Uma boa ideia não precisa, necessariamente, ser a coisa mais original e inventiva de todos os tempos. Não precisa ser revolucionária ou quebrar com todos os paradigmas existentes até então. Na verdade, uma boa ideia pode ser simplesmente pegar algo que foi pensado décadas atrás e fazer funcionar bem, e talvez melhor do que a versão inicial. Você pode, por exemplo, pegar tudo o que Sonic fez na geração Mega Drive, misturar com algumas outras referências como Megaman e até Kung-Fu Panda, e criar algo extremamente viciante, incrivelmente sofisticado, e principalmente muito divertido. Você pode criar Freedom Planet 2.
O primeiro jogo da franquia, lançado há cerca de 10 anos atrás e que nasceu de um projeto de fan game inspirado, claro, no próprio Sonic, trazia algumas ótimas implementações de mecânicas que já eram bem complexas para aquele momento, mas acabou ficando escondido no falecido WiiU e nas periferias dos PCs. Esta continuação direta saiu em 2022 também para os computadores, mas talvez por pouco investimento no marketing, acabou fazendo menos barulho do que merecia. Agora, chegando pela primeira vez nos consoles Playstation, certamente é o momento para uma segunda chance para conquistar uma geração que mesmo com algumas boas surpresas pelos lados da SEGA, ainda parece carente de uma experiência que renove a empolgação e o encantamento dos anos 1990, mas que ao mesmo tempo se compreenda como uma produção dos dias de hoje.
Freedom Planet 2 é, antes de mais nada, um jogo de plataforma 2D pautado na velocidade e na ação quase ininterrupta, com grande destaque para o combate e até mesmo para a exploração, sem esquecer de um elemento narrativo, ainda que clichê, muito interessante que dá vida e personalidade aos personagens que encontraremos pelo caminho. Alguns anos depois dos eventos narrados no primeiro game, quando o Lord Brevon fora derrotado com o sacrifício da Pedra do Reino (um artefato de grande poder que se revelava a fonte de energia do planeta Avalice), uma nova ameaça emerge das profundezas para mais uma vez colocar o mundo em perigo em um arco de vingança e violência. Cabe a quatro heroínas – Lilac the Dragon, Carol the Wildcat, Milla the Hound (que voltam do primeiro jogo) e Neera the Frost Knight (uma nova personagem jogável) – juntar forças e libertar seu povo.
Se a história é um lugar comum, a boa notícia é que mesmo com algumas citações importantes, não é necessário que o jogador tenha vivenciado o game original. Claro que se isso for possível, vale a pena porque é uma obra bastante subestimada, mas conhecê-la é muito mais uma sugestão do que um pré-requisito. Nossas protagonistas são apresentadas de forma dinâmica, sem muitos rodeios, em boas linhas de diálogo muito bem faladas no idioma gringo. Seria ótimo ter uma versão em áudio com o nosso português, ou ao menos legendas, mas mesmo assim, é uma trama típica de desenho animado infantil, com traços marcantes de anime no tom e no exagero da expressividade, e vale a pena acompanhar com atenção.
Com as bases estabelecidas, a dinâmica do jogo enfim pode ser bem apresentada, primeiro em um rápido (e pouco exigente) tutorial, e depois em longas fases cheias de acessos e caminhos possíveis. Para quem gosta de explorar cada cantinho em busca de coletáveis, segredos e outras coisas escondidas, um verdadeiro deleite, em um dos melhores e mais interessantes level designs que vejo em muito tempo para o gênero, e arrisco dizer que faz frente até mesmo a qualquer jogo clássico do famoso ouriço azul. Imagine os mundos de Sonic segumentados em três níveis, só que unificados em uma grande fase, com sua introdução, desenvolvimento e conclusão em um chefe final juntos em uma única continuidade, e entenderá o formato dos níveis de Freedom Planet 2.
Se por um lado, as sequências únicas são ótimas para manter a imersão, por outro elas podem ser um pouco cansativas para quem estiver esperando por algo mais direto e objetivo. Você ainda pode atravessá-las rapidamente, pensando o caminho mais curto ou seguindo pelos incentivos espalhados pelo cenário, mas provavelmente isso lhe fará perder alguns dos principais atrativos de cada ambiente. Eu mesmo, como bem pode ser visto no vídeo que abre esta análise, demoro de 20 até 30 minutos em cada fase, o que significa que este é um jogo para muito além daqueles cinco minutinhos sobrando no intervalo do trabalho ou no horário de almoço. Há uma demanda por dedicação e compromisso que nem sempre se espera de jogos de plataforma com uma temática mais jovem como esse.
Isso se dá não só pelo tempo, mas também pela curva crescente e muito convidativa de desafio. Mesmo com uma profusão de coisas acontecendo em todas as camadas vistas em tela, isso aqui é bem diferente de um passeio no parque, guardando uma série de dificuldades para chegar bem até o ponto de enfrentar o chefão, que muitas vezes adiciona um crescimento acentuado e brusco na complexidade da vitória. Inimigos comuns trazem padrões bem estabelecidos de movimentos e ataques que muitas vezes é difícil se defender deles; porém, a barra de vida de cada boss pode parecer discrepante demais para o que nos foi exigido até então. Repetição, procedimento e resiliência são a regra, bem como um robozinho azul nos ensinou bem.
Saber lidar com movimentos de ataque, esquivas e o timing da defesa é a receita ideal para se dar bem, e dominar cada uma das personagens é uma tarefa tão trabalhosa quanto satisfatória, porque compreender bem dificuldades e potência nos movimentos disponíveis ajuda a explorar cada fase de formas completamente novas. Se Lilac é mais equilibrada, Carol é agressiva, mas bem munida para ataques a distância, enquanto Milla tem mais méritos na cadência e Neera é a mais habilidosa. Quatro arquétipos básicos para todo mundo que já jogou alguma coisa na vida, e muito bem balanceados aqui.
A variedade de movimentos possíveis torna o combate um espetáculo de diversidade, quase uma coreografia que genuinamente nos coloca em meio a um espetáculo de beleza e precisão das artes marciais. Seja rodando em duas rodas, em saltos absurdos ou em solo, o domínio dos principais movimentos não é só um aspecto necessário para prosseguir na jornada, mas uma maneira muito estilosa de lidar com os perigos diversos. É divertido aprender a conectar saltos a combos corpo-a-corpo; é bom fazer com que isso elimine inimigos em sequência; e é extraordinário fazer tudo isso e cair ileso no chão. Considerando uma perspectiva bastante tradicional onde eu já imaginava ter visto tudo o que era possível fazer, este jogo é um verdadeiro achado.
Freedom Planet 2, para quem passar os olhos em trailers e imagens como as que ilustram este review, provavelmente vai remeter, mais uma vez, à franquia clássica do Sonic. O traço das personagens parece ser tirado diretamente dos jogos da era 16 bits, e isso não é por acaso. Artifícios de deslocamento, como molas em paredes, pontes, túneis em looping, paredes escondidas, plataformas móveis, passagens subaquáticas, tudo é muito similar ao que de melhor foi feito pela SEGA – e sou suspeito porque sou fã convicto do mascote desde a era Master System – com um tempero especial dedicado à agilidade quase insana que nos tira o fôlego. O game é rápido, dinâmico e vertiginoso. O maior diferencial está no sistema de combate, mais diverso e um tanto mais complicado, pelo lado bom, lembrando até dos bons momentos de Zero na linha Megaman X.
A própria construção estética do jogo traz tudo o que eu mais aprecio na composição de cenários e personagens neste estilo pixel art. Se o mercado independente já cansou de se apropriar, por vezes até de forma desleixada, de toda a nostalgia intrínseca aos formato, aqui vejo algo de extremo bom gosto, equilibrado e fiel, mas ao mesmo tempo cheio de atualizações que não soam forçadas. Os cenários ao fundo são belíssimos e entregam uma atmosfera rica e cheia de significados e contextos. O plano principal transborda da tela em suas cores vivas e formas descompromissadas, com poucos momentos de vazio, passeando por estruturas mais sóbrias, como florestas e cidades, e outras quase psicodélicas para criar um sentimento de grandiosidade e emergência. O planeta está em perigo, tudo parece desmoronar, mas em momento algum o tom pesa demais.
Se a composição gráfica se apropria de uma visão mais retrô, ela se vale da fluidez de animação e da limpeza das ilustrações para favorecer o quesito da individualidade tanto das personagens principais quanto das dezenas de NPCs que podem ser encontrados em museus, templos e outros espaços de convivência. Canções e efeitos sonoros funcionam muito bem na mixagem das fases, com algumas escorregadas aqui e ali na equalização com as vozes, mas sem maiores prejuízos. Tudo é funcional, lúdico e criado para estabelecer uma temática aventureira, juvenil e com frescor.
Se a simplicidade da ação direta é uma herança resgatada de outrora, todo o trabalho de suporte é um pouco mais coerente com o momento atual, valorizando a preparação, como itens equipáveis e outros ajustes, e a experiência com uma série de adições que transformam diretamente aquilo que se pode fazer. São três níveis de dificuldade por padrão, mas há facilitadores disponíveis para complementar esta customização, como defesa automática, barateamento de continues e coisas do tipo. Na configuração original, estão todos estes atalhos desligados, mas quem preferir acionar um ou vários, pode fazê-lo antes mesmo de iniciar um save. Aliás, são vários slots para que se possa começar diferentes campanhas, escolhendo em cada uma delas as opções que melhor convir.
Infelizmente, porém, jogar com personagens distintas na mesma campanha não é uma das escolhas disponíveis, o que é uma pena, porque eu sempre tive a sensação de que poderia me dar melhor em certas fases com outra heroína de características mais adaptáveis ao meu tipo de jogo. Portanto, para conhecer todas, é necessário jogar novamente fase por fase, o que evidentemente aumenta a vida útil do game, mas de uma forma menos agradável que a opção, por exemplo, de enfrentar novamente inimigos já superados, além de outras ações de perícia, como corrida, coisas que se tornam possíveis em dada altura da run.
Completam o pacote de qualidade de vida opções como galeria de artes para fotografias captadas pelo próprio jogador, badges próprias – algumas são troféus reais da PSN, mas nem todas, porque, aliás, o jogo é bem trabalhoso para os caçadores de platina – e outros mimos que podem ser desbloqueados utilizando coletáveis in-game ou fora dele. Freedom Planet 2 tem consciência de suas qualidades e, em si, sabe como valorizá-las e torná-las ainda mais evidentes não por ostentação, mas sim para premiar seu público e as conquistas que eles alcançaram. Parece algo óbvio, mas nem sempre é algo que é traduzido na prática por outros games similares.
Freedom Planet 2, com tudo isso, consegue ir muito além de uma simples derivação, uma homenagem ao que lhe inspirou. Somando algumas das melhores características de jogos que ajudaram a escrever a nossa história, ele encontra, enfim, sua própria identidade, sem renegar as raízes. Por tudo isso, permito-me a heresia de dizer que ao se libertar da sombra de ouriço azul, o jogo se torna algo maior e melhor. Eu diria que este é o melhor jogo do Sonic (ainda que sem ele) desde o terceiro jogo daquela trilogia, mas isso seria menos do que ele merece. Freedom Planet 2 é maior, mais equilibrado, e mitologicamente melhor construído do que qualquer game produzido pela SEGA, o que não é pouco. Pena não ter o mesmo espaço na mídia para celebrar o quão bom ele é. E ele é, definitivamente, o mais puro espetáculo.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela XSEED Games.
Veredito
Freedom Planet 2 tem suas inspirações escancaradas em uma das maiores franquias da história dos videogames, mas refina mecânicas, design e narrativa que já tinham sido apresentados no jogo anterior. A sequência consegue melhorar aquilo que era ótimo e se torna um dos melhores expoentes do gênero.
Freedom Planet 2 takes its inspiration from one of the biggest franchises in the history of video games, but refines mechanics, design and narrative that had already been presented in the previous game. The sequel manages to improve what was great and becomes one of the best exponents of the genre.
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