Diablo IV – Review
Eu sou um fã tardio de Diablo. Como havia comentado na análise que fiz da remasterização do lendário Diablo II (intitulada oportunamente de Resurrected) e há alguns meses atrás no preview produzido a partir da versão beta do game mais recente, eu fui conhecer a franquia a fundo pouco antes do lançamento do terceiro jogo, naqueles movimentos de resgate que fazemos para corrigir uma falha de formação no universo gamer. Antes mesmo de entender direito que aquele velho segundo jogo da franquia estava simplesmente sedimentando todas as bases de um gênero e se tornaria a referência máxima para ele décadas depois do seu lançamento, já estava claro que era uma vivência única que entraria para aquele seleto grupo de jogos que mudam a nossa vida.
Cá estou eu pra me aprofundar nas entranhas agora do quarto game da série, que como já está bastante claro desde o início do marketing e que se comprovou na sua versão de testes fechada e, depois, pública, trata com muito carinho o seu legado e tudo aquilo que o trouxe até aqui, respeitando a si mesmo e ao público que o cultua. Diablo IV é uma verdadeira ode àquilo que aprendemos a admirar em Diablo II, sem deixar de lado as evoluções do jogo seguinte que, se não é uma unanimidade incontestável dentre os fãs no que se refere ao tom geral da obra, certamente soube bem o que significa se embrenhar em uma lore que já nasceu provocativa ao lidar com conceitos da religião ocidental sem, contudo, ficar presa a ela.
Diablo IV nos mostra uma versão de Santuário não muito melhor do que aquela última versão que vimos no final do game anterior. A bela e angustiante cena de abertura nos apresenta o momento onde Lilith, uma entidade demoníaca ancestral filha do poderoso Mephisto, é invocada por um ritual macabro depois de séculos no exílio, trazendo consigo uma nova era de destruição, desgraça e miséria. Como já sabemos, é na pior adversidade que os grandes heróis se levantam, e cabe a nós, assumindo a persona dentre cinco classes disponíveis – necromante, bárbaro, mago, druída e renegado – interromper o ciclo de desesperança, e devolver a capirota, seus demônios e seguidores (arrependidos ou não, malditos!) de volta para o buraco nefasto de onde vieram.
Experimentei um pouco de cada uma das cinco classes rapidamente para ter um bom vislumbre de cada um deles, sobretudo no sistema de combate e no desenvolvimento de poderes e habilidades especiais. Diablo IV, a tradução máxima do que definimos como um RPG de ação com visão isométrica, não é, como na tradição da marca, um jogo criado para uma dinâmica de batalha de ação ininterrupta e de movimentação frenética, e a minha decisão, até porque eu sou adepto da pirotecnia expansiva, foi seguir com a escolha que havia feito lá nos testes iniciais e levei minha maga, a Piessex, até os confins desse mundo. Ao longo dos próximos meses – quiçá anos – com um modelo de live service prometido que deve se manter até pela boa penetração da marca, muito há o que se experimentar tanto no end-game parrudo planejado, como no retorno à campanha com outras roupagens.
A promessa, para os mais afoitos, é de que aquela história de que ao iniciar a jornada com um novo personagem é que não será necessário começar tudo do zero, nível 1, aquela coisa toda que Diablo III nos acostumara. Os núcleos comuns e questões gerais já poderão ser superados automaticamente, incluindo níveis de personagem e outras benesses pelas quais já passamos antes, tudo para que possamos seguir sempre adiante, habitando o mundo sem parecer estar repetindo pela terceira, quarta, quinta vez o mesmo trecho, a mesma masmorra, as mesmas conversas. Fica claro que a meta de médio e longo prazo não é que o jogador invista na repetição, mas na expansão do universo. A campanha-base é a porta de entrada, não o salão de festas principal. E a se basear no que ela proporciona, é empolgante ver o que mais vem pela frente em cada temporada, em cada evento posterior.
Saindo do que pode ser para o que já é, só boas notícias. Para não ficar repetitivo com o que eu já havia comentado antes, só posso acrescentar que o mundo aberto de Santuário é nada menos do que extraordinário. Vasto e diverso, ele é composto por praticamente todos os biomas possíveis, que vão desde descampados escaldantes a campos sob neve densa, passando por florestas macabras, vilarejos, castelos e outras edificações mundanas, e obviamente cavernas e masmorras generosas tanto em tamanho quanto em perigos escondidos, chegando a superar a casa das 120 entradas a serem descobertas. Cada nova abertura, cada novo buraco que encontramos pelas nossas andanças esconde uma legião de inimigos, sub-chefes complicados, tesouros abundantes e segredos que acrescentam novas percepções sobre o desespero das pessoas nesse mundo abandonado por aquelas divindades que deveriam protegê-lo.
A exploração, vale destacar, pode não ser para todo mundo, já que não há aqui nenhuma economia em termos de tamanho do mapa principal além dos complementares. A descoberta segue aquele sistema espiral, onde partimos de um ponto praticamente no centro do continente e vamos expandindo nossa visão conforme abrimos para as extremidades, com passagens muitas vezes labirínticas e inimigos andando livremente por aí só esperando um desavisado se aproximar. Isso também significa que em sessões longas pode se sentir um pouco de cansaço com a repetição de padrões e inimigos. Entrar em uma dungeon significa se disponibilizar a passar um bom tempo lá até chegar ao fim, superar o que nos espera lá – um inimigo poderoso, uma horda incansável ou ambas as coisas – porque mesmo que haja aqueles pontos de checagem estratégicos, é difícil conseguir parar no meio da caminhada. Sabe aqueles quinze minutos a mais antes de ir dormir? Os meus se transformaram em duas, três horas com mais frequência do que eu gostaria de assumir.
Felizmente, esta grandiloquência é muito bem temperada com uma infinidade de micro-narrativas muito bem-vindas para dar vida a este lugar. Encontrar um viajante perdido que está em busca de seu filho ou uma senhora que não sabe o que aconteceu com o seu marido é do tipo de missão secundária que mais se vê em qualquer jogo do gênero, mas aqui os lugares e as consequências de nossas buscas são, por vezes, bem surpreendentes. Então, claro que ainda teremos aquelas missões de “busque meia dúzia disso aqui e volte para cá” ou “derrote uns 10 desse tipo de monstro e traga a essência de seus corações”, aquela coisa de uma terça-feira fraca em Santuário, mas que além de nos trazer uma motivação extra para revirar os cantinhos daquela região que já íamos explorar, ainda nos dá mais algumas pílulas de contexto para nos importarmos com o mundo que estamos tentando salvar. E para valorizar aquela limpeza básica que fazemos em algumas áreas, a conquista de fortalezas inimigas pode transformá-las em postos avançados controlados por nossos aliados.
E já que a ordem básica é eliminar milhares de criaturas sombrias ou soldados idiotas, melhor que seja com competência, demonstrações de poder e um certo estilo. O arsenal de habilidades especiais disponível para desbloquearmos é insano, cada qual com seus níveis de melhoria e subdivisões de modificações. Podendo equipa-los em praticamente todos os botões de ação do controle – são ao todo seis poderes que podem ser mapeados ao mesmo tempo, somando-se ao consumo de poções e à bendita e indispensável esquiva. Para garantir que não iria ficar capenga contra algum tipo de inimigo, tentei variar poderes elementais, ataques a distância e de proximidade, bem como movimentos agressivos e defensivos. Melhor do que quantidade, claro, é qualidade, então a sugestão é sempre elevar um poder ao máximo antes de ficar liberando outros. Entre um funcionando bem e seis meia-boca, escolha sempre o primeiro.
A customização, aliás, é uma forma muito mais efetiva de valorizar a progressão do jogador. Não há mais aquela coisa de distribuir pontos entre características como vitalidade, poder ou defesa, e isso se tornou tão automático quanto prático. Também não há aquele piso de nível para enfrentar certas tarefas, e a grande maioria das mais importantes se nivela automaticamente com o nosso estado ao chegar lá. Conseguir XP e subir de nível simplesmente nos dá pontos para cuidar dessa árvore de habilidades e construir nosso personagem considerando nossas características de gameplay, nossos anseios e nossa forma de melhor encarar o que vem pela frente. Não é exatamente mais simples, mas se mostra muito mais direto ao ponto, nos dando escolhas que realmente importam ser feitas.
Particularmente, eu gosto bastante daquele modo RPG pouco apressado de comportamento: faça tudo o que há de secundário a ser feito, ande a esmo acumulando capital e XP, e aí depois sim, vá para aquele ponto amarelo que indica a missão principal. Com o prazo que tivemos para a revisão, não deu para manter esse padrão por muito tempo, mas mesmo assim, nessa toada cadenciada e sem pressa, é possível estar sempre no estado recomendado para os momentos mais complicados, mesmo para os bem aventurados que partem já para a dificuldade maior no início. Depois de runs completas, há outros degraus para os corajosos, mas para que todos fiquem tranquilos, a dificuldade do jogo está na forma como lidamos com nossas habilidades e com nosso modo de gerenciar recursos, e jamais se mostra injusta ou punitiva desnecessariamente.
Cuidar de armaduras, armas e relíquias é outra coisa que pode parecer limitante como é em alguns jogos que pesam a mão nesse aspecto, mas aqui funciona bem. Nosso inventário lembra muito o do segundo jogo, mas sem aquela coisa maluca de itens grandes ocuparem mais espaço do que outros. Não é das coisas mais realistas uma vestimenta usar o mesmo slot de um anel, mas é mais justo quando precisamos abrir mão de uma coleta por outra. Quando no mundo aberto, é bem tranquilo, quando estamos lotados, abrir um portal para o vilarejo mais próximo, queimar o lixo e vender as coisas boas (ou vice-versa), e voltar para onde estávamos pelo mesmo ponto de teleporte, então não há desculpa para andar por aí abarrotado de coisas, a não ser que se esteja em uma masmorra longa. Mas qualquer jogador de Diablo sabe que inevitavelmente terá que deixar uma pilha de coisas pelos cantos para levar as mais raras consigo.
Trabalhar com mercadores e ferreiros é das coisas mais práticas do jogo, sem complicações exageradas, sem pré-requisitos ou outros artifícios limitantes. Pegue o que você achou, use, queime, recicle, venda, melhore e assim por diante. Tem certos itens exclusivos de uma classe ou outra, mas o mundo é tão cheio de itens que não há que se lamentar mesmo que sejam dos níveis de maior raridade. A economia do jogo, ao longo da campanha, é um pouco desequilibrada, e a não ser que estejamos em um estado de desespero – sem poder restaurar um equipamento desgastado ou com um item bem defasado – não faz muito sentido comprar coisas dos comerciantes. As únicas vezes que gastei todo o dinheiro coletado por muitas horas em um item não demorou muito para achar outro muito melhor em um baú aleatório. Ervas, itens de melhoria e coisas assim valem mais o investimento do nosso rico dinheirinho, mas mesmo assim, só em momentos de maior pressa.
Aliás, não é só o gerenciamento de itens e habilidades especiais que merecem destaque no que se refere a interface. O acompanhamento contínuo de missões primárias e secundárias, as metas para recompensas extras, as atividades de clã, tudo é muito bem organizado e claro nos menus do jogo, e exceto pelos textos por vezes prolixos demais para falar sobre algo em específico, seus atributos e outras características, o modelo de auxílio ao jogador é exemplar. Até mesmo a roda de comportamento, que na maioria do tempo é totalmente dispensável, tem lá seus momentos de protagonismo, sendo em certas passagens a forma de se resolver enigmas ou até de se progredir pacificamente. Não é das coisas mais práticas e funciona muito mais em multiplayer – para os adeptos, há muitos eventos bem legais para se aproveitar em grupo – do que no modo solitário.
Um mundo tão vasto e abrangente como esse seria terrível, porém, não fosse o ótimo trabalho estético que comporta esta pluralidade de coisas sem parecer enfadonho e redundante demais. O jogo traz, principalmente em suas primeiras horas, alguns elementos mais vibrantes e que beiram o cartunesco que muitos criticavam em Diablo III, então há sim criaturas exageradas, cores em profusão em muitos cenários e aquele exagero típico de uma fantasia medieval, mas não restam dúvidas de que o tom mais sóbrio dos primeiros jogos encontra aqui seu ponto de equilíbrio, se apropriando, claro, do potencial gráfico atual. Do segundo ato para frente, a coisa fica cada vez mais pesada, os amarelos solares vão dando cada vez mais espaço aos marrons sujos de catacumbas, e há momentos onde queremos somente sair em zona aberta e respirar um ar que não pareça empesteado com sangue e vísceras podres. Dito isso, ainda senti falta de uma interação mais próxima com o ambiente, bem como desenhos mais ousados que o encadeamento de salas ou caminhos entrecruzados. O level design está longe de ser ruim, tampouco oferece surpresas e renovações do que já esperamos do primeiro ao último cenário.
O visual de personagens principais também surpreende seja pela imponência, seja pelo detalhamento pouco visto em jogos onde o ponto de vista isométrico é a regra. Somando-se à qualidade de texto, este é o jogo onde encontrei mais aliados memoráveis, mesmo que não sejam tantos assim dado o tempo da campanha que pode chegar facilmente a 50, 60 horas para os mais tranquilos, o que vai se multiplicar exponencialmente no pós-game. Dentre aqueles que ficam naquela zona nebulosa entre inimigos declarados e aliados confiáveis, Inarius, uma figura angelical muito interessada nas consequências do poder de Lilith, é dos mais provocativos e sempre que se torna presente, traz um brilho a mais para o game. Vale destacar que nosso avatar customizável, mesmo que não seja daqueles com mais opções e detalhamentos, é sempre um espetáculo.
Destacam-se ainda cenários abertos, construções únicas e um trabalho interessante com a iluminação dinâmica, seja a natural, seja a por fontes artificiais distintas. A beleza de poderes elementais de fogo, gelo e eletricidade é facilmente notada, com a geração de partículas que, complementadas por outras artificialidades como névoa, chuva, veneno e até representações do onírico, tornam a ambientação do jogo algo marcante. Soma-se a tudo isso um belo trabalho de vozes e de localização (já muito melhor do que aquela com problemas dos testes) e uma trilha musical que se apropria das cordas e da ambiência do sagrado que, misturada à sonorização ambiente imersiva, e temos um produto muito bem acabado, com pouco tempo de espera na fila e sem engasgos técnicos significativos. Diablo IV é o grande espetáculo audiovisual que se espera da franquia.
Mais do que uma história, o jogo ainda se propõe a realmente se sustentar por muito tempo para aqueles adeptos mais fiéis, e a previsão é que cada temporada traga conteúdos que permitirão novas incursões em missões especiais e, principalmente, novas funcionalidades e recursos de gameplay. As jornadas de temporada (gratuitas para todos como o eram em Diablo III) serão um outro atrativo que deve incentivar que o jogador continue explorando Santuário de formas diferentes com eventos únicos que, claro, devem gerar bonificações exclusivas naquilo que a Blizzard chama de Passe de Batalha, valorizando os mais dedicados com prêmios de nível de raridade e valor únicos. Tudo isso, somado às possibilidades colaborativas, abrem um espaço para que o jogo se mantenha relevante por bastante tempo. Se pessoalmente eu sempre tenho minhas desconfianças sobre a promessa do que vai vir no futuro neste formato live service, é inegável que o que já foi entregue no produto base dá uma certa segurança.
Não fiquei convencido, porém, em relação à diversidade de inimigos, que mesmo mudando de uma região para outra parecem muito mais skins temáticas uns dos outros do que criaturas únicas em si. Alguns grandes chefões também tem a personalidade profunda como a de um pires, e a grande maioria deles não oferece nenhuma preparação ou antecipação, eles simplesmente estão lá, são poderosos e tudo mais, mas totalmente esquecidos segundos depois de caírem. Por sua vez, a inteligência artificial também evolui pouco, e a grande maioria dos adversários se comporta da forma mais simples possível, correndo em nossa direção e atacando sem se afetar pelo que quer que seja que façamos. Não há qualquer reação, qualquer ideia diferente, e todos basicamente avançam sem pensar no amanhã, inclusive os que tem ferramentas de defesa, como soldados com escudos e coisas assim. Aquele velho esquema de “quem pode mais chora menos” poderia ganhar contornos mais estratégicos, mas não aqui, não por enquanto. Funciona, é reconhecível, é quase que algo intrínseco ao gênero, mas não evolui como poderia.
No conjunto da obra, a desenvolvedora sabe muito bem o que os fãs esperam e se propõe a entregar uma experiência sólida e enriquecedora para um universo já bem estruturado pelos seus antecessores. Portanto, ele não só mantém todas as melhores qualidades que fizeram RPGs de ação serem o que são hoje, como os atualiza para pelo menos mais algumas décadas. A presença da grande vilã do jogo é tímida durante grande parte da sua campanha, mas se faz em doses homeopáticas desde sempre em uma construção sem vergonha do maniqueísmo puro de uma grande aventura fantástica, sem contudo contrapor o mal encarnado a uma bondade pueril, mas sim a um outro extremo menos inocente. Se não traz severas inovações conceituais, o mundo aberto do game é um convite para que nos percamos em cada canto enfrentando legiões de esqueletos incansáveis, monstros vorazes e demônios sem qualquer pudor em serem exatamente o que são. Diablo IV é, antes de mais nada, um verdadeiro Diablo em sua excelência e plenitude.
Jogo analisado no PS5 com código forncedido pela Blizzard Entertainment.
Veredito
Diablo IV é, sem sombra de dúvidas, um grande acerto que se apropria do que de melhor há em suas iterações anteriores, sobretudo Diablo II, aproveitando do potencial de um mundo aberto intenso. Com mecânicas refinadas para os tempos atuais, material para centenas de horas e a promessa de uma política agressiva de conteúdos pós-lançamento, esse jogo é o que há de melhor na eterna batalha entre o mal e… a outra parte.
Diablo IV is, without a doubt, a great success that takes the best of its previous iterations, especially Diablo II, and takes advantage of the potential of an intense open world. With mechanics refined for today, hundreds of hours of gameplay, and the promise of an aggressive post-launch content, this game is the ultimate in the eternal battle between evil and… the other party.
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