Quando o filme Os Mercenários (The Expendables, 2010) foi lançado lá no já longínquo ano de 2010, eu confesso ter me perdido em um misto de empolgação em ver todas aquelas estrelas que eu tinha crescido vendo na Sessão da Tarde reunidas, e uma boa parcela de vergonha alheia ao imaginar que um bando de sessentões longe de sua melhor forma estavam apelando para ganhar algum tipo de relevância em uma indústria que parecia ter se cansado deles. Quando o resultado se mostrou uma grande galhofa na qual todos pareciam estar se divertindo com os próprios clichês, tudo fazia ainda mais sentido e mesmo sendo um filme narrativamente sofrível, ele não deixa de ser divertido.
Mais de uma década depois, me vi com os mesmos sentimentos conflituosos, agora em outra mídia, mais especificamente no anúncio de Crime Boss: Rockay City, que prometia reunir um elenco recheados de personalidades do passado e do presente em uma grande farofada que não se levaria a sério em momento algum, elevando a fórmula de Payday, GTA e Saints Row a um patamar ainda mais caricato. Afinal, como algo que tenha Michael Madsen, Vanilla Ice, Danny Glover, Kim Basinger, Danny Trejo e, claro, a lenda Chuck Norris no elenco pode dar errado? Pois bem, fato é que certo não deu. O game é uma confusão de referências e mecânicas genéricas que, infelizmente, não deram liga.
Narrativamente, se não era algo lá muito original, havia um grande potencial em se estabelecer uma base para missões de retroalimentação virtualmente infinitas. Quando o maior chefão do crime organizado de Rockay City bate as botas, cria-se um vácuo de poder na cidade, atraindo as atenções de todo tipo de vagabundo aspirante a algo maior. Dentre eles, está Travis Baker, o personagem de Madsen, que tenta organizar uma gangue de gente com a índole, digamos, questionável, para arrecadar fundos ilícitos, fortalecer suas bases e, enfim, assumir o controle do mercado de doces – e você sabe o que esse produto significa no mundo do crime – na base da força. O problema é que como ele há outros tantos por aí, também organizados e sedentos pelo poder.
Tudo isso significa que para financiar esse pouco-nobre empreendimento, será necessário realizar assaltos, enfrentar a polícia e os grupos rivais – por vezes, ao mesmo tempo – bem como cooptar novos adeptos à sua causa e outras tarefas moralmente indigestas. A partir da premissa apresentada em meia dúzia de missões introdutórias, a história se apresenta de forma relativamente linear, permeando algumas tarefas específicas. Entre elas, será possível fazer várias outras incursões que basicamente irão encher seus cofres para que você contrate mais capangas, que possibilitarão realizar mais assaltos e… bem, dá para entender qual é a dinâmica do jogo. Ganhe dinheiro, invista, ganhe mais dinheiro, e continue crescendo até ter a capacidade de dominar a cidade. Com investimento alto, é possível montar um exército, conquistar territórios rivais e defender os seus domínios.
O hub do jogo, uma espécie de centro de operações da gangue, tem um mapa que indica os potenciais pontos de interesse, e podemos decidir em qual deles vamos dedicar nossas atenções. Divididas por nível de dificuldade, elas funcionam praticamente da mesma forma: invada uma área hostíl, cumpra a tarefa – que pode ser pegar dinheiro, resgatar uma pessoa, arrombar um cofre, etc. – e saia do local antes de ser abatido. Para tal, você pode levar até três outros membros da sua equipe, mas não de forma infinita, já que cada missão demanda descanso, então nada mais clichê do que dizer que será importante escolher as batalhas a serem travadas com calma. Quando estiver satisfeito ou não tiver mais gente apta para trabalhar, basta encerrar o dia e dormir, e assim recomeçar tudo novamente na manhã seguinte.
O modelo, é verdade, funciona muito bem para o que se propõe, não fossem os aspectos que quebram completamente a experiência. É importante lembrar que o jogo é praticamente um roguelike que nos desafia a sobreviver o máximo de dias antes de sermos derrotados, obtendo algumas melhorias permanentes para a próxima run conforme ganhamos nível de chefe. Ou seja, se Travis morrer, ou se algum aliado importante partir desta para melhor, é fim de jogo. Para se proteger disso, é possível evitar enviar seu principal personagem para as demandas mais perigosas, ou mesmo fugir sem cumprir a missão antes que seja tarde demais. Um bom bandido é aquele que sabe quando se retirar sem um pingo de arrependimento, porque coragem é uma fraqueza destinada aos heróis.
O problema é que tal como nós temos a oportunidade de invadir o quartel general de outra gangue em uma guerra territorial, o mesmo pode ser feito conosco, e nesse caso será necessário enfrentar e vencer os agressores com um numero mínimo de soldados genéricos. Perder a posição também é game over. Mas se seus integrantes tem prazo de validade dentro do ciclo diário, o que acontece quando você sofre um ataque no final do dia sem soldados a serem contratados ou dinheiro para arrumar mais deles? A resposta é tão simples quanto óbvia: perdeu. Não importa o quão bem desenvolvido está o seu negócio, o quão bem você foi em todas as missões que decidiu fazer, nada importa quando não há como defender suas bases, e o jogo ensina isso da pior forma possível. E foi assim que eu aprendi que melhor do que ser intenso é ser econômico e cuidadoso… em um jogo fanfarrão de assalto! Ah, a incoerência…
E sim, a proposta é a da aprendizagem pelo erro, e recomeçar a campanha sabendo o que nos derrubou é uma forma de fazer do jeito certo na próxima rodada. Considerando que o bônus de missões bem-sucedidas nos dão pontos de experiência que podem ser convertidos em benesses representadas em cards, como pontos de vida extra, maior poder de dano e afins, não seria um problema ter que começar do zero não fosse a instabilidade do desafio, que por vezes nos pune quando estamos indo bem, e ao mesmo tempo nos oferece missões tão insossas que o prêmio parece uma forma de pedir desculpas pelo tempo perdido. No fim, realmente aprendemos como jogar para chegar mais longe: de forma enfadonha, repetitiva, burocrática e sem nenhuma diversão. Quando eu esperava que esse fosse um game descompromissado, não sabia que isso seria em relação à diversão.
A diversidade de possibilidades de tarefas e objetivos também não é dos trunfos mais pomposos da produção. Basicamente, passamos por todas elas logo antes do jogo começar de verdade, e o que vem a seguir é uma repetição com pouquíssimos elementos renovados dos mesmos mapas e tarefas. Assalte um banco, roube uma joalheria, invada uma oficina mecânica rival e pegue todas as drogas ou equipamentos que encontrar, tudo é muito bem apresentado nas duas primeiras horas e, depois disso, o jogo cobra que se faça um loot repetitivo até ter as condições necessárias para um avanço na trama. Cenários mudam pouco ou nada, inimigos idem e mesmo a policia parece um bando acéfalo de NPCs sem qualquer estratégia que não chegar de peito aberto e atirar como se não houvesse amanhã.
Não ajuda o fato de que as mecânicas básicas – aquelas mesmas que todo mundo que já jogou um FPS tem como memória muscular – serem pouco inovadoras e até certo ponto, datadas. Para os veteranos de Payday, parece uma versão mais grosseira do segundo jogo, lançado a simplesmente 10 anos atrás. É até divertido quando nos desconectamos de qualquer critério de qualidade, sem muita preocupação com realismo ou com uma física mais aprimorada, e bem engraçado na maioria do tempo, mas não há nada na jogabilidade que não tenhamos visto uma infinidade de vezes antes, e de forma muito mais refinada. Para ser justo, porém, o feedback dos gatilhos adaptáveis no DualSense é bem competente, conferindo peso a um arsenal também pouco inventivo, e uma das poucas formas de sentir o real impacto do tiroteio, porque visualmente a maioria dos inimigos são só esponjas de balas sem qualquer reação, ou então caem sem qualquer relação com onde foram atingidos.
A inteligência artificial é terrível sobretudo na composição da sua equipe de assalto. É possível ir sozinho, mas é bem recomendável estar acompanhado por mais capangas para evitar o risco da derrota. Só que aí você tem ao seu lado um bando de idiotas que fazem o que bem entendem, atrapalham qualquer tentativa de abordagem furtiva porque reagem ao primeiro sinal de perigo e que não fazem nada de útil que não atirar em quem estiver frente a frente. Então mesmo estando ao lado de mais três pessoas controladas por uma CPU preguiçosa, a parte objetiva da ação está toda nas costas do jogador. Sorte que a IA adversária é a mesma, e muitas vezes uma horda de inimigos não consegue sequer fazer algo diferente do que vir um por um na sua direção só pra tomar um balaço na fuça. E se você decide deixar que seus aliados se lasquem, melhor pensar bem porque se eles morrem, não voltam, e tudo o que se investiu neles, incluindo equipamentos mais parrudos, vai junto pro ralo.
Entretanto, é no desenho de níveis onde o jogo se mostra mais limitado. Os poucos cenários são pobres em leiaute, e mais parecem mapas genéricos desenhados em um editor convencional sem qualquer cuidado. Na melhor das hipóteses, é um corredor cheio de portas, um prédio com andares repetidos, uma instalação com um galpão cheio de objetos aleatórios jogados no chão ou muretas pouco convincentes para cobertura, nada mais do que isso. Alguns são ainda mais modestos, se resumindo a uma rua com o carro forte no meio, o qual temos que esvaziar antes que a polícia, que brota por todos os cantos, nos frustre. Mas o pior é que mesmo que tenhamos o desejo culposo de dar uma volta pelo local e explorar seus cantos, o jogo não deixa, e fica nos cobrando, o tempo todo, de voltarmos para o objetivo daquela missão. Não que tenha muita coisa a se fazer nos arredores do local de interesse, mas nem temos a chance de descobrirmos isso por conta própria.
Mas ainda tem aquele elenco recheado de celebridades de primeira grandeza no entretenimento de ação, certo? Sim, com certeza. Culposa ou não, a sensação inevitável em curtir a primeira aparição de personalidades que parecem estar interpretando a si mesmos, ou uma paródia auto-centrada a partir da lenda criada pelo tipo de personagem que os eternizaram, é o ponto alto do game. Enquanto Trejo faz o latino casca-dura e Rooker se esforça para ser exatamente o personagem que faz em The Walking Dead pré-apocalípse, o auge está em Chuck Norris, o principal antagonista do jogo, que como o trailer deixa claro, pode destruir um satélite em órbita com uma bola de basquete. O grande problema disso é que nem a narrativa, muito menos a estética do jogo conseguem segurar a primeira impressão, o que leva Crime Boss: Rockay City do exagero divertido à vergonha alheia bem rapidamente.
Primeiro que os modelos até são bastante parecidos com as pessoas reais, mesmo que não dê pra evitar o vale da estranheza. Mas isso só enquanto estão parados, porque assim que eles começam a se mexer, a coisa fica bem esquisita. A fluidez é limitada, a expressividade é medonha e os ciclos de animação podem ser contados em uma mão. A caracterização até é esforçada, mas quase nunca parece que aquelas pessoas pertencem ao universo desta cidade fictícia arquetípica da região da Flórida. Ou seja, toda a composição visual se baseia no reconhecimento das figuras, mas se perde completamente em menos de dois ou três minutos depois que eles surgem na tela pela primeira vez.
Sobra a esperança de que o trabalho com as vozes originais se salve da mediocridade, mas nem isso, porque a interpretação de cada personagem parece ser desprovida de qualquer emoção, isso na melhor da hipóteses. Não é o caso de serem atores limitados ou algo assim, porque um trabalho como esse merecia mesmo interpretações canastronas, mas nem isso. Parece que o elenco pegou o texto e gravou uma leitura rasa no estúdio sem qualquer direção ou noção de onde a fala se encaixaria. Há um ou outro arroubo mais afetado que nos faz lembrar que há grandes personalidades por trás daqueles bonecos, mas na maioria do tempo, é uma leitura flat, blasé, desprovida de qualquer tentativa de carisma e que parece desinteressada do resultado final. Fico imaginando quantos destes atores viram o produto final de verdade.
Tudo isso, claro, se você ainda estiver disposto a embarcar na proposta noventista do game, incluindo o exagero estereotipado, o tratamento bastante ultrapassado de personagens masculinas e femininas e as piadinhas absolutamente infames que funcionam, no máximo, para aquele eu da quinta série 30 anos atrás, mas que hoje são só peças de constrangimento. Para aproveitar o jogo, há que se embarcar no sentido de sátira de si mesmo, assim como na franquia Destroy All Humans!, só que com ainda menos timing de humor. Na maioria do tempo, a ambientação é só cafona de um jeito ruim, e isso inclui caracterização de personagens, construção de ambientes e diálogos extremamente rasos. Para não dizer que nada se salva, a trilha sonora que remonta as melhores rádios dos anos 1990 é realmente empolgante e consegue nos transportar para tempos um pouco menos complicados.
E se a campanha principal não for o suficiente para nos deixar mais irritados do que satisfeitos jogando por conta própria, o game ainda conta com outros dois modos dedicados ao multiplayer: o Crime Time é basicamente a campanha ainda mais esvaziada e, por isso, mais objetiva e direta ao ponto para se conquistar o reinado ao lado de outras pessoas – até 4 pessoas ao mesmo tempo – e por mais que seja praticamente a mesma bobeira, ao menos dá pra rir do jogo (e infelizmente não COM o jogo) com mais gente; e o Urban Legends, um conjunto de atividades independentes a serem aproveitadas colaborativamente com outras pessoas que decidiram passar pelo mesmo martírio, e que potencialmente tem espaço para abrigar conteúdos complementares com facilidade, se os desenvolvedores conseguirem manter o game relevante por mais tempo.
No conjunto da obra, parte de mim só quer dizer que Crime Boss: Rockay City é simplesmente ruim em todos os aspectos principais. A outra parte, aquela que aproveita das coisas mal feitas para dar a volta para rir junto como elas, como em Goat Simulator, lamenta a série de oportunidades perdidas de, mesmo com todas essas características de qualidade questionável, a coisa ser divertida. Não é. As mecânicas simplórias de tiro em primeira pessoa simplesmente não embalam, o visual que beira o cartunesco absurdo só parece atrasado, a interpretação e as participações famosas beiram o desrespeito com a expectativa criada e o modelo de progressão baseada em missões individuais se torna repetitivo e pouco atrativo mesmo para os mais entusiasmados em ver, eventualmente, os créditos subindo na tela. Soma-se a tudo isso um humor muito peculiar e que pode ofender muita gente mais do que agradar seu público-alvo, e o produto final se mostra nada mais que um amontoado de desapontamentos.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela 505 Games.
Veredito
Por mais que uma pretensa nostalgia pelo cinema de ação dos anos 1990 possa nos fazer relevar muitos dos defeitos de Crime Boss: Rockay City, é inevitável concluir que este é um jogo que falhou em todos os seus objetivos e nem mesmo ser engraçado de tão ruim ele consegue.
As much as a pretended nostalgia for the action movies of the 1990s can make us overlook many of Crime Boss: Rockay City’s flaws, it is inevitable to conclude that this is a game that failed in all its objectives, even to make us laugh.
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