Jogos de navinha são, para mim e para muita gente, uma grande paixão herdada desde os primórdios desta nobre arte dos jogos eletrônicos. Grandes exemplos de clássicos eternos não nos faltam, assim como ilustres desconhecidos que buscam um lugar de destaque na história de um gênero que se mistura com a própria história da mídia. Recentemente, tive a oportunidade de falar de alguns deles por aqui, como o resgate histórico em Darius Cozmic Collection; a belíssima e alucinante surpresa de Natsuki Chronicles; e o desafiador Risk System, só para ficar naqueles que mais se assemelham à proposta de Cassiodora, que tem muitos méritos e pode figurar sim dentre os bons destaques desta nova geração.
Uma produção brasileira, cujo desenvolvimento esteve sob a batuta da Void Studios, o game não tem, porém, aeronaves, aviões ou algo parecido. Sim, este é um jogo de navinha sem navinha, por assim dizer. Para quem prefere termos mais técnicos, Cassiodora é um shoot ‘em up (ou shmup para os mais íntimos) por excelência que tem como protagonistas guerreiros medievais alados (cujas asas são uma dádiva concedida por Faramix, o druida), e que desbravam os mais perigosos lugares do mundo com a nobre missão de salvar uma princesa raptada, Cassiodora. Corajosamente, esses três grandes heróis passam por desertos escaldantes, cemitérios amaldiçoados e covis de monstros mitológicos na esperança de trazer a filha do rei sã e salva das mãos de bandidos impiedosos liderados pelo tenebroso Kenzar.
A trama, nos explicada em poucos segundos de introdução, é basicamente uma desculpa pouco inovadora para justificar o que vem adiante: ao longo de sete grandes regiões, o jogador (ou jogadores, já que o game permite partidas cooperativas com até três pessoas diferentes desbravando o mundo ao mesmo tempo) deverá passar por fases que, de modo geral, são divididas quase cartesianamente naquelas onde se avança lateralmente – sempre da esquerda para a direita – atirando e eliminando basicamente tudo o que se mexe; as de fuga, onde devemos nos esquivar da investida de uma grande criatura ou um perigo similar; e lutas contra chefes, que podem estar tanto em movimento, como uma máquina a vapor em trilho, ou ocupando uma região, como árvores gigantes ou minotauros descontentes. Vez ou outra, há algumas exceções, como a resolução de intrincados puzzles, mas de modo geral o game se mantem estável e sólido do começo ao fim.
Logo de cara, o que me fica latente é que Cassiodora se apoia fortemente na herança dos grandes jogos que certamente inspiraram seus criadores, mas ao mesmo tempo evita emulá-los de forma mais direta. Cada fase é curta, por exemplo, quando comparada à outros exemplos, e são compostas por muito menos inimigos. Ainda assim, isso não as torna mais fáceis e, pelo contrário, exige mais precisão já que os adversários são muito mais fortes e rápidos que peões comuns. Cada qual dotado com uma barra de energia própria, todos são resistentes, o que exclui, por exemplo, minions que explodem com um único tiro ou coisas do tipo. Desde o começo da campanha, é necessário que se tenha intensidade, porque qualquer bobeira é suficiente para se perder o controle da situação.
O mesmo pode ser dito das épicas batalhas contra chefões, que se evitam a chuva (quase sempre) de balas, artifício comum para aumentar a dificuldade de games assim, são rápidos, fortes e impetuosos. Cada qual a sua maneira, eles trazem consigo o bom e velho ciclo de ataques, com seus pequenos sinais gráficos e avisos de antecipação, mas que em momento algum parecem só uma forma apelativa de nos atingir. Vale a máxima de aprender a lidar com eles, entender como utilizar as diferentes armas das quais dispomos e encontrar a maneira mais eficiente de desgastá-lo até a vitória. Foram poucos os games do gênero onde senti que estava realmente aprendendo a enfrentá-los em cada uma das minhas derrotas com inteligência, e não só com reações programadas.
Falando de diferentes habilidades, o jogo nos oferece desde o princípio acesso a ataques diferentes baseados em três elementos: o fogo, o relâmpago e o gelo. A grande maioria dos obstáculos pode ser vencida com a utilização de qualquer um deles, e a escolha é basicamente por preferências pessoais, já que cada um está mapeado para um botão de ação. Completam o nosso arsenal um segundo tipo de tiro que pode ser obtido com power-ups a serem coletados ao longo das fases; um ataque corpo-a-corpo para inimigos próximos; um dash que nos livra de ondas de inimigos ou armadilhas de tela cheia; um ataque especial daqueles que limpam a tela; e por fim um comando adicional que será liberado pouco tempo depois do início, que chama um mascote para a aventura.
O uso de poderes elementais, porém, deixa de ser meramente estético em alguns momentos, e há certos tipos de monstros que são vulneráveis a um ataque específico, além de haver dispositivos que devem ser acionados com o poder correspondente. No início, tudo é um pouco mais aberto e permissivo, mas há algumas fases sobretudo do meio para o fim que exigem respostas mais rápidas. A indicação de qual magia utilizar por vezes é explícita, com direito a ícones e tudo mais, e em outras se aproveita de identificação por cores. De modo geral, entretanto, esse recurso é bem menos utilizado em batalhas do que eu esperava, e tirando um ou outro puzzle mais elaborado, eu gostaria de ver formas mais criativas de se alternar por entre eles, como há na luta contra um chefe onde primeiro se congela suas pernas para depois desferir dano em sua cabeça desprotegida.
Aliás, o uso de quebra-cabeças não é das características mais usuais em shmups e eu gostei bastante da presença deles aqui. Alguns são realmente bem instigantes e demandam um pouco mais de atenção, outros são complicados mais pela perspectiva de câmera do que pelo raciocínio exigido. Nenhum deles é especialmente inovador, e certamente reconhecemos várias referências ali (como usar escudos alinhados uns aos outros para refletir um feixe de luz), mas a única coisa a se lamentar é a quantidade limitada desses momentos, bem como a pouca integração destes com as fases regulares, já que nas poucas vezes que estão lá, servem de desafio que antecede e prepara boss fights. A boa notícia é que, se o maior defeito de algo é que queremos mais dele, ele é, por si, um acerto, se é que essa frase faz algum sentido.
Se a jogabilidade fluída, o uso de poderes elementais e o modelo de game design me conquistaram logo de início, mesmo que não sejam todos perfeitos, o aspecto audiovisual demorou um pouco mais para me convencer. De cara, o jogo me pareceu muito algo genérico que já vimos centenas de vezes em produções mobile. O estilo cartunesco tridimensional com texturas de brinquedo que logo me trouxe Clash Royale à memória soava artificial demais, algo que parecia infantilizar o jogo para além do que ele prometia. Contudo, tal sensação foi se dissipando pouco a pouco, principalmente pelo desenho de inimigos, cenários e principalmente os chefões, estes que me conquistaram de modo arrebatador. Todos eles são visualmente impecáveis e cheios de carisma.
A profundidade de campo é o ponto fora da curva, com inimigos muitas vezes em uma segunda camada que parecem chapados na tela e que, pela velocidade da ação, podem mais confundir do que acrescentar na experiência. Essa confusão visual também pode ser prejudicada por movimentos em curva – aquele que simula estar dando uma volta, circulando um motivo principal – e outros artifícios que cansam a visão. Jogar de forma colaborativa é certamente o jeito mais divertido de se aproveitar Cassiodora, mas também pode causar até um cansaço pelo excesso de elementos em tela, que pode resultar em um verdadeiro caos de luzes, poderes e explosões. Eu não abriria mão da força que as cores vibrantes trazem ao jogo, mas cadenciaria ou a velocidade de avanço, ou o quantidade de elementos em tela.
Não há dúvidas de que Cassiodora é um jogo surpreendente, não só pelo fato de trazer aquela loucura imersiva e quase hipnótica dos bons jogos do gênero, mas também por apresentar alguns aspectos menos esperados, como a ambientação que remete a uma fantasia medieval leve, o uso inovador de puzzles em poucas, mas marcantes entradas, momentos de perseguição e outros que fogem do tiroteio puro, e as ótimas batalhas contra chefes que são um verdadeiro deleite. O sistema de customização, por mais básico que seja comprar equipamentos na lojinha e equipá-los a cada novo mundo que se abre, traz um elemento tático interessante, por permitir não só a soma de bons atributos, como a exploração de conjuntos que tem qualidades específicas e assim se adequam melhor ao estilo do jogador.
Com o modo principal durando por volta de 4 a 5 horas – eu gosto de voltar a mundos já vencidos para cumprir objetivos secundários que tenham ficado para trás, e aqui são vários possíveis – o jogo ainda traz um modo extra com mais personagens selecionáveis e minigames desafiadores que certamente aumentam a vida útil do game, principalmente quando estamos acompanhados. Para os adeptos a um verdadeiro desafio, o maior nível de dificuldade muito provavelmente irá satisfazer os mais altos anseios de se frustrar. Para quem joga com crianças ou prefere ir com calma, o modo mais fácil deve gerar boas horas de relaxamento e um quebra-pau cheio de fofurice e mais tranquilidade. Cassiodora tem uma característica muito difícil de se alcançar, que é se adaptar bem a públicos distintos de forma equilibrada sem fazer muita força e ser divertido para qualquer um deles.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela PID Games.
Veredito
Cassiodora consegue ser, ao mesmo tempo, tradicional e inovador; leve e desafiador; intenso e relaxante. Isso resulta em um shmup que se aproveita da temática medieval de uma forma bem equilibrada e surpreendente que pode agradar fãs do gênero e, quem sabe, conquistar novos adeptos para ele.
Cassiodora manages to be both traditional and innovative; light and challenging; intense and relaxing. This results in a shmup that takes advantage of the medieval theme in a well-balanced and surprising way that can please fans of the genre and even attract new fans to it.
[/lightweight-accordion]