A adaptação de obras de outras mídias para o mundo dos videogames tem uma história, digamos, um tanto quanto controversa. Já houve um momento onde essas derivações se vendiam só pela marca, e o famigerado caso da adaptação de E.T. The Extra-Terrestrial (a versão para Atari cujo mito de ter tido milhares de cópias literalmente enterradas no deserto se provou real) é só o mais icônico de uma série de conteúdos feitos sobretudo para promover a obra original, uma peça secundária de pura publicidade sem qualquer crivo em termos da qualidade para o meio. No segmento das animações japonesas, os conhecidos animes, não há uma percepção tão diferente assim, principalmente quando se tratam de jogos de luta no formato arena.
Recentemente, falamos de alguns desses games aqui, como One Punch Man: A Hero Nobody Knows e My Hero One’s Justice 2, adaptações de franquias atuais com muitos e fervorosos adeptos. Era inevitável que um dos maiores fenômenos recentes chegaria aos consoles em algum momento e, de uma forma que parece muito bem planejada, Demon Slayer -Kimetsu no Yaiba- The Hinokami Chronicles chega em um momento entre o sucesso retumbante do primeiro longa-metragem para os cinemas e a esperada segunda temporada do anime na TV e nas plataformas de streaming. Não há dúvidas de que ele, o jogo, tem seu papel publicitário pertinente e aí resta saber se, como tantos outros, ele se coloca só como um cartaz bastante caro ou se consegue se provar por si mesmo.
Para quem não conhece Demon Slayer (ou Kimetsu no Yaiba no original), um rápido resumo de contextualização: trata-se de um mangá shōnen (ou seja, dedicado ao público jovem masculino, segundo as tradições do mercado japonês) escrito e ilustrado por Koyoharu Gotōge, que narra a jornada de Tanjirō Kamado, filho mais velho de uma família humilde, para se tornar o tal Demon Slayer do título na busca por conseguir reverter a transformação se sua irmã, Nezuko, última sobrevivente de um massacre que eliminou seus entes mais queridos, em um demônio devorador de humanos, criatura conhecida como Oni no universo da obra. Como tantas outras produções no formato, é uma história de grandes batalhas, confrontos do bem contra o mal, superação de obstáculos pela força de vontade, e que se apropria de motivações íntimas e emocionais, quase sempre envolvendo a família, a amizade e o amor incondicional para tratar de temas que, claro, irão determinar o destino do mundo todo.
Já vimos muitas vezes antes esta mesma história, bem como uma estrutura cíclica de desafios e revelações que seguem escalando à proporções inimagináveis a cada nova quest, sobretudo porque é uma fórmula de sucesso comprovado. Não demoraria para que a propriedade ganhasse sua adaptação para os animes, repetindo e amplificando a repercussão não só em seu país de origem como no resto do planeta, e não por acaso ganhou tamanha notoriedade, chegando a receber várias premiações ao redor do mundo todo. Como dito, seguindo o caminho de tantos outros que vieram antes dele, era questão de tempo também para que outras produções derivadas fossem anunciadas incluindo, claro, os jogos eletrônicos.
O desafio de The Hinokami Chronicles, jogo que adapta todo o arco que corresponde à primeira temporada do anime somada ao arco The Mugen Train, explorado no filme e que também será abordado no início da segunda temporada, parecia, contudo, maior do que outros similares, como NARUTO SHIPPUDEN: Ultimate Ninja STORM ou Os Cavaleiros do Zodíaco – Alma de Soldado (Saint Seiya: Soldiers Soul), por não se tratar, em essência, de confrontos exatamente simétricos. Explico melhor: ainda que cavaleiros, ninjas, heróis e vilões ou sayajins, dentro do gênero, tenham níveis de poderes diferentes, normalmente adversários sempre partem do mesmo pressuposto, do mesmo ponto inicial de equilíbrio. É como modalidades esportivas de luta convencionais: todos seguem as mesmas regras e tem acesso ao mesmo tipo de treinamento, e vence aquele que for mais habilidoso, poderoso ou competente.
Em Demon Slayer -Kimetsu no Yaiba- The Hinokami Chronicles, porém, não é bem assim que funciona. O lado dos mocinhos, se assim podemos chamar, é composto por pessoas habilidosas e bem treinadas em batalha com armas brancas, normalmente espadas muito similares às katanas que já tanto conhecemos e mesmo com estilos diferentes, como em um Samurai Showdown da vida, estão em pé de igualdade. Por sua vez, os vilões são em sua maioria bestas viscerais, com capacidades muito distintas entre si. Isso está refletido, objetivamente, em toda a estrutura do game que se divide em duas grandes partes: o modo Story que segue à risca, com bastante fidelidade, os eventos da referência original; e o modo Versus, esse sim simétrico, onde o elenco disponível é inteiramente composto pelos espadachins, à excessão da própria Nezuko, que mesmo sendo um Oni tem sua gameplay focada no combate corpo a corpo que se mostra bem coeso na comparação com os demais personagens selecionáveis.
Quando anunciado, o jogo destacou, um a um, seu panteão de lutadores e logo causou um certo burburinho exatamente por não apresentar os demônios como opções jogáveis, adiantando esse formato do qual falei. A escolha se torna bastante compreensível quando efetivamente experimentamos o game e percebemos que ao longo da campanha, as lutas contra Onis são mais próximas de uma experiência hack ‘n slash do que de um jogo de luta, mesmo nesse formato de arena. Basicamente, exploramos um mapa bastante simplório procurando por alguns colecionáveis, mas na grande maioria do tempo seguindo em corredor do ponto A ao ponto B e, no caminho, há um ou outro monstro, que segue a cartilha onde os comuns tem um comportamento baseado em padrões limitados de ataque e os especiais, aqueles que tem uma certa personalidade e destaque na história, se comportam como chefes de fase, com padrões únicos, mas cíclicos.
Isso significa que o game não oferece, e não tem nenhuma pretenção, se trazer inimigos que se equiparem, em estilo ou dinâmica de combate, aos heróis. Não há um modelo de combos, de aproximação, parry, defesa, nem nada do tipo, e da forma como foram projetados, não teriam qualquer tipo de possibilidade de compor uma lista de personagens selecionáveis. A não ser que em algum momento seus movimentos sejam reprojetados para se encaixar na simetria de um modo x1 convencional, ou que os desenvolvedores acrescentem um modo Versus só com Onis. Um modo competitivo assimétrico, ao menos na forma como o game está, é virtualmente (e infelizmente) improvável.
Falando do modo Story em si, a estrutura da campanha está articulada em capítulos. São 8 arcos no total (além do prólogo) que seguem quase sempre a mesma organização. A exploração por caminhos pré-determinados e pouquíssimas bifurcações é definitivamente a parte mais fraca da adaptação não só pela exploração extremamente pobre que só não é desnecessária porque é onde o contexto da ação é contado, com alguns dos mesmos diálogos originais ajustados para um estilo de interação direto em que você se aproxima de algo ou de alguém no caminho, aperta um botão e ouve o que esse sujeito tem a dizer, ou os pensamentos expositivos de Tanjiro sobre o fato. Pontualmente, surge um ou outro minion genérico para justificar o quebra-pau, mas tudo é só um caminho diegético, uma preparação desajeitada e sem ritmo, para chegar aos poucos confrontos realmente relevantes.
Para não dizer que é um caminho sem qualquer atrativo, há como coletar pontos (que poderão ser usados na compra de colecionáveis que não forem desbloqueados pelos pré-requisitos originais) e fragmentos de memória que podem ser assistidos mais tarde e que apresentam alguns conteúdos narrativos extras que não cabem no gameplay. Se a exploração é enfadonha e sonolenta, ainda há como acessar um mapa muito generoso que marca tais itens sem rodeios, bem como as missões secundárias – que também não vão além de encontrar outros pontos de interesse – o que simplifica e acelera ainda mais essa passagem. Os ambientes são bem atraentes e alguns refletem certos cenários já conhecidos de forma muito interessante ao nos dar uma dimensão de espacialidade não tão evidente nas outras mídias, mas lamentavelmente não vai muito além disso.
Além desse modo, que é o principal jeito de ao menos começar Demon Slayer -Kimetsu no Yaiba- The Hinokami Chronicles, uma vez que todos os personagens precisam ser liberados na medida em que se avança por ele, há o já citado modo Versus para batalhas off-line (contra CPU ou outra pessoa); e on-line, para partidas casuais e ranqueadas. Aqui, está solidificado o modelo padrão onde escolhemos dois personagens contra dois adversários, que podem se intercalar durante a batalha e/ou como suporte um do outro – ao serem chamados podem nos salvar de um combo inimigo ou então efetuarem um ataque direto – algo que também está longe de ser uma novidade.
Há também um modo de treinamento para prática livre e outro com desafios, onde cada personagem é um instrutor contra quem lutamos para cumprir certos requisitos, como vencer em um tempo determinado, aplicar um certo tipo de golpe ou realizar um movimento especial. É basicamente um espaço para treinar certas características que não são exigidas obrigatoriamente na campanha, mas que são úteis lá e principalmente em momentos competitivos de verdade. E, bem… é só isso. Inexplicavelmente, não há sequer um modo arcade comum, ou mesmo o já consagrado modo sobrevivente. Neste aspecto, o jogo se resume a explorar somente o que o que está no material original, se limitando a ele, e não se arrisca para além disso.
A este ponto da análise, você já deve estar se perguntando se eu odiei tanto assim o jogo, certo? Inimigos genéricos, exploração entediante, impossibilidade de batalhas simétricas entre caçadores e monstros, falta de conteúdo e de modos interessantes… parece que nada se salva. Bem, aqui está a boa notícia: eu realmente gostei de todo o resto, principalmente do ponto central do sistema de batalha, e no final das contas, este é um game muito divertido de se jogar. Além disso, é um dos mais bem acabados tecnicamente na comparação com outros do gênero e traz um espetáculo visual que se não leva a nova geração ao seu limite, ao menos se aproveita dela para oferecer visuais caprichados e um espetáculo de luz e efeitos visuais.
Falando do visual, aliás, há muito mérito na reconstrução das cinemáticas que representam muito bem vários trechos que já vimos antes nos belos enquadramentos do mangá e em movimento no anime. A reelaboração tridimensional desses elementos é algo realmente louvável, mesmo que obviamente limitado a poucos dos ambientes. Cidades e vilarejos, campos e florestas desta versão alternativa do Japão do século XIX estão muito bonitos, cheios de cor e com belas texturas. Durante a exploração, há uma superfície borrada aqui, paredes invisíveis acolá, mas em momentos de cut-scene no motor gráfico in-game, tudo funciona bem graças à riqueza do material de origem. A animação dos personagens, suas expressões faciais e gestos ainda sofrem de efeitos que não conseguem bem emular a estética anime, mas todo o resto responde a contento, principalmente quando comparado a trabalhos pavorosos como o que foi feito no supracitado Cavaleiros do Zodíaco: Alma de Soldado.
Ainda assim, o destaque mesmo fica para o espetáculo pirotécnico de habilidades e movimentos dos combates. Considerando que a franquia tem sua dose bastante generosa de efeitos de água, fogo e outros elementos fantásticos, tudo funciona bem dentro da proposta do projeto, ainda que alguns exageros acabem atrapalhando um pouco ao esconder referências. Por exemplo, o efeito de água dos ataques especiais fortes de alguns personagens, incluindo o protagonista, por vezes cobrem ambos os adversários na tela, impedindo que saibamos por algumas frações de segundo se o inimigo está de fato recebendo o golpe, ou se estamos nós dentro do alcance do ataque, etc. O posicionamento de câmera variável característico desse sub-gênero também pode não ajudar tanto nesse momento. Nesse caso, é uma escolha do espetáculo sobre a precisão, e se isso é bom ou ruim, depende da expectativa do próprio jogador.
Por sua vez, a jogabilidade em si evita reinventar a roda e não será nenhuma surpresa para quem já conhece qualquer shippuden-like hoje no mercado, ou até de outros gêneros: há o ataque fraco mais comum para combos de 3, 4, 5 golpes, um ataque forte que funciona também nesse tipo de combinação, um botão para pulo e outro para um rápido dash. Para quem conhece qualquer God of War clássico, o sistema é basicamente o mesmo. Para além disso, há um botão de ombro para defesa e parry, ataque especial com o gatilho R2, troca de personagem (ou ajuda) com o L1 e um modo bust (com o personagem gastando a barra de especial para ficar mais rápido temporariamente) no L2.
O resultado é um modelo sem tantas variações assim, com algumas diferenças relativamente sutis em combos e com todos os vícios que são motivo de críticas ou de elogios nos últimos 20 anos. Considerando essa característica intrínseca, Demon Slayer -Kimetsu no Yaiba- The Hinokami Chronicles é equilibrado, bastante fluído e responsivo. A possibilidade de usar o auxílio para ataque ou para defesa abre uma camada interessante de estratégia de ação que, para efeitos de competição, oferece mais subsídios para jogadores experientes evitarem o apelo com personagens com menos abertura em seus combos (quase) infinitos. Em outras palavras, é divertido jogar, é interessante aprender o timing dos golpes e as características específicas para montar uma equipe ideal que sirva ao estilo de cada jogador. Ainda está longe de ser um jogo essencialmente competitivo, mas há uma evolução clara e bem-vinda nesse aspecto.
Por fim, mas não menos importante, está uma avaliação do elenco em si, que só se mostra completo depois de toda a campanha superada – algo que pode durar cerca de 5 a 6 horas de muito mais coisas para assistir e mundos vazios para se explorar do que de gameplay em si. Confesso que os 18 personagens disponíveis não me surpreenderam, dado o recorte narrativo abordado, mas eu ansiava por mais, principalmente porque a certa altura, há uma série de ótimos guerreiros que são apresentados que pertencem a uma certa elite dos caçadores de demônios e poucos deles entram em ação na trama, mas que poderiam enriquecer os selecionáveis no modo versus.
Ao contrário, percebe-se aquele mesmo artifício velho-conhecido de tantos outros games similares: o preenchimento de slots com um mesmo personagem, com outra variação, para inchar artificialmente a sensação de opções. Dentre os tais 18, temos por exemplo três Tanjiros e dois da maioria dos demais personagens secundários, e algumas dessas variações sequer remetem a alguma passagem do tempo abordado da narrativa. Considerando que mesmo aqueles que são distintos entre si tem tipos de ataques parecidos e que os vilões mais importantes estão fora de questão, ao menos por enquanto, caberá a futuras DLCs preencherem esse vácuo. Outra possibilidade é que, em um plano de médio e longo prazos, é muito provável haver a previsão de continuações inteiras para cada temporada que aí sim tragam esses lutadores promissores. Seja como for, é fato que aquilo que está disponível nesse instante é muito pouco pensando na vida útil do jogo, que já oferece poucos modos para se aventurar.
Como um todo, Demon Slayer -Kimetsu no Yaiba- The Hinokami Chronicles tem todos os ingredientes para agradar tanto os entusiastas desse sub-gênero de luta de arena com base em animes shōnen de sucesso, até porque não reinventa a roda na maioria dos aspectos da jogabilidade e porque sabe valorizar o material original com um belo trabalho artístico e na essência narrativa; quanto aqueles que se tem uma ligação anterior com a marca. Entretanto, quem não é uma coisa nem outra provavelmente terá dificuldade em se envolver com a trama, com os controles e com o ritmo do game. A fidelidade ao material original e ao recorte da obra por vezes significa abrir mão de conteúdos externos ou que poderiam ser incoerentes no conjunto, mas também acaba favorecendo a ausência de conteúdos que seriam muito bem-vindos a um jogo de luta para um público mais amplo.
Pessoalmente, sou um entusiasta da franquia e mesmo as passagens mais lentas e somente narrativas, sem intervenção do jogador ou com participação protocolar, me agradaram por poder adentrar e revisitar espaços e eventos que só foram mostrados de forma limitada em outros formatos, mas compreendo que o princípio de redundância também não favorece a criatividade e a expansão do universo e da base de fãs. Este é um jogo, definitivamente, para os já iniciados em Demon Slayer, não porque aqueles que nunca viram nada sobre isso não vão entender a história, ao contrário, ela está minuciosamente muito bem recontada (ainda que só em inglês ou em japonês), mas porque simplesmente esta não será a forma mais convidativa para uma primeira entrada. Por tudo isso, é um jogo que se divide entre uma bela produção com valor por si só e uma peça de publicidade bem acabada. Ela não prejudica a imagem da franquia, mas também terá sérios problemas em ampliá-la.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela SEGA.
Veredito
Demon Slayer -Kimetsu no Yaiba- The Hinokami Chronicles está longe de ser um dos jogos mais inventivos do gênero e traz vários problemas, como a ausência de modos de jogo e conteúdo, exploração risível e um modelo de jogabilidade que não agrada a todos. Ainda assim, é fluido, belíssimo, responsivo e um verdadeiro deleite estético e narrativo para os fãs da franquia.
Demon Slayer -Kimetsu no Yaiba- The Hinokami Chronicles is far from being one of the most inventive games of the genre and brings several problems, such as the absence of game modes and content, laughable exploration and a gameplay model that doesn’t appeal to everyone. Still, it’s fluid, beautiful, responsive and a true aesthetic and narrative delight for fans of the franchise.
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