Confesso que tenho alguns receios quando vejo o anúncio de jogos licenciados de franquias conhecidas e consagradas dos cinemas ou de outra mídia, fruto de algumas decepções antigas e outras nem tanto. Também tenho minhas preocupações em relação a jogos primordialmente multiplayer, sobretudo os baseados em um sistema assimétrico, que depende de uma conexão constante com a internet e de uma comunidade presente e ativa para funcionar. Em ambos os casos, há exemplos bem interessantes hoje no mercado, mas há outras coisas que se mostraram grande decepções. Evil Dead: The Game sendo basicamente a soma duas coisas parecia uma proposta arriscada com grandes chances de dar errado. Mas otimismo não faz mal a ninguém nesse caso, e cá estou de peito aberto para esta avaliação.
Em resumo, temos um jogo cuja motivação principal é participar de partidas no já tradicional modelo de 4×1, onde os jogadores se dividem entre sobreviventes e a ameaça principal do mapa. Há um ou outro modo alternativo a esse formato, dos quais falarei mais adiante nesse texto, mas basicamente será necessário, enquanto parte do time dos mocinhos, assumir o papel de um dos personagens mais icônicos da franquia e cumprir algumas tarefas enquanto tenta sobreviver até o fim, enquanto do lado kandariano advindo das profundezas do inferno, a meta é impedir que alguém saia vivo da jornada.
Sendo um pouco mais minucioso, essa dinâmica do inimigo único caçando os humanos não é exatamente precisa, já que diferente de Friday The 13th ou mesmo de Dead By Daylight, o inimigo está muito mais para uma força quase onipresente do que um único indivíduo poderoso, por assim dizer. Enquanto uma entidade, percorremos cenário em primeira pessoa com câmera baixa tal como se tornou icônico da marca, mas nossos ativos são muitos, que vão desde armadilhas espalhadas pelo cenário até um exército de demônios pronto para atacar, em hordas, quem se aproximar. Ainda que tenhamos o poder de possuir criaturas, veículos ou mesmo sobreviventes apavorados para assim entrarmos diretamente no combate, o papel desse lado da história é muito mais parecido com o do mastermind de Resident Evil Resistence, por exemplo.
Muito do que Evil Dead: The Game traz de especial está pautado na franquia que lhe empresta o nome e o legado. Sam Raimi, que recentemente voltou aos holofotes pelo trabalho em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, construiu seu nome no cinema principalmente a partir do sucesso inesperado desta trilogia despretenciosa de terror gore. O estilo do diretor é forte e remete a tempos mais exagerados, com enquadramentos, movimentos de câmera e efeitos de zoom que se tornaram uma espécie de marca registrada do autor, algo que mais tarde seria reconhecível até em obras de gênero diferente, como na primeira trilogia de Homem-Aranha.
Ciente de seus maneirismos, a estética acabou se tornando uma sátira de si mesmo tanto no terceiro filme da trilogia Evil Dead quanto na recente série de TV também idealizada e produzida por Raimi. Dentre tantos produtos genéricos, Evil Dead ganhou notoriedade e uma legião de fãs pela identidade que criou para si, baseada não só no estilo do diretor como também no carisma constrangido e politicamente incorreto de seu protagonista, Ash Williams, vivido por Bruce Campbell nos filmes, na série e também aqui, no jogo. Tudo isso regado, claro, a muita gosma nojenta, efeitos toscos de voz e litros e mais litros de sangue. O grande desafio dessa produção de 2022 seria exatamente o de transpor para essa mídia (não pela primeira vez, é bom ressaltar) toda essa personalidade.
Ash está lá, e de uma forma muito competente. Seja na sua versão clássica no melhor (ou pior) estilo machão de Uma Noite Alucinante 3, como ficou conhecida a franquia no Brasil (no original, Evil Dead: Army of Darkness) até o visual de tiozão do pavê fora do seu tempo de Ash vs. The Evil Dead. O mesmo vale para alguns de seus companheiros mais icônicos que, mesmo não ganhando a mesma fidelidade do herói, estão muito bem representados no jogo, alguns logo de saída, outros desbloqueáveis de acordo com algumas ações do jogador. Há um cuidado muito especial da Saber Interactive em adaptar todo o universo de Evil Dead para o mundo digital, algo louvável e digno de destaque.
É possível ver, em detalhes, a famosa cabana onde tudo começou, bem como reconhecer monstros que certamente habitaram os pesadelos de muita criança que se atrevia a assistir isso em um tempo onde classificação indicativa não era, definitivamente, uma preocupação da TV aberta. Alguns detalhes serão motivo daquele sorriso de canto de rosto de qualquer fã de longa data, e estes vão desde um alçapão tremendo até uma série de mini-Ashes saltando de uma caixa de surpresa. Easter Eggs, definitivamente, não faltam no game, que se coloca como uma grande celebração da obra como um todo.
O principal modo solo de jogo, aliás, é uma verdadeira ode a tudo o que já vimos na franquia, recriando – tomando suas liberdade criativas obviamente para se encaixar no modelo desejado – algumas passagens muito importantes da jornada tortuosa de Ash. Ainda que o sistema de jogabilidade privilegie o combate em espaços abertos, o que diminui a fluidez do jogo dentro de ambientes internos e, consequentemente, nos afasta de batalhas dentro de porões apertados e outros cenários tão conhecidos, jogar o modo Missões é uma forma muito interessante de revisitar aquilo que nos é tão vivo (com o perdão do trocadilho) na memória afetiva.
Entretanto, a fidelidade está vinculada muito mais a elementos gráficos do que a qualquer outra coisa. A maior debilidade de Evil Dead: The Game em relação ao produto original é uma falta de personalidade, algo que me distanciou de um vínculo emocional que eu tanto desejava reestabelecer. Falta a acidez das situações absurdas pelas quais Ash passa em cafeterias, mercadinhos ou castelos medievais, falta aquele clima de galhofa das piadocas de provocação entre os inimigos, inclusive os endemoniados, antes da carnificina rolar solta, falta o absurdo nonsense que conduz todo o elemento de comédia que é também característica intrínseca da marca. Rever a série recentemente só me ajudou a reavivar essa comparação e mesmo reconhecendo ali uma produção barata e despretenciosa, tudo o que sobra lá, incluindo uma frase tosca de efeito a cada 20 segundos, falta aqui em termos de carisma e autenticidade.
O que sobra? Felizmente, muita coisa. Jogando pelos sobreviventes, divididos em quatro classes – Líder, Suporte, Caçador e Guerreiro – há uma série de tarefas a serem cumpridas, algo que se mantém inalterado seja jogando junto a humanos contra a IA, seja jogando contra outra pessoa ou seja se aventurando sozinho ao lado de bots. Basicamente, é necessário encontrar três pedaços de um mapa espalhados pelo generoso mapa cheio de acampamentos, cabanas abandonadas e outras construções típicas; depois achar e defender a adaga kandariana (para quem assiste ou assistiu a série, um objeto importantíssimo na lore da coisa toda) e o famigerado Necronomicon, seguindo um modelo de defesa de base contra hordas e, no final, enfrentar os chamados Dark Ones e impedir que os monstros destruam o tal livro dos mortos.
Na outra ponta, se escolhemos atuar pelas forças das trevas, cabe a nós criar todos os empecilhos para que os sujos humanos jamais sobrevivam. Coletando uma espécie de energia sombria, temos combustível espectral suficiente para montar armadilhas como árvores possuídas, gatilhos com portais de onde saem mais deadites, além de tomar conta pessoalmente de alguma alma sebosa e assim entrar na batalha para massacrar o inimigo. Lamentavelmente, não há como jogar esse modo contra a CPU, então resta enfrentar pessoas de verdade e, cumprindo as melhores expectativas, nunca precisei esperar muito tempo para jogar seja atuando por um lado, seja por outro. Em outras palavras, o medo de não encontrar partidas pela ausência de companheiros aleatórios foi embora rapidamente.
Em resumo, o modo multiplayer se reduz a uma grande aventura dividida em partes que sintetizam praticamente tudo o que de mais significativo já foi mostrado, mas, de novo, sem a mesma simpatia. Não espere ter debates intelectuais com um livro amaldiçoado, muito menos se sentir tenso em descobrir se alguém está ou não possuído. O exército do mal é composto por um monte de adversários comuns, e quando muito, aparecem também em classes, como o padrão, o vomitador, o brutamontes, etc. Algumas criaturas são especiais, normalmente os líderes de cada uma das três categorias, como o Evil Ash deformado ou a grotesca Henrietta, mas ainda assim eles se resumem a bonecos mais resistentes e/ou com habilidades diferenciadas.
Estar dedicado a um único modo primário de jogo – cumprir pré-requisitos, encontrar e defender objetos e enfrentar inimigos maiores no final – não chega a ser um problema sério em termos de repetitividade, ao menos nas primeiras horas de gameplay. Os mapas são bastante amplos, cheios de cantos a se vasculhar, e há sempre formas diferentes de abordagem. Dá pra ir correndo pela floresta buscando cada lata de refrigerante para restaurar a vida enquanto massacra o que estiver se mexendo pelo caminho; dá pra encontrar um carro qualquer abandonado e dirigir até o ponto de interesse; dá ainda para acender fogueiras espalhadas pelo ambiente para reduzir os efeitos da escuridão; ou sair desembestado a esmo e ver o que acontece. É um jogo que, a princípio, se adapta ao estilo do jogador.
Contudo, essa pretensa liberdade tem suas limitações também. Além de lutar (com golpes rápidos ou fortes) e atirar, o jogo ainda conta com uma necessária, porém enroscada esquiva, mas não tem nenhuma ação de pulo mais dinâmica. Até há a possibilidade de se escalar pequenas cercas e janelas com um comando similar a jogos como God of War, mas com terrenos tão acidentados, cheios de pedras e troncos, é comum ficar preso em alguma beirada boba ou ainda enroscado em um pequeno degrau. Em situações intensas, morrer de forma boba por simplesmente não conseguir andar de lado porque tem um desnível mais baixo que uma calçada acaba irritando.
Surpreendente é a riqueza de coisas espalhadas para uma exploração mais cuidadosa. Há várias construções com porões e andares com armas e equipamentos espalhados, há baús com itens importantes (divididos, como é de se esperar, em categorias como comum, raro, épico e lendário) e outros itens importantes. Falando nisso, são duas armas a se equipar, uma para o combate corpo-a-corpo, incluindo a icônica motosserra, bem como fações, marretas e espadas; e outra para o combate a distância, como bestas, pistolas e, claro, espingardas. Pela prática, senti um certo desequilíbrio no uso de ambas, já que armas de fogo tendem a ser mais complicadas de se usar e tem um efeito insuficiente. Primeiro porque a mira é lenta e imprecisa contra alvos ágeis, segundo porque é difícil estar na distância adequada para bons tiros e terceiro porque todas tem um tempo de carregamento lento e desengonçado. Por isso, sempre dei preferência para personagens com bons atributos no uso de armas brancas.
Essas características, aliás, são potencializadas de duas formas: a primeira delas é de efeito geral e permanente, desbloqueável em uma complexa e extensa árvore de habilidades fora do jogo. Ela é extremamente longa e exige que se jogue muito, muito mesmo para se liberar algum efeito significativo. A segunda possibilidade são os pontos ganhos em cada partida, conforme o desempenho do jogador, que podem ser aplicados em tempo real melhorando elementos como medo, dano ou resistência, mas que duram só para aquela iteração. Tudo isso soma-se aos atributos dos equipamentos encontrados para compor o conjunto do jogador, o que significa que cada partida tem suas especificidades, garantindo um elemento de aleatoriedade e valorizando um certo grau de imprevisibilidade.
Mesmo assim, chegará o momento onde a repetição poderá incomodar. Há uma previsão para lançamentos posteriores pagos e gratuitos, incluindo novos mapas e, quem sabe, novos personagens, equipamentos e, quiça, objetivos, algo que deve ajudar na renovação constante do interesse que jogos desta natureza demandam. Afinal, as cinco missões single player oferecem, além da liberação de mais personagens, um respiro no modelo convencional, mas elas são poucas e, por mais que se tratem de passagens diferenciadas, no final estaremos lá fazendo as mesmas coisas de sempre: indo até um lugar pegar alguma coisa sobrevivendo ao que aparece pelo caminho. Aliás, não ajuda o fato de ser obrigatória a necessidade de conexão constante com a internet, mesmo quando se pretende jogar sozinho. Além da dependência de uma rede estável o tempo todo, ainda limita o público que poderia se interessar pela experiência.
Já quando se fala do aspecto audiovisual, o jogo surpreende não só pela já citada boa recriação de personagens e cenários, como também pela qualidade gráfica e pelo cuidado com pequenos detalhes. Quase sempre muito escuro, algo intrínseco ao tema, há ótimas soluções de iluminação de fontes diversas, que vão desde a indispensável lanterna a focos em chamas, e os efeitos de sombra ajudam a construir a tensão crescente em vários momentos. O mesmo capricho é visto na geração de partículas e no sistema climático, que trazem tempestades muito convincentes, trechos de uma névoa amedrontadora e outros contrastes belíssimos. Animações fluidas e a rica cenografia completam um robusto pacote estético que faz bonito até na comparação com jogos de altíssimo orçamento.
A música tema é outro grande acerto, grudando na mente de um jeito bom, e os diálogos soam tão cafonas como deveriam, apesar de estarem muito distantes, em termos de diversidade, do potencial da saga. Os grunhidos estão presentes o tempo todo, mas senti que a mixagem poderia ser um pouco mais dedicada a nos permitir uma melhor localização espacial, principalmente de ameaças que chegam sem muito sobreaviso. Mesmo usando headset grande parte do tempo, me sentia perdido e só descobria onde estava uma criatura quando já era tarde demais. Outros efeitos sonoros como trovões, sonoplastia das armas e ruídos funcionam bem a serviço da ambientação, que acerta em cheio no tom de terror, mesmo falhando nos traços mais cômicos.
Evil Dead: The Game é, de alguma forma, uma grata surpresa para mim. Como eu havia adiantado logo no começo desse texto, eu tinha alguns receios em relação tanto ao formato quanto ao tema licenciado, e de alguma forma essas preocupações parecem ter sido foco de grande dedicação dos desenvolvedores, que se provam grandes fãs das obras onde se inspiraram. Com mecânicas efetivas, o jogo funciona muito bem em relação à ação, mesmo que favoreça mais o combate melee em detrimento ao tiroteio desenfreado, e tem um ou outro problema de movimentação, sem contar que a câmera parece próxima demais na hora da pancadaria.
Sem uma grande história a ser contada – e nesse aspecto, o jogo será muito melhor aproveitado por fãs de longa data das aventuras de Ash e seus amigos do outro lado – a lore vive de referências diretas a coisas e monstros já conhecidos, e mesmo as missões solo que deveriam explorar melhor uma linha narrativa, ainda que mínima, são só um pretexto para que o jogador aprenda as principais ferramentas do jogo enquanto revive relances do que já assistiu. A vantagem é que visualmente o jogo é impecável para suas pretensões e consegue estabelecer muito bem o mundo no qual se baseia, algo que favorece o fator replay mesmo que só oferecendo basicamente um modo de jogo principal sem quaisquer variações.
Enquanto jogo, é uma experiência bastante satisfatória e divertida, principalmente jogando com mais gente e, de preferência, conhecidos, porque organizar um time colaborativo sem diálogo aqui é infrutífero e a receita certa para o fracasso. Só que enquanto marca, todavia, causa um certo estranhamento, uma vez que todos os elementos centrais estão lá, mas falta um certo tempero, falta uma sensação de Evil Dead, assim como faltou ao reboot dos cinemas de 2013. Pegando o tema da franquia emprestado, é como se o corpo estivesse lá, pronto e com todos os elementos no lugar certo, mas a alma que lhe habita carecesse de malandragem, da canastrice desavergonhada que sempre fez toda a diferença.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Saber Interactive.
Veredito
Evil Dead: The Game surpreende ao oferecer mecânicas de ação bastante sólidas, um modelo de cooperação funcional e visuais incríveis, mesmo que precise corrigir algumas arestas aqui e ali. Contudo, falta-lhe o carisma tão presente na franquia em que se inspira e vai depender muito do suporte à comunidade e de conteúdos extras para se manter vivo.
Evil Dead: The Game surprises by offering pretty solid action mechanics, a functional co-op model and amazing visuals, even if it needs to fix some rough edges here and there. However, it lacks the charisma so present in the franchise on which it is inspired and will depend a lot on community support and extra content to stay alive.
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