais o suficiente para lhe garantir a gravidade devida. Uma pena não haver localização para o português brasileiro em textos e legendas, algo que ajudaria na imersão, ainda que não faça tanta diferença assim para o progresso em si.
Como conjunto da obra, Gods Will Fall me surpreendeu, já que eu esperava, a partir da divulgação, um jogo mais alinhado com elementos e dinâmica de produtos como o já citado Diablo. Contudo, apesar do ponto de vista e da própria temática que bebe de várias inspirações medievais, reconheci ali um jogo muito mais alinhado com um combate articulado, mais pensado e planejado, diferente de qualquer esmagamento de botões. O avanço lento e o recomeço constante poderiam frustrar caso o jogo não oferecesse uma bela satisfação em cada vitória, em cada deus caído. E, nesse caso, é um jogo que vale a pena ser recomendado.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Deep Silver.
Veredito
Gods Will Fall traz uma experiência bastante intensa ao propor sistemas rígidos de progressão e combate. O título valoriza o planejamento, os movimentos cadenciados e o aprendizado, mesmo que não ofereça mecânicas especialmente complexas de se dominar. Com algumas limitações estéticas e uma narrativa não tão original assim, consegue engajar o jogador pela aventura desafiadora e pelo desejo em ver cada divindade, enfim, no chão.
Gods Will Fall brings a very intense experience when proposing rigid systems of progression and combat. The title values planning, paced movements and learning, even if it does not offer particularly complex mechanics to master. With some aesthetic limitations and a not-so-original narrative, it manages to engage the player for the challenging adventure and the desire to see each deity, finally, defeated.
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