O gênero que hoje conhecemos como survivor horror (ou horror de sobrevivência) nasceu há algumas décadas atrás, e há uma convenção em aceitar o primeiro Alone in the Dark, lá de 1982, como o marco inicial desta história toda. Contudo, não há dúvidas que Resident Evil, em 1996, é que popularizou e sedimentou algumas das principais características e mecânicas que entendemos primordiais para qualquer produção que se pretende nesse escopo.
E se a década final do século XX viu surgirem diversas propostas que buscavam emular aquela experiência desconfortável, quase claustrofóbica, da franquia da Capcom, os anos seguintes viram uma infinidade de ótimas iniciativas que não só faziam jus aos predecessores, como por vezes os superavam. Nesse meio tempo, surgiram Silent Hill, Fatal Frame, Layers of Fear, Outlast, The Evil Within, Alien Isolation e por aí vai. Outras tantas novas IPs também bebiam da fonte em alguma escala, como o aclamados Dino Criris, Dead Space e The Last of Us, e não faltam opções para aquela jogatina mais tensa de arrepiar os pelos do braço.
Anos se passaram, franquias se transformaram, e os remakes dos primeiros jogos da franquia Resident Evil criaram uma nova onda, apresentando seus atrativos para uma outra geração de jogadores ao mesmo tempo que, inexoravelmente, resgatam a nostalgia dos mais antigos. E, obviamente, novas produções encontram nesse hype a possibilidade de apresentarem suas ideias. Vimos recentemente Dawn of Fear buscar resgatar a essência mais purista do gênero (e falhar em alguns aspectos) e agora Daymare: 1998 (que deriva de um projeto fanmade cancelado de Resident Evil 2) chega para consoles, já com uma lógica mais atual de gameplay e que busca sua âncora em games como os remakes de RE2 e RE3.
Temos uma trama compartilhada por três protagonistas, três pontos de vista de um mesmo evento bizarro, e ao longo da campanha (que pode durar entre 9 e 12 horas), o jogador terá a oportunidade de buscar respostas para indagações pessoais, tramas mirabolantes e muitos mortos-vivos pelo caminho. Começamos o jogo na pele de um soldado de elite (que está a lata de Hunk, personagem que dá as caras nos extras de RE2) enviado pela organização H.A.D.E.S. para lidar com algum problema em uma instalação de pesquisa e, ao chegar, percebe que alguma coisa deve ter dado muito errado por lá.
Mais tarde, somos apresentados aos outros dois protagonistas e temos outras percepções de que algo está acontecendo em uma típica e pacata cidade do interior norte-americana. Enquanto Samuel é um guarda florestal perturbado mentalmente (algo que piora com um evento logo no início de sua jornada), com uma doença conhecida como Síndrome de Daymare (que dá nome ao game); e Raven, piloto pertencente ao pelotão dos Crinson Skulls, da Hexacore. Suas sub-tramas, claro, em algum momento irão se cruzar e dará certa unidade à história sendo contada.
Sim, essa descrição caberia muito bem em outras franquias, e o referencial é tão óbvio quanto bem-vindo. Daymare: 1998 sabe exatamente em que público está mirando, e quais são as estratégias para atingi-lo. Portanto, não será surpresa nenhuma encontrar todas as principais características que fariam do jogo um capítulo a mais da franquia Resident Evil: zumbis como resultado de um acidente biotecnológico: check; armas e recursos escassos (mesmo curiosamente espalhados pelo cenário): check. Documentos, manuscritos e outras informações criadas pelos sobreviventes e pelos infectados: check. Puzzles que funcionam muito mais para um jogo do que diegeticamente, como encontrar senhas em quadros do cenário: check. Pense em mais algum elemento clássico do gênero: check.
Ainda que busque algumas estratégias para justificar esses pontos-chave (como o monitor de batimentos, de gestão de inventário e de outros objetos como parte do equipamento dos avatares), Daymare: 1998 se arrisca pouco e tem como principal e mais agradável adjetivo ser muito parecido com suas fontes de inspiração. E talvez seja esse também o seu maior defeito, uma vez que em poucos momentos ele busca se distanciar e criar algo realmente novo.
Já em termos de jogabilidade, há realmente boas ideias, ainda que também não sejam nada originais, funcionando aqui. Adotando o ponto de vista over the showder, usa de sistemas de tiro e de exploração bastante tradicionais e que não demoram a ser compreendidos pelo jogador. Apontar, atirar, correr, interagir com o ambiente, tudo parece bem automático, como parece ter sido a ideia desde sempre dos desenvolvedores e está bastante otimizado para o Dual Shock 4, ainda que a fluidez da movimentação pareça, por vezes, meio dura e truncada, com animações nem sempre tão naturais.
A gestão do inventário também não foge muito do que já conhecemos, ainda que a escolha por manter a visão mais vertical (já estamos olhando para o pulso do personagem) possa diminuir a área útil nesse momento. Mesmo assim, funciona bem para manter aquele olho no ambiente, já que a ação não para quando se está acessando menus. Assim, documentos coletados, medicamentos, mapas coletados e outros itens necessários para acesso a ambientes, por exemplo, estão todos centralizados nesse dispositivo (e há momentos onde não o temos para poder acessá-lo, o que evidencia sua necessidade narrativa).
Há sistemas de utilização rápida de suprimentos médicos e de troca de munição, mas há a necessidade de uma preparação ainda maior: a munição coletada não vai automaticamente para a arma quando esta está descarregada (a não ser em alguns casos específicos) e é necessário ter pentes extras já recarregados (e isso é feito manualmente), ou, na falta destes, fazer a recarga via inventário. Portanto, se as balas acabarem e não houver um pente extra já cheio em mãos, a arma fica vazia, o que provavelmente vai acontecer em meio a uma batalha contra inimigos múltiplos ou mais fortes. É um complicador que exige, o tempo todo, que estejamos reabastecendo armas e pentes para não ficar na mão na hora da ação. Não ajuda a lentidão para troca entre armas ou para recarga das mais pesadas, mesmo usando atalhos.
Como último recurso, é possível utilizar ataques corporais, mas a estamina é bem limitada, fazendo com que essa mecânica seja muito mais uma reação, um movimento de desespero, do que uma estratégia constante para evitar o desperdício de balas. Faz falta (e talvez esse sentimento seja muito mais pessoal, sobretudo pela experiência com outros jogos recentes) ter recursos como granadas e armas brancas, ao menos como equipamentos secundários, para resolver inimigos individuais ou para controlar multidões, mas compreendo ser uma escolha não tê-los, até para limitar ainda mais as possibilidades do jogador.
Outro sistema simples e muito bem pensado é o de invasão de portas de segurança via um dispositivo coletável. Basicamente, são as mesmas chaves especiais (ou até grampos) de outros jogos, só que com uma espécie de quick time event (QTE) embutido. Ainda que o efeito prático seja o mesmo de qualquer chave, traz uma mecânica que faz sentido ao lore criado e oferece um desafio extra para acesso a salas com, normalmente, munição e outros suprimentos extras, sempre bem-vindos nesse game.
O level design, contudo, não é tão inspirado assim e oferece pouquíssimo backtrack, sendo o jogo, portanto, bastante linear, cheio de corredores e deixando a exploração para salas extras, algumas escondidas como passagens secretas e normalmente opcionais. Assim, o jogo evita um leiaute labiríntico mais convencional e aposta no bom e velho avancar até a próxima área, eliminar as ameaças e explorar os cantinhos para achar suprimentos ou aquele clássico cartão de acesso. Neste aspecto, um jogo bastante sincero que compreende as suas limitações e não as esconde.
Isso significa que é bastante raro se sentir perdido e sem saber para onde seguir. Os maiores pontos de enrosco, se muito, serão os muitos puzzles que encontraremos ao longo da jornada, sendo alguns deles um tanto quanto óbvios (basta dar aquela olhadinha pelo ambiente que a resposta estará rabiscada na parede) e outros um pouco mais sofisticados. Nenhum deles, contudo, é realmente difícil e, no máximo, exigem um ou outro movimento de tentativa e erro. Mas não deixam de ser elementos importantes e fundamentados que ajudam na imersão.
Aliás, Daymare: 1998 sabe muito bem como utilizar seu elemento de terror. Não espere aqui aquela tensão psicológica e perturbadora de outras produções. O sobrenatural, quando surge, está muito mais no campo psiquiátrico do que no desconhecido. A força do game está no terror B, o mais fácil e muito pautado no susto e no imediatismo. Não é raro encontrar zumbis cuidadosamente colocados atrás de uma parede, uma porta ou um ponto cego qualquer. Basta uma olhadinha de canto pra vê-lo lá, como uma criança louca pra dar aquele susto no irmão mais novo. E, confesso, é algo ainda bem divertido, desde que compreendido como tal. Não esperar demais é essencial para aproveitar o clima do jogo.
A reação, contudo, parece ser algo que ainda precisa de mais polimento. A movimentação errante dos inimigos é daquelas que podem nos fazer perder preciosos tiros, e ao ser capturado por um deles é necessário agir rapidamente. A câmera, por vezes, atrapalha um pouco quando isso acontece, girando de uma forma estranha. Não raro, perdi a direção para a qual estava correndo depois de um ataque e voltei para trás, ou ainda cai nas mãos de outro inimigo por achar que ele estava do lado contrário. Saber se localizar no espaço é algo essencial quando é necessário, por força maior ou por desejo, evitar o confronto e o desperdício de munição, e ser capturado nesses momentos traz mais prejuízos do que deveria.
Se a trama cheia de personagens canastrões e situações clichê cumpre o seu papel, o visual do jogo consegue também atingir um bom resultado, sabendo, de novo, lidar com suas limitações. A escuridão é aliada de um design com texturas simplórias e traços básicos, e a inevitável névoa esconde algumas escorregadas, sobretudo de cenários e objetos. Isso muda em ambientes abertos e/ou diurnos bem iluminados que, felizmente, são minoria no tempo total do jogo. Todavia, quando esses defeitos aparecem, são gritantes e a escala da produção fica mais aparecente.
Por sua vez, o design dos inimigos é surpreendente, mesmo não apresentando tantas variações assim. A zumbi com rabo-de-cavalo parece perseguir os protagonistas de forma mais insistente que Nemesis de tanto que o mesmo modelo se repete. Uniformes e vestimentas arquetípicas – o médico, o policial, o bombeiro, etc. – também estão sempre presentes. Mas há um bom nível de detalhes nesses inimigos padronizados, há uma construção detalhada no visual horrendo desses pobre-coitados e tudo passa bem. A expressão dos vivos, por sua vez, é sofrível e o aspecto de manequim animado é a regra. As vezes, o visual dos vivos perturba mais medo do que os mortos…
Jogar Daymare: 1998 só pode ser um momento bem aproveitado, para os maiores entusiastas do gênero, de uma forma: no escuro completo, com silêncio total, e de preferência com um bom headset. Isso porque o trabalho sonoro é bem competente em criar a ambiência certa, com músicas pontuais de tensão progressiva e efeitos e ruídos bem colocados. Não é um design de construção de espaço espetacular, mas grunhidos e pistas sonoras são parte da vivência e ajudam muito na imersão e no engajamento do jogador. Em certo momento, identificar fontes sonoras será uma vantagem e tanto. Então, nada de baixar o volume para evitar os sustos. Isso faz parte da brincadeira.
O que é menos interessante, em termos de animação, são os movimentos dramáticos dos inimigos derrotados. Quando abatido, um zumbi comum (ou mesmo outros inimigos) não caem imediatamente, ou soltam aquele último suspiro identificável. E como a contagem de balas para a derrota não é uma ciência exata (depende da distância e de onde se acerta, e as vezes, parece depender de algum outro fator aleatório), demora para ter certeza que foi suficiente, com duas possibilidades: ou arriscar gastar mais balas do que o necessário, ou esperar alguns instantes e correr o risco dele cambalear e acertar um contra-ataque. Dependendo da distância, vale o risco. Talvez não seja proposital, mas há (mais) um elemento de insegurança maior nesse momento.
Definitivamente, Daymare: 1998 não é uma produção polida como as de grande orçamento de desenvolvedoras mais sedimentadas na indústria, mas felizmente traz uma experiência bem balanceada e muito competente dentro do gênero onde se encontra. Tem seus engasgos aqui e ali, mas sabe onde quer chegar e usa bem seus recursos, mesmo não trazendo nenhuma revolução ou novidade, algo que pode parecer autêntico para uns, ou uma cópia extremamente repetitiva e um pouco inferior para outros. Todavia, é inegável que pode ser sim muito proveitoso para os fãs de um jump scare despretensioso.
Jogo analisado com código fornecido pela Destructive Creations.
Veredito
Daymare: 1998 é uma surpreendente opção para os fãs de um horror de sobrevivência, aproveitando bem cada um dos aspectos que compõem o gênero. Com bons gráficos e uma história típica do terror B e de ficções científicas dos anos 1980 e 1990, traz referências óbvias a Resident Evil e outros clássicos, mas arrisca pouco na construção de uma identidade própria. Uma experiência equilibrada, com bons sustos baratos, que escorrega em alguns aspectos técnicos, mas que pode ser bem proveitoso se jogado no momento certo.
Daymare: 1998 is a surprising option for fans of survival horror, taking full advantage of each of the aspects that make up the genre. With good graphics and a typical story of B terror and science fiction from the 1980s and 1990s, it brings obvious references to Resident Evil and other classics, but take few risks in building its own identity. A balanced experience, with good cheap scares, which slips in some technical aspects, but which can be very useful if played at the right time.
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