Kickstarters lendários de desenvolvedores lendários nem sempre dão certo. Há uma longa lista de jogos criados usando recursos advindos de sites de financiamento coletivo que não tiveram o sucesso esperado, lista esta que quase sempre tem entre seus mais famosos expoentes jogos que alcançaram valores estratosféricos graças aos envolvidos na sua criação.
A sensação que se teve durante algum tempo, movida por títulos como Mighty No. 9 e Unsung Story, era de que por mais que nomes de peso como Yasumi Matsuno ou Keiji Inafune se envolvessem com esses projetos, isso não traria certeza de sucesso. Afinal, até títulos aguardadíssimos como Shenmue III sofreram com o peso das expectativas (e das suas campanhas de sucesso).
Mas ano após ano, gênero após gênero, foi se provando que as campanhas eram, sim, um meio válido para que títulos que pareciam fadados ao esquecimento tinham sim uma base de fãs interessada em “sucessores espirituais”, por mais obscuro que eles parecessem. E talvez a maior prova disso seja a existência de Eiyuden Chronicle: Hundred Heroes.
Nascido com a ideia de reviver conceitos há muito dormentes graças ao considerável descaso que a série que o inspirou vive há décadas e capitaneado pela mente por trás dessa tão amada série de RPGs, o prometido “sucessor espiritual” de Suikoden se tornou, até aquele ponto, o 3° jogo com maior sucesso no Kickstarter, muito graças ao status “cult” obtido por sua inspiração e o envolvimento de duas das suas principais mentes criativas, Yoshitaka Murayama (criador de Suikoden e diretor dos três primeiros jogos), que infelizmente faleceu antes do lançamento do jogo, e Junko Kawano, que assumiu a série após Murayama deixar a Konami.
Eiyuden Chronicle: Hundred Heroes vem, então, como um tom de uma última carta de amor do Murayama e do seu time a um dos gêneros de videogame mais amados de todos. Altamente inspirado por clássicos dos 16-bits, o jogo tem um ar muito próximo ao que se esperaria de jogos da época, ainda que envolto numa roupagem moderna e com uma série de qualidades de vida que os jogos se acostumaram a ver hoje.
Em seu cerne, ele gira em torno da história de seus três protagonistas. O principal deles é o jovem Nowa que viaja à capital da sua região, Condado de Grum, para se juntar à guarda local, chamada de Vigia. Em seu primeiro dia como parte da Vigia, Nowa e o restante do grupo se veem encarregados de realizar uma rara busca em conjunto com soldados do Império por uma mítica Lente Rúnica Primeva.
É nesse momento em que o jogador começa a ter um pouco mais de contato com o mundo de Eiyuden Chronicle, especificamente sobre o continente de Allraan onde Hundred Heroes é ambientado, e a perceber que nem tudo é o que parece. Nowa faz parte de um dos vários países que compõem a Liga das Nações, um grupo de diferentes povos que se juntaram para aumentar as suas forças durante uma longeva guerra com o Império Galdeano.
É durante essa expedição que Nowa conhece um dos outros protagonistas: o jovem oficial do exército galdeano Seign Kesling. Seign é herdeiro de uma das mais nobres famílias imperiais e tido como o orgulho de Galdea graças ao seu extremo talento para o combate e estratégia. Apesar de seu jeito mais frio e calculista, Seign logo faz amizade com o impulsivo e alegre Nowa, por mais que o contato entre eles dure pouco.
É justamente esse curto contato, que resulta nos dois encontrando a Lente Rúnica Primeva, que eventualmente os coloca (e todo o mundo) em rota de conflito, com uma guerra explodindo entre o Império e a Liga das Nações. Em meio a esse conflito, os Guardiões, um clã dedicado a proteger a floresta, se vê forçado a escolher um dos dois lados da batalha. E é nessa terceira “facção” que temos a terceira protagonista do jogo, a jovem Marisa, uma amigável e poderosa guerreira capaz de manipular lentes rúnicas, que precisará guiar seu povo em meio a este conflito que decidirá o futuro de Allraan.
A narrativa como um todo é o grande ponto alto e o maior mérito do jogo. Embora ambicioso em seu escopo, ele consegue estabelecer muito bem as motivações não só dos três protagonistas, mas dos antagonistas espalhados por todo o continente e o porquê eles decidem agir em prol da guerra. Naturalmente, o jogo tem um claro vilão, ele não é caricato e sua construção é muito bem-estabelecida. Ele acaba se arrastando um pouco em certos momentos, afinal o jogo é bem grande, durando facilmente mais de 100 horas, mas ele consegue passar muito bem a constante sensação do jogador querer saber o que vem por aí.
E parte desse mérito é o quão bem os personagens principais são escritos. Nowa, Seign e Marisa são excelentes, servindo tanto para passar ao jogador a visão que membros dos diferentes grupos envolvidos no conflito tem, mas as dúvidas que o envolvimento em uma guerra gera nesses guerreiros e como suas convicções tanto são a força-motriz do sucesso deles, mas também âncoras que os impedem de mudar e perceber onde podem estar errados.
Há algo de muito humano na forma como cada um deles é escrito e isso faz com que a história, apesar de alguns deslizes, seja excelente, especialmente se você é fã de narrativas com uma abordagem mais política, com tramas mais voltadas para maquinações entre diferentes facções e menos sobre derrotar grandes monstros mágicos e salvar o mundo.
Chama bastante a atenção o trabalho que foi feito aqui de fazer com que o mundo pareça muito vivo. Cada nova cidade visitada é cheia de habitantes, pessoas viajando e passeando pelas ruas, trabalhando e falando contigo. Elas têm opiniões sobre o que está acontecendo e sobre como isso as afeta. O crescimento dos protagonistas também é bem evidente nesse mundo, indo de meros soldados a líderes de batalhões até eventualmente ter sua própria base (que pode e deve ser melhorada).
Explorar o mundo do jogo é algo bem legal também, com um design bem interessante dos mapas e recompensas muito bem-vindas por explorar cada área totalmente. O jogo não é de mundo aberto, contando com um mapa geral do mundo e áreas menores que podem ser acessadas e estão interligadas, algo bem similar ao visto em RPGs clássicos do SNES ou PS1, por exemplo.
O restante do elenco é algo um pouco mais variável, já que o jogo faz jus ao seu nome, entregando um elenco de 120 personagens jogáveis. Naturalmente, nem todos recebem o mesmo grau de desenvolvimento e evolução, mas todos têm algo a acrescentar à sua jornada. A inconsistência na qualidade e desenvolvimento desses personagens era esperada, ainda que seja um pequeno ponto negativo a se dizer já que, naturalmente, você irá se encantar com um ou outro personagem que não recebe tanta atenção quanto um chato aleatório.
Mas o que chama mesmo a atenção nesse ponto é a riqueza e variedade de personagens e personalidades que o jogo entrega. De guerreiras mágicas a clones de heróis da mitologia chinesa, passando por mercenários antropomórficos, curandeiras estressadas, demônios, magos e crianças, espere toda variedade possível e imaginável aqui. E, se você jogou Eiyuden Chronicle: Rising, embora ele não seja obrigatório para entender nada aqui além de adicionar mais contexto sobre alguns elementos da história (que são explicados para quem não jogou), espere encontrar alguns dos mais queridos heróis daquele título como recrutáveis aqui.
Além da história principal, Eiyuden Chronicle: Hundred Heroes traz uma quantidade absurda de coisas secundárias para fazer. Missões secundárias acabam sendo bem repetitivas com o tempo, já que se atém muito ao padrão de resgatar pessoas ou coletar itens, mas o jogo traz um total de 9 minigames diferentes, que vão de treinar criaturas para correr até jogos de cartas, passando por pescaria, cozinha e duelos. Além, é claro, de poder customizar e evoluir sua base, algo fundamental para obter recursos suficientes para melhorar e customizar seus heróis.
O sistema de progressão do jogo é bem similar ao que foi visto em Eiyuden Chronicle: Rising. Embora não seja possível customizar a evolução dos seus personagens ao subir de nível, o jogador pode melhorar as armas no ferreiro, comprar novas armaduras e acessórios para equipar ou customizar as lentes rúnicas equipadas para ganhar novas habilidades ou melhorar suas resistências ou estatísticas.Junte a isso o elenco enorme e é bem fácil se perder na quantidade de coisa que é possível ajustar para o combate.
Falando no sistema de batalhas, ele é basicamente o sistema clássico visto em Suikoden. O jogador possui um grupo principal de 06 personagens, divididos em duas filas de 03 (sua equipe, no total, tem 10 membros, com 03 reservas e um de suporte completando o grupo). Os combates acontecem por turnos, com a ordem sendo definida pela agilidade de cada personagem e estando sempre aparente através de uma linha temporal na parte superior da tela.
A diferença aqui fica por conta do fato de que, embora as ações ocorram na ordem pré-estabelecida, o jogador precisa definir o que cada personagem irá fazer antes de todos eles agirem, incluindo os inimigos. Isso significa que você precisará, em dados momentos, antecipar se um inimigo irá te atacar para se curar antes que seja tarde demais ou focar seus ataques em diferentes inimigos na ordem certa contando que eles serão derrotados antes de agirem.
É algo bem interessante e traz um elemento estratégico diferente do que a decisão momento-a-momento de escolher a ação de um personagem, ver o resultado, e só então decidir o que o próximo irá fazer. Isso fica ainda mais claro em batalhas contra chefes, as quais costumam ter pequenas mecânicas específicas, de forma similar ao visto em Persona 5, por exemplo, que precisam ser exploradas para derrotar inimigos maiores. Nesse sentido, cabe apontar que cada personagem pode realizar uma entre série de ações em seu turno. Além de ataques simples, é possível usar itens, usar uma ação de defesa (cada personagem tem um tipo de ação específica),acessar sua Lente Rúnica ou usar um Combo de Herói.
A Lente Rúnica dá acesso ao jogador a diferentes habilidades condizentes com o que está equipando, cada uma usando um recurso. Magias usam MP, que só pode ser recuperado com itens ou dormindo numa estalagem, enquanto Habilidades usam SP, uma barra de cinco pontos que vai subindo de um a um a cada turno. Por último, os Combos de Herói são ataques especiais usando dois ou mais membros da sua equipe e que misturam as habilidades rúnicas deles para entregar ataques mais poderosos com diferentes efeitos. Esses Combos de Herói são um show visual à parte e muito agradáveis de se ver, sendo habilidades curtas que não gastam muito tempo.
O combate é excelente também e, mesmo quando ele parece se tornar um pouco repetitivo quando da exploração das dungeons, dada a presença de encontros aleatórios (mesmo que com uma frequência relativamente baixa), é possível usar uma opção que automatiza o combate, com a IA escolhendo (quase sempre muito bem) as ações dos seus personagens por você, algo que é bem útil em lutas contra mobs mais comuns.
Vale a pena dizer que o jogo roda excepcionalmente bem no PS5, com as transições entre mapas e combate sendo bastante ágil e não havendo qualquer tipo de loading mais demorado. O jogo em si é muito bonito e faz um excelente uso do estilo gráfico adotado, lembrando muito a estética HD-2D inovada ppr Octopath Traveler e que vem se tornando bem comum em RPGs com estilo mais retrô. A trilha sonora, que conta com a participação dos excelentes Motoi Sakuraba (da série Tales) e Michiko Naruka (de Wild ARMs) é um show a parte e um prazer de se ouvir a cada momento.
No fim das contas, Eiyuden Chronicle: Hundred Heroes consegue ser mais uma história de sucesso vindo dos sistemas de financiamento coletivo. O jogo é uma excelente carta de amor aos RPGs japoneses, entregando tudo aquilo que um bom fã saudoso esperaria de um novo Suikoden vindo das mentes por trás dos originais, se valendo muito bem do que as ferramentas modernas os permitem entregar.
O jogo possui, é claro, seus pequenos deslizes, mas nada que impeça o jogo de fazer valer todo o seu potencial. É uma pena que o Yoshitaka Murayama não esteja aqui para ver o lançamento do jogo, mas seu excelente legado ficará eternizado por um último título excelente e capaz de capturar toda a complexidade e êxito que fizeram de Suikoden II um clássico atemporal.
Portanto, se você é um fã de RPGs japoneses e especialmente um fã de jogos com narrativas mais voltadas para os conflitos entre humanos, mesmo em um mundo cheio de magia, Eiyuden Chronicle: Hundred Heroes precisa estar no seu radar. Além da excelente narrativa, o ótimo sistema de combate, riqueza de opções secundárias e beleza de seu mundo e trilha sonora fazem dele um dos mais divertidos jogos de 2024 até aqui.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela 505 Games.
Veredito
Eiyuden Chronicle: Hundred Heroes é uma bela carta de amor aos RPGs. Possui uma excelente história e personagens, um sistema de combate desafiador e divertido, além de uma vasta quantidade de conteúdo a explorar, tudo envolto em um pacote com ótimos gráficos e trilha sonora. É um título obrigatório para fãs do gênero.
Eiyuden Chronicle: Hundred Heroes is a love letter to RPGs. It has an excellent story and characters, a challenging and fun combat system, as well as a vast amount of content to explore, all wrapped up in a package with great graphics and soundtrack. It is a must-have title for fans of the genre.
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