Respeitável público… Sejam bem-vindos a mais um peculiar espetáculo, onde a magia da eletricidade encontra as sombrias ilusões do vapor, onde o real e o imaginário se misturam, trazendo gargalhadas, lágrimas e todo um rol de presepadas. Onde pensar rápido precisa ser feito com cuidado e onde mesmo os maiores músculos exigem o mais fino trato para lhe entregar o maior show da Terra.
Circus Electrique. A bem divertida e bem curiosa combinação entre simulador de circo e RPG tático desenvolvida pela Zen Studios e publicada pela Saber Interactive. Trata-se de uma mudança de direção no mínimo curiosa para um estúdio que ficou famoso por seus jogos de pinball tematizados com diferentes franquias populares, incluindo Star Wars e Indiana Jones.
É um passo considerável em uma direção bastante distinta, mas executada surpreendentemente bem pela desenvolvedora húngara. É um daqueles bons exemplos de quando uma desenvolvedora sai um pouco da “caixinha”, tenta ousar e demonstra seu talento de formas bastantes inesperadas, ainda que a pouca familiaridade com a nova proposta acaba gerando pequenos problemas.
Ambientado em uma versão (bastante) fictícia da Inglaterra durante a Era Vitoriana, o jogador assume o controle de Amélia, uma jovem e ambiciosa jornalista que durante uma visita ao seu tio, o diretor do recém re-inaugurado Circus Electrique, se vê em meio a um misterioso evento chamado apenas de “O Surto”, o qual fez com que pacíficos residentes de Londres se tornassem violentos e passassem a atacar uns aos outros.
Amélia, naturalmente, decide investigar o que está por trás dos acontecimentos, a misteriosa conexão com a revolucionária tecnologia STEEM, a misteriosa conexão dela com o passado do seu tio e a morte da sua mãe e como isso tudo levou ao fechamento da primeira encarnação do Circus Electrique, sua reabertura e atual rivalidade com o Circus Mecanique.
É um plot interessante e que funciona bem. Ele é contado de forma relativamente direta e, apesar de alguns pequenos giros e curvas, a história vai caminhando exatamente para onde você imagina desde o começo. Seu sucesso fica mais por conta da forma como os personagens principais vão sendo desenvolvidos, sendo fácil de se entender a motivação de cada um deles, o porquê dos relacionamentos entre eles serem da forma como são e como elas se conectam nos acontecimentos maiores.
Outro ponto que enriquece a narrativa é a forma como jogo acaba apresentando uma quantidade bem surpreendente de lore, tanto do circo quanto dessa versão da Londres Vitoriana que é vista nele. Não é nada de revolucionário, mas o cuidado de explicar o universo, a forma como o avançado uso de eletricidade e vapor se misturam e resultam nas várias tecnologias vistas no jogo e como elas se conectam aos espetáculos circenses é muito bem-vindo.
Dito isso, é necessário apontar que, apesar de ter uma história bem legal e se tratar de um “RPG Narrativo”, Circus Electrique é um jogo relativamente curto. Cada capítulo gira em torno de Amélia explorando um dos bairros de Londres, com seis bairros ao todo. Isso faz com que a experiência, no geral, dure algo em torno de 20 a 25 horas para se terminar a campanha principal.
É uma quantidade de tempo bem agradável e que permite que o jogo não se estenda além do necessário, mas não vá para ele esperando uma narrativa épica e longa. Dito isso, caso você ainda queira mais dele, o jogo traz uma série de desafios de combate e a possibilidade de explorar novamente os bairros para encontrar segredos perdidos, então facilmente a experiência irá se alongar caso você queira a platina.
A narrativa, no entanto, é só um terço da experiência que o jogo se propõe a entregar. A segunda parte importante da experiência é o rico e bem interessante sistema de gerenciamento de circo que o jogo possui. O passar do tempo nele é dividido em duas diferentes sessões. No começo, você tem acesso ao seu hub, que é a tenda do Circus Electrique, onde você poderá fazer uma série de ações antes de explorar o próximo bairro.
Aqui você tem acesso a uma série de instalações, cada qual com seu próprio objetivo. Existe um dormitório onde os membros da sua trupe podem recuperar HP, um trem para recrutar novos artistas circenses, um atelier para criar novos itens, um oráculo para lhe ajudar nas explorações e várias outras instalações que vão surgindo ao avançar no jogo para lhe permitir ter maior sucesso em suas empreitadas. É claro, cada uma dessas instalações também pode ser melhorada gastando recursos diversos, algo que você só pode conquistar explorando ou realizando bons espetáculos.
A instalação principal é a própria Tenda do Circo, onde você pode planejar o espetáculo que será realizado naquele dia. Existe uma vasta gama de diferentes espetáculos a serem realizados, com o jogo lhe incentivando a mudar e variar bastante a estrutura deles para ter maior sucesso, já que o público vai “enjoando” deles à medida que eles perdem o fator “novidade”.
Para isso, é necessário sempre escolher novos planos de espetáculo, sendo que cada um deles possui suas próprias exigências, incluindo quais tipos de artistas precisam estar envolvidos e em qual posição, uma pontuação mínima em uma das 4 características do espetáculo (Diversão, Fascínio, Tensão e Riso) que precisam ser atingidas e o entrosamento entre os artistas que iram participar da performance.
Esse último é o que acaba transformando a montagem de cada espetáculo uma espécie de quebra-cabeça. Cada uma das suas unidades terá uma afinidade maior (ou uma repulsa) com um tipo específico de artista e uma posição específica em que ele prefere atuar. Então é sempre importante ter uma variedade de artistas à disposição, já que você pode precisar de palhaço na abertura e um ilusionista no apoio, mas um deles não se dá bem com o outro e isso tira pontos da sua performance.
Montar o melhor espetáculo possível te dará mais estrelas que podem ser usadas em três indicadores distintos: Entretenimento, que rende mais fama ao circo e aumenta sua chance de receber presentes (recursos importantes na hora de melhorar o circo e suas unidades); Complexidade, que aumenta a quantidade de Experiência que os envolvidos recebem; e Público, que aumenta a sua receita e também a chance de receber presentes.
É sempre possível usar itens do seu inventário (criados no seu atelier ou recebidos de presente) para aumentar indicadores de estrelas e cada espetáculo tem uma certa limitação de quantas estrelas podem ser distribuídas em cada indicador. Esse sistema todo é muito bem elaborado e traz bem-vinda variedade ao jogo e um elemento de estratégia antes da exploração.
Aliás, é importante fazer isso antes da exploração já que, a única forma de avançar o dia e concluir um espetáculo é explorando as ruas de Londres. A movimentação é feita de forma bastante simples, com um mapa sendo apresentado com vários pontos a serem escolhidos e jogador simplesmente movendo a peça até lá, muito como num jogo de tabuleiro estilo Banco Imobiliário ou Jogo da Vida, por exemplo.
Ao chegar em cada casa, algo diferente acontecerá. Alguns deles contarão com tesouros, outros com minigames que podem ou não te render recursos e itens muito bem-vindos, outros irão recuperar sua vida e alguns, ainda, avançam um pouco na história do jogo. De toda forma, a exploração acaba ao chegar em uma das várias casas de combate espalhadas pelo mapa (com a final sempre sendo uma batalha com um chefe da área) e se inicia a terceira e última parte do jogo.
O combate é, ao mesmo tempo, a parte mais promissora e, infelizmente, minha maior decepção com Circus Electrique. Elas se dão, geralmente, em batalhas de 4×4 (você escolhe um grupo de 4 unidades suas para escoltar Amelia na exploração de Londres), com cada uma das unidades ocupando uma posição em uma fileira.
Os personagens possuem seis habilidades distintas à disposição, com a possibilidade de usá-las (ou não) e sua efetividade variando a depender da posição ocupada por eles na fila. Cada habilidade possui também efeitos distintos, indo dos tradicionais efeitos vistos em outros RPGs, como envenenamento, queimadura, paralisia e similares, até coisas mais alinhadas com a temática do jogo, como personagens ficando “depressivos”.
Algo peculiar é que o jogo não possui um sistema de MP ou coisa similar para as habilidades. No entanto, há uma segunda barra chamada de “devoção”, a qual tem efeitos diferentes em vários aspectos do jogo. Em combate, zerar a barra de devoção de um personagem (que pode ser causado por efeitos de habilidades) os fará fugir de combate sem a necessidade de zerar a barra de energia deles. Naturalmente, isso também pode ser causado contra os seus personagens, então é importante prestar atenção.
Quanto mais tempo um personagem fica contigo e maior a devoção dele, melhores os resultados também em coisas como os espetáculos nos quais eles estão envolvidos. Além da barra de complexidade do show que te dá mais estrelas, ao selecionar artistas devotados ao Circus Electrique enche uma segunda barra que também te recompensa com mais estrelas para melhorar o seu resultado.
É uma mecânica bem interessante e que faz com que os efeitos dos combates sejam sentidos de forma mais clara no restante do jogo. Dito isso, é o elemento mais complexo visto nele, já que as batalhas, infelizmente, são bem fáceis caso você saiba se planejar minimamente antes.
Isso se dá ao fato de que, meramente seguindo as informações que o jogo lhe apresenta, como a posição preferida de cada personagem na fila, e mantendo uma equipe balanceada, você facilmente conseguirá causar dano e vencer rapidamente a maior parte das batalhas. O único desafio maior fica por conta das batalhas com os chefes, mas mesmo elas, com certo planejamento, raramente exigem o uso de coisas como itens de cura ou o ataque especial realizado pelo leão da Amelia, chamado de Fascinômetro.
Então, se você já tem alguma experiência com o gênero e quer um pouco mais de desafio, fica a recomendação de que jogue diretamente no Difícil (até pela necessidade do troféu por terminar nesse modo), ainda mais que o jogo te permite alterar a dificuldade a qualquer momento. Fique registrado, no entanto, que esse foi o maior incômodo com o jogo já que, em termos de performance ou bugs, o jogo não apresentou nada.
Por fim, cabe dizer que Circus Electrique pode não ser o jogo mais bonito do mundo, mas tem uma identidade visual e estilo bem únicos e digno de nota. A trilha sonora do jogo também ajuda a enriquecer a ambientação toda a parte técnica merece um elogio à parte por conseguir dar vida ao que o jogo se propõe a fazer. A vasta quantidade de classes de personagens também é parte disso, já que todo e qualquer tipo de artista circense que você possa imaginar está representado aqui.
No geral, Circus Electrique é um jogo bem divertido e que consegue executar bem aquilo que ele se propõe a ser. Não espere dele nenhuma aventura épica ou coisa do tipo, mas são algumas boas dezenas de horas de diversão e que te recompensará com sistemas interessantes e uma narrativa bem agradável.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Saber Interactive.
Veredito
Circus Electrique é o tipo de jogo que faz tantas coisas distintas e únicas que acabam compensando por alguns erros e vacilos vistos ao longo dele. Apesar de não entrar em uma lista de “melhores do ano”, merece ser lembrado entre os bons e distintos títulos de 2022.
Circus Electrique is the kind of game that does so many different and unique things that they end up making up for some mistakes and missteps seen throughout it. Despite not figuring in any list of “best of the year”, it deserves to be remembered among the good and unique titles of 2022.
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