Em tempos onde as coisas estão ficando sérias demais, às vezes tudo o que precisamos é dar uma volta por aí destruindo um bando de demônios, cultistas e entidades oriundas das profundezas do inferno. E se esta definição poderia nos levar a lugares óbvios, com Doom ou Quake, ela também pode se encaixar perfeitamente para Bloodhound, um típico boomer shooter que se apropria de uma estética (em todos os seus aspectos semânticos) muito peculiar de fácil reconhecimento e conforto para veteranos do gênero, enquanto tenta dialogar com uma nova geração sedenta por este subgênero nostálgico que parece em plena ascensão.
Como membro da Ordem dos Guardiões dos Portais, uma organização inglória destinada a proteger o mundo pelas sombras, o herói da nossa história segue a cartilha de fazer mais do que falar. Na verdade, ele segue a linha do protagonista silencioso que atira em tudo aquilo que vê pela frente, no melhor estilo “atire primeiro, nunca pergunte”, porque no que se refere ao contexto narrativo, há muito pouco o que se extrair do game para além da boa e velha luta entre o menos mal, dotado de um arsenal caprichado e com pouca disposição para negociação, e o mal verdadeiro, aqui personificado pelas hordas do chamado Culto de Astarô (ou Astharot, no original), que invade o plano terreno por passagens espalhadas por todos os lados, prontos para espalhar as trevas inomináveis pelo mundo.
O maior desenvolvimento da história, aliás, se dá por poucos e vagos quadrinhos na abertura, somados a um grande diálogo pós batalha final, que mais se parece com a promessa de uma continuação do que necessariamente uma justificativa para o que acabou de acontecer ou algo assim. Para quem espera se envolver com uma trama bem engendrada, este definitivamente não é o lugar para isso. Por outro lado, o que falta em narrativa sobra em ambientação, uma mistura potente entre os clássicos jogos de tiro em primeira pessoa e filmes de terror típicos dos anos 1990. Com toques de paranoia misturada a uma fantasia sombria perturbadora, o game parece especialmente desenhado para um público sedento por conteúdos mais viscerais e (quase) sem censura.
Os primeiros instantes da jornada dão a dinâmica que se pode esperar para o que vem pela frente ao longo de uma campanha que dura não mais que umas quatro ou cinco horas para aqueles que buscam encontrar todos os segredos nem tão escondidos assim do game. De posse de um arsenal respeitável que se inicia com uma machete sagrada e um potente revolver, o jogador deverá atirar com o gatilho direito sem a possibilidade (ou necessidade) de uma mira especializada, como é esperado de algo inspirado nos clássicos old-school já citados. Ao gatilho da esquerda, resta implementar uma forma complementar daquela arma. Algumas, por exemplo, podem se duplicar, enquanto outras, como a motosserra lança-chamas, usam um segundo tipo de munição.
Bloodhound é, em essência, um jogo rápido e dinâmico, marcado por momentos de combate em bolsões conectados por corredores, de desenho essencialmente linear. Há cenários um pouco mais labirínticos sobretudo da metade para o final da jornada, exigindo a busca mais detalhada por chaves que dão acesso a portais trancados, mas o modelo de condução do jogo é claramente inspirado por um padrão de seguir em frente sem olhar para o que já passou. Dito isso, o level design das fases tem seus pontos menos inspirados e confusos, mas na maioria do tempo funciona para o que propõe, com picos surpreendentes que abusam das mecânicas com alavancas que abrem passagens e artifícios baratos do tipo.
O combate em si é, como não poderia deixar de ser, o quesito mais divertido do game, apresentando uma série de inimigos com comportamentos marcados, mas ainda assim bem desafiadores quando em bandos. De cavaleiros alados a brutamontes com chifres, de bebês encapetados a sujeitos encapuzados munidos com uma shotgun, são toneladas de criaturas surgindo de todos os lados, por vezes nos esperando em curvas ocultas, e em outras surgindo em arenas fechadas. Se não há granadas e outros equipamentos de suporte, é possível utilizar de artifícios limitados, como um mecanismo de câmera lenta, a bala dourada que se traduz em um pente de balas infinito que evita o tempo de recarga; e uma seringa com boost de HP por alguns segundos, todos power-ups que, quando bem utilizados, ajudam a sair de algumas enrascadas complicadas, sobretudo nas lutas contra chefões.
Aliás, a marca desses FPS retrô é a escalada íngreme de dificuldade, e aqui não é diferente. A regra é massacrar o que surgir pela frente o mais rápido e mais preciso possível, mas o descuido inconsequente e a ação intempestiva são atalhos rápidos para o fracasso. Saber lidar com o ambiente é um requisito importante para controlar hordas e minimizar danos, porque nosso personagem não é dos mais resistentes, mesmo se protegendo com peças de armaduras espalhadas aqui e ali. Cair é normal, e aprender com o fracasso é a melhor forma de seguir adiante com resiliência e cuidado. A boa notícia é que há um salvamento automático bastante generoso em estabelecer checkpoints próximos (ainda que inconstantes), e o salvamento manual pode ser feito a qualquer hora, desde que não em batalha.
Para superar o desafio crescente, o jogo oferece uma diversidade de armas suficiente que atende a tudo o que pode se esperar de um shooter assim. Se o revolver parece não ser suficiente sequer para o primeiro estágio, os demais armamentos são encontrados espalhados pelo caminho, e a exploração cuidadosa pode antecipar o nosso primeiro encontro com várias delas. O equilíbrio, entretanto, é bastante questionável, com algumas delas evidentemente mais proveitosas que outras. A shotgun, minha favorita do gênero, oferece menos impacto do que estamos acostumados, e a sua falta de alcance e precisão parecem descompensados. Por outro lado, a primeira metralhadora se mantém útil do começo ao fim do jogo, e se conseguirmos gerenciar bem a munição, não vai faltar bala pra monstro vagabundo.
Com tantos inimigos prontos para serem enviados de volta para o buraco de onde vieram e um arsenal recheado (mesmo que carente de uma arma mais icônica e diferenciada), a variedade de cenários é o maior respiro de originalidade para toda a jornada. Cavernas escuras, florestas macabras, instalações em ruínas, mansões abandonadas e outras ambientações arquetípicas dão o tom da obra, sempre com aquela atmosfera podre e corrompida de um pessimismo permanente. Com uma beleza peculiar que se apropria de uma textura de baixa definição, Bloodhound não esconde suas homenagens ao pixel borrado, mas parece se apoiar demais em um pretenso saudosismo para esconder algumas de suas maiores falhas.
Com cenários pouco inspirados e, na maior parte do tempo, vazios, o jogo jamais se apropria de verdade do local onde se estabelece, e tanto faz estar em um castelo medieval ou um campo de trigo, porque a nossa relação com o que está em volta muda muito pouco. O modelo de colisão também não ajuda, e passar por uma moita não difere de um bloco de concreto, inclusive para quem procura pontos estratégicos de cobertura contra projéteis dos adversários. Promessas não são cumpridas, como por exemplo organismos macabros tomando o centro das atenções que, no final, não servem para nada, e no fundo, todas as soluções visuais são mero verniz para a sua pouca relevância.
A modelagem das criaturas do jogo, por outro lado, tem bons referenciais e quer ser mais ousado, mesmo que a escolha por censurar a sensualidade por padrão nos consoles, inclusive no menu principal, seja estanha e, de certo modo, brega. Para um jogo com a temática adulta e violência gore explícita, parece que Bloodhound tem vergonha, as vezes, de abraçar a sua bizarrice nonsense por completo. Se a temática tem os seus espinhos ao lidar com o sagrado e com o profano quase que de forma inconsequente, suas soluções visuais jamais ultrapassam a linha do que já foi feito antes, quase que se limitando a não forçar demais os limites, o que é uma pena, já que o potencial disruptivo aqui seria virtualmente infinito.
Outro aspecto que quase chega lá é o sonoro. Os efeitos exagerados, ruídos típicos e as poucas falas canastronas são coadjuvantes com uma trilha musical carregada em um heavy metal deliciosamente agressivo, daqueles que os mais velhos de nós colocávamos no micro system no volume máximo enquanto espalhava sangue digital para todos os lados em jogos como Blood e Duke Nukem. O grande porém aqui é que em uma escolha artística no mínimo questionável, a música pesada liga só em momentos com inimigos atuantes e silencia nos intervalos entre uma onda e outra. Ou seja, quando estamos em combate, o som sobe e a adrenalina vai junto, mas quando limpamos a área, tudo volta a uma ambiência mais soturna e misteriosa. Intercalar entre ambos os momentos o tempo todo acaba tendo um efeito contrário ao pretendido, nos arrancando a imersão o tempo todo. Uma pena.
Certas escolhas da produção, aliás, parecem seguir uma proposta de controle maior do raio de ação do jogador, como as restrições na maioria das passagens povoadas por criaturas inimigas. As amarras com geralmente três chaves por nível também se tornam repetitivas e se mostram previsíveis, nos obrigando a explorar o cenário sempre como o planejado pelos desenvolvedores e não necessariamente por formas de nossa escolha. O próprio uso do salto parece esquecido por longas passagens, limitando-se a situações muito pontuais, o que acaba sendo incoerente, não porque jogos desta natureza dependam de missões baseadas em plataforma ou coisas semelhantes, mas uma vez que a mecânica é implementada, faria sentido explorá-la de forma mais criativa do que dois ou três trechos sobre pilastras.
Bloodhound tem, portanto, seus detalhes a melhorar, mas felizmente suas qualidades superam os pequenos problemas. Longe de ser sutil, o game preza por uma diversão instantânea, mesmo que para isso tenha que tomar alguns atalhos pouco ortodoxos. Não há rodeios, por exemplo, em encontrar uma nova arma, muito menos em apresentar novos inimigos e coisas do tipo. Não fosse aquela antessala providencial com recargas generosas de munição e armadura, sequer os chefes seriam cerimonialmente apresentados, eles simplesmente brotam do chão sem aviso. Direto e extremamente objetivo, o jogo deixa, contudo, de valorizar suas maiores virtudes em favor da ação desavergonhada do começo ao fim. Talvez seja exatamente isso que, no final das contas, seu público está procurando.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Kruger & Flint Productions.
Veredito
Consciente de seu desdém pela narrativa, Bloodhound é tudo o que os fãs de um bom boomer shooter podem esperar, mas não vai muito além disso. Com algumas amarras e escolhas de design controversas, o jogo parece não ter chegado ao seu máximo, o que não sobrepõe a solidez de suas mecânicas extremamente objetivas.
Aware of its disdain for narrative, Bloodhound is everything that fans of a good boomer shooter could hope for, but it doesn’t go much further than that. With some constraints and controversial design choices, the game feels like it hasn’t reached its peak, which doesn’t override the solidity of its extremely objective mechanics.
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