Citizen Sleeper 2: Starward Vector – Review

Antes de mais nada, vamos fazer um checklist para tirar do caminho algumas questões sobre Citizen Sleeper 2: Starward Vector:
- Sim, você pode começar direto por este jogo, mesmo sem ter jogado o primeiro.
- Sim, é uma ficção científica focada na narrativa, com muita, muita leitura boa.
- Sim, é um RPG com sistemas dinâmicos.
- Sim, a sequência tem muitas novidades que a distinguem de seu antecessor.
- Não, não tem localização para português brasileiro e, na verdade, inglês é o único idioma disponível.
- Sim, é um jogo maravilhoso.
Vamos ver tudo isso mais a fundo.
Em um futuro distante, quando a humanidade está espalhada pelo espaço, uma empresa fundou um modelo de trabalho um tanto radical: pessoas com grandes dívidas podem ficar dormindo por anos enquanto uma emulação de sua consciência trabalha arduamente em seu lugar.
A pessoa joga fora anos de vida em troca do que pode parecer uma saída desesperada, mas a questão é pior para seu duplo. Embora não tenha memória de sua identidade original, a cópia tem consciência de si mesma, sente emoções, fome e cansaço, e será explorada exaustivamente até sua obsolescência programada deteriorar o corpo e dar fim à existência.
Em Starward Vector, jogamos com um/uma novo Sleeper foragido, mas, desta vez, quem está em nosso encalço é o líder de uma gangue que controla uma estação espacial e tem interesse especial no corpo biossintético. Ele caçará sua presa implacavelmente pelo sistema solar e, por isso, Sleeper deverá se manter em fuga enquanto trabalha para financiar seus esforços de liberdade e sobrevivência.
Com isto, já temos uma das duas principais mudanças da sequência em relação ao antecessor. Toda boa sequência precisa trazer modificações relevantes e uma sensação de expansão ou aprofundamento, em vez de se acomodar no mais do mesmo. É isso que temos aqui.
Enquanto o primeiro Citizen Sleeper ficava confinado a uma grande estação e suas diversas áreas, agora nosso Sleeper viaja entre vários lugares, permanecendo apenas enquanto for seguro. Isso aumenta nossa noção da vida naquele futuro fictício, dá mais possibilidades de variar as ideias e narrativas, e, também importante para a experiência, dinamiza a condução do jogo com uma maior diversidade de locais e pessoas que conhecemos.
Algumas dessas pessoas são velhas conhecidas de quem jogou o primeiro título. Esses reencontros conferem sensação de continuidade entre essas duas histórias separadas por alguns anos, e, dependendo da memória afetiva de quem joga, podem ser realmente significativos. Mesmo assim, tudo é feito com cuidado e não é necessário ter conhecimento do jogo anterior para entrar de vez em Starward Vector. Afinal, Sleeper também está conhecendo essas pessoas pela primeira vez.
A estética visual retém o mesmíssimo estilo de antes, mas a arquitetura e os contextos narrativos impedem a sensação de estar no mesmo lugar. Ainda há uma rotina de ciclos cotidianos de trabalhos e tarefas, mas ela está mais urgente e incerta, inexoravelmente nos levando a novos lugares desconhecidos aos quais teremos que nos adaptar – ao menos até termos que zarpar novamente.
Portanto, se o primeiro jogo era sobre conhecer e firmar raízes em um novo lar, a continuação se mantém em movimento em meio à gravidade zero. A verdadeira casa de Sleeper agora é uma nave e a tripulação, viajando para estações espaciais, colônias em asteróides e destroços de naves antigas — portanto, não espere a firmeza de planetas ou a estranheza de espécies alienígenas, apenas variedade humana. É preciso também gerenciar o combustível e suprimentos para cada viagem.
Aqui vem a segunda mudança estrutural, uma que vem com muita naturalidade para um RPG: agora agimos com um grupo de personagens! Logo no início, Sleeper está acompanhado do amigo Serafin e, juntos, partem na road trip pela vida. Ao longo da campanha encontramos diversos personagens com diferentes histórias, motivações e atributos.
Além de participarem da história, os companheiros podem nos ajudar nas missões e cada um tem dois dados de ação por ciclo. Funciona assim: Sleeper tem uma parada de cinco dados rolados aleatoriamente no início de cada ciclo (“dias” de jogo), cujos valores podem ser usados à nossa escolha em diversas tarefas, como buscar informações, interagir com sistemas ou trabalhar por dinheiro. Como esperado, quanto mais alto o número, maiores as chances de sucesso, suscetíveis a modificadores de risco e perícia.
Quando estamos em uma missão, porém, agora escolhemos até duas pessoas da tripulação para levar conosco. Cada um tem seus próprios bônus e penalidades nos cinco atributos básicos, então a ideia de grupo é muito útil para complementar as capacidades de Sleeper e traz a grande vantagem de fornecer dois dados a mais por pessoa, aumentando nosso leque de ações.
No começo, achei a interface necessária para gerenciar tudo isso um pouco difícil de entender e até demorei a perceber algumas opções, mas após a primeira hora eu já havia captado o importante e estava selecionando as opções com intuição e agilidade, o que me fez ver que, felizmente, o layout e as cores são eficientes para nos conduzir pelos menus.
Não entrarei em mais detalhes dos sistemas de RPG, mas enfatizo que os dados tornam a coisa toda bem dinâmica e você se verá constantemente torcendo por resultados positivos, especialmente agora com a nova mecânica em que erros e decisões podem acumular Stress, causando dano aos valores dos dados e enchendo medidores que engendram crises ou até o fim de missões.
Há três opções de dificuldade e, ainda que não sejam radicalmente diferentes, entre si, servem ao menos para minimizar os efeitos do Stress e outra novidade: a morte. No modo padrão, morrer leva “apenas” a penalidades permanentes. O mais difícil torna a própria morte algo permanente e o mais fácil elimina essa possibilidade nefasta. Em minha experiência, porém, não houve um único momento em que senti risco de vida e, não fossem as descrições das dificuldades, nem saberia dessa possibilidade.
Todo esse contexto gera uma grande conexão entre a narrativa e a gameplay por meio de um ponto em comum: as escolhas. Tudo aqui é baseado em escolhas, tanto as decisões sobre a trama e os personagens, em meio a longas leituras de prosa caprichada em segunda pessoa (ou seja, falando diretamente com o jogador/Sleeper por meio de “you”), como nas tarefas e decisões do gerenciamento do ciclo a ciclo.
O trabalho de escrita de Gareth Damian Martin segue impecável. Em suas andanças, Sleeper trilhará caminhos ramificados, decidirá se deve confiar nas pessoas que encontra, se deparará com vidas frágeis e incertas e se envolverá em questões de grande sensibilidade e perigo.
O espaço é um cenário apropriado para os temas da sobrevivência em condições extremas, de estar encurralado em meio à vastidão infinita, de estar sozinho em abarrotadas ilhas tecnológicas que não são mais que meros pontos luminosos no vácuo, povoadas por anônimos que buscam a sobrevivência a cada ciclo, oscilando entre o niilismo individualista e a necessidade de conexão e esperança.
Starward Vector, portanto, ainda que dê a opção de sermos ligeiramente como cínicos desgarrados, continua a tendência humanista ao retratar seus personagens como indivíduos complexos e mostrar como as relações entre Sleeper e os demais podem ser reciprocamente vitais, tensas, sinceras e instáveis.
Escolher atitudes e caminhos, porém, não significa determinar o resultado. Sleeper ainda está à mercê das consequências, dos dados e do tempo que dispõe antes da roda do destino girar novamente. Nem tudo poderá necessariamente ser feito. Nem tudo será conhecido. Eventos, vontades e vidas poderão ser deixadas para trás, restando adiante a incógnita: como seria o porvir se aquela pessoa estivesse na tripulação? Como as coisas poderiam ser diferentes?
O destino é inexorável e o salvamento automático também. Em Starward Vector, só podemos seguir em frente, convivendo com o medo e, talvez, o arrependimento, mas também com as esperanças e sonhos de, afinal, ser livre e, ainda assim, ser parte de algo. É reconfortante ver que, no meio dessa distopia espacial literária em que a vida é tão vulnerável, a força coletiva pode ser uma estrela guia, o trabalho pode ser transformador, os ímpetos podem ser construtivos, o cuidado pode ser engajante e a beleza pode florescer em meio à entropia do vácuo e das relações de poder.
Os caminhos não trilhados certamente deixam um rastro de mistério que, após o fim, faz valer a pena recomeçar a história e tentar descobrir o que mais ela nos reserva. Os pontos principais da trama são sempre os mesmos, mas a jornada tem seus desvios e descobertas, convidando-nos a retornar outra vez à tripulação de Sleeper, rumo às estrelas.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Fellow Traveller.
Veredito
Em mais uma ficção científica de boa escrita e temas humanos profundos, Citizen Sleeper 2: Starward Vector melhora o que seu ótimo antecessor fez e amplia a estrutura da campanha. Desta vez, viajamos para diversos locais do espaço sideral em uma nave, acompanhando Sleeper e sua tripulação por meio de um RPG de sistemas dinâmicos e escolhas vitais. A soma coesa das partes faz desta obra um todo maior, memorável e necessário para nossos tempos.
In yet another great science fiction with deep humane themes, Citizen Sleeper 2: Starward Vector improves on what its excellent predecessor achieved and expands the campaign structure. This time, we travel to various locations in outer space in a ship, following Sleeper and his crew through an RPG with dynamic systems and vital choices. The cohesive sum of its parts makes this work a greater whole, one that is memorable and necessary for our times.
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