Lá se vão quase 30 anos desde que eu coloquei as mãos no grande Streets of Rage no meu velho Master System 3. Desde então, desenvolvi uma simpatia gigantesca por jogos que me colocavam no canto da tela e me faziam descer a porrada em um monte de clones até não sobrar mais nenhum deles na tela, a se destacar principalmente a trilogia Final Fight lá no SNES. Vieram tantos outros nos consoles e nos velhos arcades no boteco da esquina, tornaram-se poucos quando o mundo virtual se tornou tridimensional, e o gênero quase minguou até encontrar no modelo independente uma sobrevida que se mantém até os dias atuais. Jogar Fight’N Rage (cujo nome é uma clara junção dos dois títulos citados nesse parágrafo) é, definitivamente, um exercício da mais pura nostalgia dos anos 1990.
Desenvolvido por um estúdio aqui do lado, sediado no Uruguai, o game lançado originalmente nos PCs em 2017 e recentemente portado para os consoles pela BlitWorks é uma verdadeira ode não só aos beat ‘em ups bidimensionais de progressão lateral pixelizados de outrora, mas também a toda uma geração da cultura pop. Sebastián García, a mente maior por trás do projeto que segue o estilo de one-man game, deixa claro a cada segundo que é nerd raiz, enchendo o jogo de easter eggs dos mais óbvios até os mais dedicados a fãs hardcore. Sem perceber, acabei me transformando em um caçador de relíquias quase que como se aceitasse o desafio de identificar o máximo de referências que surgissem na tela. A boa notícia é que homenagem sem conteúdo se torna só um amontoado de clichês, e Fight’N Rage vai muito além disso.
Exemplo deste passo adiante é a narrativa principal que pode parecer só mais um caso de sequestro de uma bonitona pelos vilões e a união de três amigos para resgatá-la – e já sabemos quantos jogos do tipo começam exatamente assim – mas quando se poderia imaginar que um arremedo de história seria insignificante, ela vai ganhando contornos interessantes que envolvem uma batalha de humanos contra mutantes antropomórficos pela soberania do mundo e questões existenciais que problematizam até percepções do maniqueísmo simplório do “nós contra eles” e do “bem contra o mal”. E se isso pouco importa quando a porrada come solta, acaba se tornando uma ótima ferramenta de longevidade e vida útil, já que são muitas as possibilidades de finais alternativos – acima das 40 – dependendo de quem é o protagonista, do desempenho e de algumas escolhas feitas pelo caminho.
São três os personagens centrais disponíveis: Gal, uma poderosa artista marcial; F. Norris, um ninja rápido e cheio de truques; e Ricardo, um mutante desertor que luta ao lado dos humanos e que faz o papel do brutamontes do time, cada qual com sua lista de movimentos próprios e que podem ser utilizados tanto em campanhas solo como em partidas multiplayer cooperativas para até três jogadores. Todos tem seu background que, se não chega a ser complexo ou extenso demais, lhes dá mais camadas do que o arquétipo deixa transparecer. São esses meandros que possibilitam que o final de cada run – fiz alguns só pelo prazer de tentar coisas diferentes – traga coisas novas e que principalmente seja algo para além de uma caminhada até o por do sol.
Não se engane, porém. Em essência, mesmo que traga uma dose inesperada de profundidade, o jogo é um beat ‘em up por essência e por excelência. A jornada começa e nos coloca frente a frente com inimigos abundantes, cada um mais difícil que os anteriores, mas ainda assim com movimentos limitados e previsíveis. Há o rato punk com uma faca; há o porco motoqueiro que utiliza de seu peso para ataques pesados; há o cão marombeiro que aguenta mais pancadas, e há o gato arisco, elétrico e mais ágil. E há ainda aquela raposa sensual com o chicote; os chefes de fase que depois aparecem às dúzias para escalar a dificuldade e o grande inimigo mafioso que não hesita em usar de um belo ataque apelativo para nos vencer quando falta um fiozinho de vida para morrer. Sim, você já viu todos esses adversários antes, tenho certeza.
Para enfrentá-los, o modelo de jogo também é bastante reconhecível, com um ataque principal capaz de belos combos; um salto providencial, um golpe especial e algumas variações mais sofisticadas destes comandos que se mostram úteis e necessários para que consigamos lidar com momentos mais complicados. Por exemplo, aquela voadora providencial precisa ser dominada, assim como a corrida com o dash. Outras peripécias de defesa e contra-ataque são fundamentais no controle de multidões, bem como movimentos especiais matadores que demandam um pouco mais de perícia e uma certa paciência. E, sim, o golpe especial pode ser utilizado vez ou outra quando a barra estiver carregada, mas abusar dele pode consumir nossa saúde. São escolhas e estratégias que fazem abrir um sorriso de orelha a orelha de qualquer amante de Final Fight, Double Dragon e Captain Commando.
Esta alegria dá lugar à tensão com rapidez, porém. Tal como suas óbvias inspirações, Fight’N Rage está bem longe de ser um passeio tranquilo no parque. Depois de um primeiro ato que até nos deixa animados mesmo na dificuldade mais elevada das duas primeiras disponíveis, o que vem a seguir é implacável e exigente. Para vencer no nível normal há que se suar bastante e gastar algumas boas vidas e continues, até que depois de algumas partidas seja possível desbloquear um modo fácil. É um sistema interessante que nos faz aprender, na marra e na prática, o timing de cada comando e adversário para aí depois sim, se o jogador quiser, escolher mais tranquilidade. Se não chega a ser punitivo ao extremo, é um jogo que se faz bem equilibrado entre a facilidade de se aprender movimentos e comandos básicos e a complexidade de se dominar tudo isso.
A campanha base, contudo, não é das mais longas, e depois que se pega o jeito não dura mais que uma hora de ponta a ponta, permitindo que o jogo seja bastante palatável para jogatinas rápidas e tardes de bobeira. Aos poucos, também ficam disponíveis modos como o de treinamento de combos, uma arena para o bom e velho x1 (seja contra a CPU, seja contra outra pessoa) e possibilidades complementares que aumentam muito essa vida útil, que somados à tabela de finais possíveis, faz o investimento valer para os mais dedicados. Completam as possibilidades do jogo uma galeria de músicas espetacular, bem como outros itens a serem desbloqueados com moedas ganhas a cada investida na campanha. Dá pra comprar, por exemplo, novas skins para os protagonistas, e adversários para serem utilizados no modo versus, então não faltará motivos para começar tudo de novo, sobretudo para quem quer escalonar no nível de desafio e sua consequente bonificação.
Destaco a possibilidade de se liberar canções na galeria não só pelo colecionismo tradicional, mas simplesmente porque a trilha musical do jogo é absolutamente espetacular de se ouvir quase que compulsivamente, mérito do compositor Gonzalo Varela que recebe, com muita justiça, créditos destacados logo na abertura do game. A seleção musical de cada fase é nada menos do que magistral e embala a aventura como pouco se viu nas últimas décadas. Aliás, todo o trabalho de arte do jogo é muito bem feito, com modelos caprichados de cada personagem, sejam os mais comuns, sejam os chefes de fase, isso sem falar que cada um dos heróis é um verdadeiro achado em termos de composição pixel art. É um trabalho refinado, que transborda uma soma entre competência e paixão pelo produto e pelo gênero.
Esse capricho está em cada cantinho, em cada referência, em cada passagem muito bem fundamentada e quase nunca sutil. Sabe a fase do elevador? Tem. E o trecho com os inimigos em motocicletas? Tem também. Esgoto? Com certeza. Pedaço de madeira flutuando na água? Está lá. Barril com um frango assado pra recuperar a vida? Nem pergunte. Pedaço de cano pra dar na cara de vagabundo? Pode apostar. Se os cenários ficam devendo um pouquinho quando comparados ao conteúdo de primeiro plano em termos de detalhamento e diversidade, Fight’N Rage transborda um carinho típico de projetos mais pessoais, praticamente artesanais. O resultado é um game coeso, divertido, com um ótimo ritmo e com uma clara atenção aos detalhes, algo que é cada vez mais raro em um sistema de escala industrial de grandes proporções.
As referências carregam consigo, porém, também elementos um tanto quanto datados que podem incomodar. A própria sexualização barata das personagens femininas parece já não caber mais hoje em dia, ainda que se incomodar (ou não) com esse elemento é algo um tanto quanto pessoal. Já em relação ao design de fases, é salutar haver caminhos alternativos – é possível pegar alguns atalhos em várias oportunidades que trazem consequências no final do jogo – mas ainda assim falta um pouco mais de ousadia em, por exemplo, criar traçados menos retilíneos, como eram os dos maiores clássicos dos anos 1990. Falta também uma certa interação com os ambientes, como no caso dos poucos fliperamas em um certo cassino. Vidraças a serem quebradas, elementos contextuais arremessáveis e coisas do tipo seriam bem vindos, já que, afinal das contas, encontrar os mesmos barris nas ruas, na praia e nos esgotos parece um uso bem limitado do recurso.
Quando se considera o ritmo da curta jornada, há alguns pontos de desbalanceamento, como trechos claramente mais punitivos que outros, inclusive os mais avançados, ou mesmo chefões que são explicitamente mais adequados a um tipo de personagem especifico. Por exemplo, é complicado passar ileso na travessia da área alagada já que a queda, acidental ou não, arranca um belo taco de vida, e é muito mais fácil enfrentar os sub-chefes finais com o brutamontes mesmo nas dificuldades mais elevadas. Ainda que seja um jogo bem dosado (e desafiador até na dificuldade média) há alguns deslizes que podem desviar demais a curva de aprendizado para cima ou para baixo. E para não deixar passar, falta uma opção para se jogar on-line, mesmo que seja infinitamente mais agradável, para o formato do game, experienciar com alguém sentado ao lado no sofá.
Claro que todas estas ressalvas são detalhes proporcionalmente pequenos diante das belíssimas qualidades do jogo, e são relativas, já que enquanto uma proposição experimental de retomar algumas das melhores e mais divertidas verdades old-school, Fight’N Rage beira a perfeição em praticamente todos os quesitos. Mais do que uma grande coleção de homenagens, é um game que alcança sua própria identidade ao se apropriar de cada referência de modo a criar coerência e unidade, sem perder sua essência no processo. Para quem esfarelava os dedos em máquinas encardidas no bar da esquina ou em casa tentando limpar verdadeiros exércitos de inimigos, esta é uma das melhores formas de reviver o passado glorioso; para quem nunca foi tão adepto do gênero, está aqui uma chance para rever os próprios conceitos; e para quem não sabe do que estou falando, esta é, sem dúvidas, uma das melhores oportunidades para entrar para esse universo dos beat ‘em ups.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela BlitWorks Games.
Veredito
Fight’N Rage supera a alcunha de um clone moderno de clássicos do beat ‘em up, merecendo estar no topo ao lado daqueles que o inspiraram. É divertido, desafiador no ponto certo, belíssimo e tem umas melhores trilhas sonoras de todos os tempos. Para os fãs da pancadaria virtual, é praticamente obrigatório.
Fight’N Rage surpasses the bias of a modern clone of beat ‘em up classics, deserving to be at the top alongside those that inspired it. It is fun, challenging in the right way, beautiful, and has some of the best soundtracks of all time. For fans of virtual beat ‘em ups, it is practically mandatory.
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