Os anos 1990 foram palco para uma infinidade de gêneros se consagrarem dentre os favoritos dos fãs, dentre eles, os viciantes beat ‘em ups, os que mais faziam frente aos games de luta nos fliperamas encardidos em botecos de bairro. Alguns dos mais conhecidos títulos migraram também para os consoles e, claro, se tornaram ícones da história dos videogames, como as franquias Final Fight e Streets of Rage. A minha primeira paixão do gênero, porém, não foi nem um, nem outro, já que lá com o meu Master System, eu conheci um tal de Double Dragon que, pelo nome apelativo, me chamou a atenção na locadora. Colorido, com uma trilha sonora empolgante e um monstro cabeçudo chamado Abobo me atormentando dentre os primeiros instantes, eu simplesmente não conseguia deixar de jogar.
Não surpreendente, a adaptação para os cinemas desta aventura de dois irmãos estrelada por ninguém menos que o (nem tão) grande Mark Dacascos, lançado em 1994 (antes mesmo do até hoje melhor longa de Mortal Kombat que seria lançado no ano seguinte), se tornou um clássico imediato da Sessão da Tarde e eu, um adolescente sem muitos critérios de qualidade, adorava só porque tinha lá os personagens que eu conhecia. Com uma infinidade de games para diversas plataformas até a metade da década e algumas tentativas mais recentes de retornar aos holofotes (como o interessante mas pouco conhecido Neon, de 2012), a franquia, entretanto, perdeu relevância e acabou se tornando não mais que uma boa lembrança para fãs veteranos, esperançosos por uma atualização real da marca.
Eis que em 2023, depois do sucesso arrebatador da nova versão do já citado Streets of Rage, um novo Double Dragon chega ao mercado pelas mãos da Secret Base com as bênçãos (e o licenciamento, claro) da conhecida Arc System Works, com distribuição a cargo da Modus Games, apostando na nostalgia e no carisma daquilo que vimos décadas atrás. Sem buscar uma atualização gráfica sofisticada como a concorrência, ou uma modernização completa para o modelo tridimensional como outras tentativas por aí, o jogo traz alguns dos mesmos conceitos daquela época com algumas significativas atualizações, é verdade, mas que ainda assim mantém o jogo com fatores facilmente reconhecíveis por quem já teve a oportunidade de experimentar esta luta contra o crime pelas ruas devastadas de New York.
A contextualização da trama já dá o tom urbano da produção, e felizmente o game está bem localizado para o nosso português brasileiro. Em um momento pós (meio) apocalipse nuclear, as gangues assumiram as lacunas de poder na cidade promovendo o medo e o domínio pela força. O prefeito, refém de um absoluto caos, parece não ter recursos suficientes para controlar a violência e tudo parece perdido, quando dois irmãos, Billy e Jimmy Lee, decidem promover a paz do seu próprio jeito, que é basicamente deitando todo tipo de vagabundo na porrada. Ao lado de Marian (que deixa de lado, felizmente, o papel da donzela indefesa para ser uma ótima adição ao elenco de personagens selecionáveis) e do parrudo Tio Matin, eles deverão enfrentar as quatro principais facções criminosas da cidade e, com isso, derrubar seus líderes e a opressão que eles estabeleceram. No caminho, como não poderia deixar de ser, serão muitos os capangas e outros perigos constantes que não facilitarão a jornada.
Se a história não é das mais originais – na verdade, ela se parece basicamente com praticamente todas as outras contadas por jogos do gênero – a estruturação de fases é uma das melhores coisas no andamento da narrativa. Isso porque as quatro regiões da aventura podem ser jogadas na ordem que o jogador quiser sem qualquer penalização na curva de dificuldade e, ao mesmo tempo, sem comprometer a sensação de progressão e escala do desafio. Cada grande região é dividida em três níveis, mais ou menos naquela linha tradicional onde há blocos de três fases em que na terceira se enfrenta o grande chefe. Contudo, aquela que se escolhe inicialmente será resumida para somente o primeiro trecho, e a seguinte será encerrada na segunda parte. Só as escolhas para terceira e quarta partes é que deverão ser vencidas na íntegra.
Em outras palavras, não haverá nenhuma run onde o jogador enfrentará todos os quatro mundos integralmente, e só será possível ver a completude do game jogando mais algumas vezes. Soma-se a isso o fato de que a dificuldade dos chefes depende de em que grau os enfrentamos, e quanto mais longo o nível, mais apelões eles podem se mostrar. Isso garante acessibilidade e, principalmente, um grande fator replay para uma campanha curtinha que, isoladamente, não dura mais que uma hora, isso sem considerar que ainda há dois finais diferentes para o game, um deles que se encerra depois de superar a quarta gangue e outro que ainda traz um epílogo ainda mais difícil do que tudo o que veio antes, algo que por si só já garante o nosso retorno para um novo save. Particularmente, gostei muito do formato, com algumas inspirações roguelike, mas que no final se mostra bastante diferente do que vemos no mercado atualmente.
Chegar a esses finais, porém, não será como um passeio pelo parque. O game guarda muito da complicação de seus predecessores, e mesmo no nível padrão, há que se suar bastante para ver os créditos subirem na tela. Os novatos e as pessoas que preferem jogar mais tranquilamente, porém, não precisam se preocupar tanto porque há um sistema muito adaptativo de seleção da dificuldade, algo parecido com outros jogos mais recentes que permitem customizar a experiência. Ao invés de decidir por uma opção entre muito fácil e muito difícil, o jogador deve aumentar ou diminuir a sua barra de vida, o custo de melhorias, a agressividade dos adversários e outras opções simples, mas bastante didáticas, da maneira como bem desejar.
Poder fazer estas escolhas independentes umas das outras é uma forma bem interessante de delegar ao jogador e não ao jogo como melhor aproveitar o game, porque você pode se divertir para além de baixar ou aumentar tudo. É possível, por exemplo, deixar os inimigos bem mais poderosos, mas tornar a compra de continues infinita, ou o contrário, deixar tudo menos complexo, mas ter a pressão da morte permanente. Basicamente, isso fica a gosto do freguês. Completa essa tela de configuração a opção de se jogar sozinho ou em multiplayer, o que aumenta ainda mais a sensação saudosista, mas não espere do jogo uma adequação da dificuldade por isso. Solo ou acompanhado, a quantidade e a qualidade dos inimigos são as mesmas. Infelizmente, para os adeptos das jogatinas on-line, a opção de jogar ao lado de um amigo é somente local por enquanto, o que deve facilitar o desenvolvimento e reforçar o estilo retrô, mas acaba prejudicando uma parcela significativa do público. A promessa é que um modo on-line seja disponibilizado em algum momento depois do lançamento.
Se história e estrutura estão em um misto entre inovação e tradição, Double Dragon Gaiden: Rise Of The Dragons aposta no que há de mais seguro no que se refere a jogabilidade. Até mesmo mantendo a disposição do leiaute de comandos, há o ataque padrão, que gera combos automáticos; o salto que pode ser utilizado também como salto duplo e como composição para ataques aéreos; um segundo movimento que pode ser o tradicional agarrão para alguns personagens e uma esquiva para outros, e um comando para especiais (normais ou com uma variação na combinação com o direcional) que se apropriam de uma barra própria, mas que não consomem a barra de vida no momento do aperto. Como sempre estamos utilizando um par de personagens, um comando de ombro de controle alterna entre seus escolhidos, enquanto o outro permite a corrida, que também pode ser complementada com um ataque. Nada que em 15 segundos, os experimentados no gênero não se adaptem facilmente.
Considerando a pouca variedade típica de beat ‘em ups, esta gama de possibilidades acaba se tornando interessante à medida que o jogador se sente mais confortável com cada um dos heróis disponíveis, o timing de movimentos de ataque e defesa e as combinações disponíveis. Esta diversidade aumenta exponencialmente quando se considera que há nove – sim, nove – outros desbloqueáveis, cada qual com suas combinações. Não demorou para que eu facilmente decidisse pelos meus favoritos, todos diferentes dos quatro protagonistas originais. Mas basicamente, há aqueles cujo ataque rápido tem alcance reduzido, como os dois irmãos principais; os de ataque a distância mas pouco efetivos no mano-a-mano, como Marian e seus apetrechos; e os lentos, mas bem fortes como o Tio Martin. Praticamente, são três classes e vale a pena jogar bastante para liberar o máximo de extras possíveis para saber compor uma dupla que consegue lidar com diferentes situações.
Como de costume, é possível recolher itens do cenário, ou roubar de inimigos derrubados, como facas, garrafas quebradas, pedaços de cano e até espadas, algo que adiciona um fator bem interessante quando o quebra-pau começa, mas é uma pena que nem todos os selecionáveis possam se apoderar desses itens. E caso você esteja se perguntando, há sim os clássicos barris com comida dentro que nos ajudam a recuperar a barra de vida, mas aqui há um adendo: a finalização de grupos de inimigos com ataques especiais também gera esse tipo de benefício. Acabar com três pilantras de uma só vez com um shoryuken ou com uma facada, por exemplo, gera um belo sanduíche. Se forem cinco, um frango assado praticamente restaura a vida por completo. A boa notícia é que a barra de especiais se enche com certa facilidade, principalmente recolhendo espólios de inimigos derrotados, então dá para fazer combos especiais com bastante constância, algo que será bem útil quando a dificuldade apertar.
Além de tudo isso, a cada gomo de fase vencido, é possível gastar o dinheiro recolhido com benefícios temporários, que duram só até o fim da run, como maior dano, bônus na troca de personagens, mais pontos de vida, mais velocidade, melhor recuperação de barra de especiais dentre outras possibilidades, e isso serve para nossos dois personagens. Para chegar ao fim, é bem importante vasculhar todos os cantinhos e quebrar todos os caixotes para não deixar nenhuma moedinha para trás, porque tudo isso conta. Também gastamos dinheiro a cada novo continue, no caso de não deixar a morte permanente habilitada. Quando zeramos o jogo, toda a grana que sobra pode ser convertida em fichas que servirão para novos continues na próximas runs ou, se o jogador preferir, para comprar itens da lojinha, que vão desde artes conceituais e músicas para ouvirmos quando quisermos, até os tais bonecos desbloqueáveis, minha opção favorita. Cada escolha na seleção de dificuldade muda o preço da ficha, e quanto mais fácil o jogo fica, mais caro o valor da ficha no final. Um equilíbrio justo, que basicamente permite quem for mais ousado conseguir mais fichas no caso de sucesso.
O uso do conceito de fichas, barris com comida, barras de metal e outros recursos tradicionais é um claro aceno ao jogador das antigas, e o trabalho de exploração da nostalgia não estaria completo sem usar e abusar do pixel art tão característico da franquia. Não é só pelo estilo do traço, porém, que o jogo guarda suas semelhanças com o que veio antes, já que até mesmo os sprites em telas de carregamento lembram dos bonequinhos desajeitados dos primeiros jogos. Encontrar Abobo como um sub-chefe, bem como outros vilões clássicos, e acompanhar a história via cenas de corte com ilustrações acompanhadas de texto é um grande deleite para fãs de longa data, mas felizmente, o game não tenta simplesmente emular os originais. A fluidez de animação é bastante agradável, os efeitos de partículas e a composição sofisticada de alguns cenários é surpreendente, o design de personagens, mesmo os genéricos, é bastante rico, e as canções, mesmo que não sejam lá tão memoráveis, acompanham o ritmo empolgante impetrado pela ação constante.
Há bastante reaproveitamento de elementos gráficos, claro, e há muitos inimigos cujo padrão de ataque é exatamente o mesmo, mudando só a skin temática da gangue à qual ele pertence, mas se não for assim, seria de se estranhar. Algumas texturas também parecem aquém dos padrões estabelecidos e o level design linear e com poucas entradas opcionais poderia ser um pouco mais ousado. Há sessões bem específicas de algo que se parece com plataforma, por exemplo, que poderiam muito bem estar espalhadas de modo mais aleatório pelos ambientes, e não concentradas em um único lugar. Por exemplo, há um trecho de ruínas em um prédio que demanda uma certa precisão nos saltos, tomando-se cuidado para não ser empurrado por alguns malandros que querem nos bater a todo custo. São muitos saltos aqui, mas nada parecido em outros lugares. O mesmo para armadilhas, que também são bem pontuais de certos cenários. A distribuição é desigual e insuficiente, e poderia ser um fator mais presente em mais lugares que se resumem a meros corredores contínuos.
Claro, são detalhes pequenos perto das muitas qualidades do jogo. Double Dragon Gaiden: Rise Of The Dragons é um ótimo game do gênero, não só resgatando algumas de suas qualidades mais destacadas de anos atrás, mas também atualizando alguns conceitos para funcionar inclusive para pessoas que não tiveram a oportunidade de crescer com a franquia. Sem inovar ou reinventar os principais parâmetros dos tradicionais beat ‘em ups side-scrolling, os desenvolvedores deixaram de lado uma pretensa necessidade de modernização completa e apostaram todas as suas fichas – trocadilho intencional – naquilo que sempre foi a essência da história de dois sujeitos que saem na rua para espancar dezenas de bandidos mequetrefes. Nunca foi algo para ser complexo, e para os jogadores que buscam em recomeços alguns sentimentos de outrora, esta é uma das melhores opções possíveis. Enquanto a Capcom não resolve fazer o mesmo com Final Fight, Capitain Commando e Cadillacs and Dinosaurs, este é, ao lado de Streets of Rage 4, uma das mais indicadas experiências para os briguentos noventistas.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Modus Games.
Veredito
Double Dragon Gaiden: Rise of the Dragons é um beat’em up side-scrolling que basicamente reinicia a franquia respeitando as suas raízes, valorizando o estilo clássico do gênero e atualizando conceitos pontuais que garantem o referencial para os fãs da velha guarda. Ao mesmo tempo, se mostra uma belíssima porta de entrada para novos adeptos da boa e velha pancadaria no melhor estilo pixel art.
Double Dragon Gaiden: Rise of the Dragons is a side-scrolling beat’em up that basically restarts the franchise respecting its roots, valuing the classic style of the genre and updating specific concepts that guarantee the reference for old-school fans. At the same time, it proves to be a beautiful gateway for new fans of good old beat’em up in the best pixel art style.
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