Black Book, convenhamos, não é dos nomes para jogos (ou qualquer outra mídia) mais inovadores de todos os tempos, mas temos que concordar também que é um termo que diz muita coisa do que se pode esperar dele. Magia sombria, eventos sobrenaturais, criaturas das trevas, bruxaria… todos elementos fundamentais nesse novo título desenvolvido pelo estúdio russo Morteshka e publicado pela HypeTrain Digital. Configurado com um RPG por turnos com elementos intensos de cardgame e narrativas interativas, este game oferece algumas camadas inesperadas em termos de desenvolvimento de história e possibilidades de ação que vão para além do seu sistema de combate.
Localizado em uma região da Rússia pré-revolução, chamada de Cherdyn, ainda no final do século XIX (mais precisamente em 1879), Black Book nos coloca na pele de Vasilisa, uma jovem mulher recém-viúva que, ao perder o marido em um ato de suicídio, precisa encontrar uma forma de salvar sua alma do abismo do inferno e, mesmo a contragosto, aceita ser iniciada no mundo da bruxaria por seu mentor, o Velho Egor. Somos então apresentados ao objeto que dá nome ao jogo, um artefato lacrado por sete selos mágicos. O que se segue então é a jornada da protagonista para abri-los, um a um, e assim finalmente ter acesso ao conhecimento mágico que a permitirá salvar seu amado.
Sem tanta pressa, somos então introduzidos a esse novo mundo e todas as possibilidades que ele nos traz enquanto jogadores. O primeiro sistema ao qual somos apresentados (como pode ser conferido em nosso vídeo do gameplay da primeira passagem do game no topo desta análise) é o de combate contra demônios que se utiliza do tradicional modelo por turnos de alguns dos mais clássicos RPGs da história. Contudo, não selecionamos habilidades de uma lista fixa ou algo do tipo, e sim encantamentos do livro de magias que recebemos de nosso mestre. Esse formato é muito próximo de cardgames, com cada página funcionando como uma carta, e elas são divididas, explicando de forma bastante rasa e objetiva, entre páginas escuras para ataque e claras para defesa, e, como não poderia deixar de ser, vamos aumentando, refinando e melhorando nosso deck conforme avançamos pelos sete níveis.
Claro que à medida em que vamos ganhando experiência e aprendendo novos encantamentos, esses atributos vão se tornando mais complexos, e se torna ainda mais importante estudar e compreender todos os efeitos possíveis seja nos adversários, seja em nós mesmos. O objetivo, como não poderia ser, é zerar os pontos de vida de todos os inimigos antes que ele(s) faça(m) o mesmo conosco. Simples assim, pelo menos nos primeiros enfrentamentos. Mais adiante, aprendemos novos contornos que influenciam direta ou indiretamente no formato. O primeiro deles é que é possível utilizar itens de suporte que são coletados (na maioria das vezes, ervas espalhadas pelos poucos ambientes exploráveis) uma vez por rodada. Também haverá momentos onde estaremos acompanhados com algum outro aliado que poderá realizar um movimento complementar, com rodadas de cooldown. Alguns aspectos especiais podem trazer variações na quantidade de cartas que se pode usar em cada rodada, e há ainda puzzles com uma quantidade máxima de jogadas para se superar o adversário.
Essa, porém, é só uma das ações que deverão ser realizadas pelo jogador. A dinâmica do game é bastante cíclica: a nossa base é o orfanato onde vivemos e de lá partimos para objetivos que, quando alcançados, nos trazem de volta a esse espaço, praticamente um hub seguro para finalizar a última ação, colher os resultados e preparar a próxima investida. Lá, também recebemos orientações do mentor e temos outras atividades complementares. A primeira delas, obrigatória antes de fazer incursões, é quando aprendemos a atender pessoas do vilarejo que nos procuram enquanto conselheiros, estudiosos e pessoas da prática para assuntos sobrenaturais, mais ou menos uma versão old school do casal Warren, da cine-série Invocação do Mal. É nesse momento que conheceremos algumas pessoas que moram por perto, e alguns deles podem, em algum momento, se envolverem mais intimamente com a nossa missão.
Em alguns casos, é importante compreender os sinais relatados pelas pessoas para interpretá-los corretamente e diagnosticar o problema com exatidão. Um barulho a noite pode ser, por exemplo, um espírito maligno e atormentado, ou só algum desocupado pregando uma peça em um fazendeiro. Entender e acertar nessa conclusão resulta em experiência e, por vezes, missões secundárias com outros prêmios mais palpáveis, como novos encantamentos ou itens mágicos. Errar, porém, não é tão ruim assim, já que ainda somos aprendizes, e o Velho Egor está lá para ajudar na correção. Toda essa dinâmica se dá por meio de diálogos interativos onde podemos conferir um pouco mais do belo trabalho artístico da produção, mas infelizmente é onde a (não) localização para o nosso idioma faz mais falta. Mesmo que se entenda o contexto, os detalhes mudam muito da percepção e uma palavrinha que passa batida já nos incita ao erro.
Outra mecânica que aprenderemos ainda no primeiro ato da campanha será um jogo de baralho mais puro e fiel, por assim dizer, que pode ser utilizado tanto como um mini game à parte, para passar o tempo (guardadas as devidas proporções, mais ou menos como funciona o Gwent em The Witcher III) quanto um artifício para resolver problemas em certas missões. É um jogo com regras próprias, um tanto quanto confusas no começo, e para tal é essencial estar atento ao tutorial inicial que ensina as regras de como se jogar. Mais adiante essa opção se torna uma saída importante para evitar alguns conflitos mais complicados, mas confesso que é uma mecânica que me pareceu muito deslocada do conjunto, uma adição que acaba conflitando, em termos de aprendizagem e especialização, com o cerne do jogo. Depois de algumas partidas, evitei sempre que possível jogar esse carteado que, além de tudo, compromete o ritmo do todo.
Completando as funcionalidades do jogo, como qualquer bom RPG, o microgerenciamento de recursos quando em intervalo entre missões é necessário, ainda que aconteça por meio de menus um pouco mais complicados do que deveriam, até pela diagramação um tanto quanto diferente do que estamos acostumados. Uma aba trata de habilidades especiais permanentes que são liberadas a partir de pontos de experiência, algo já bastante tradicional (e quase obrigatório) em dias atuais. Há também uma funcionalidade onde alguns demônios que recrutamos ficam disponíveis para realizar missões paralelas, para as quais basicamente os enviamos e, passados alguns dias, eles retornam com os espólios da tarefa. É sempre bom manter um demônio ocupado porque, bem, se eles estiverem trabalhando, não terão tempo para atormentar ninguém e, além disso, todo dinheiro extra é muito bem-vindo para que possamos customizar bem nosso arsenal de magias e itens de suporte.
Por fim, mas não menos importante, há alguns itens que podemos comprar ou ganhar como recompensa em certas missões que podem ser equipados para ganharmos alguns benefícios, como aumentar o efeito de um tipo de encantamento, ou melhorar um atributo enquanto ativo, ou algo do tipo. Relíquias são relativamente raras nesse mundo, e ainda mais caras para se comprar em igrejas ou outros comerciantes, e merecem uma certa atenção. Em desafios e batalhas mais apertadas, são elementos que fazem muita diferença, e isso vale para todos esses aspectos dos bastidores. Se as batalhas são a ponta da lança e os momentos centrais do gameplay, todo o resto é essencial para nos dar uma estrutura firme para não enroscar em um ou outro encosto.
Aliás, uma vez que tenhamos nos organizado bem em nossa base, atendido todos os moradores necessitados e conversado com nossos aliados, chega o momento onde saímos para realizar a tarefa central da vez, que normalmente se resume a uma travessia até o local desejado, cheio de pontos de checagem obrigatórios e secundários no caminho. Abre-se um mapa e determinamos para onde vamos. O contexto é então dado por um narrador, e cada localidade tem sua característica: pode ser só um local para comprar itens novos, ou uma casinha abandonada onde conseguimos melhorias, um local atormentado por uma entidade sobrenatural, ou ainda uma fogueira para cantarmos uma canção tradicional com bons companheiros. Isso significa que pode haver ou não diálogos com escolhas, ações objetivas ou batalhas nesses locais, o que sempre traz algo de novo para o trajeto.
Normalmente, só o destino final de cada viagem tem momentos de exploração, e aí o jogo permite que se caminhe, se procure por pontos de interesse, se colete itens escondidos, além de poder desenvolver conversas com outros NPCs e coisas assim. São momentos pouco frequentes e por isso mesmo especiais para quebrar a dinâmica diálogo-combate que permeia a maior parcela do gameplay. É uma pena que a grande maioria dos cenários seja bem limitada em termos de espaço e do que fazer, mas nesse caso, faz sentido que não seja algo que se arraste, como em algumas passagens dos jogos da Telltale, por exemplo, o que garante mais ritmo a um jogo já tão cadenciado e, por vezes, burocrático. Ainda que eu, particularmente, tivesse interesse em conhecer mais daquele universo e quisesse mais tempo e espaços amplos para exploração, compreendo que um exagero aqui poderia fugir dos objetivos da obra, algo que já critiquei no jogo de cartas.
Parte dessa vontade de ver mais vem da belíssima construção estética de Black Book, com um mundo ora tridimensional no melhor estilo low poly com um leve cel-shading, ora com ilustrações que parecem desenhadas a mão. É um produção artística que não se furta das cores intensas, mas que mantém um tom mais sombrio quase que o tempo todo. O maior deslize, como já adiantado, fica por conta de uma interface de usuário um pouco pesada demais, com muitas informações e nem sempre o melhor desenho responsivo. Nada que seja grave, claro, e só precisa de um pouco mais de tempo para nos acostumarmos. Como conjunto, é uma produção diversa, polida, sem muitos enroscos ou problemas técnicos. Todavia, senti falta, durante alguns combates, de algum tipo de sinalização melhor para o que está acontecendo, de um feedback que nos ajude a entender o que se fez de certo e, principalmente, de errado.
Black Book, mesmo ao tratar de uma aventura fantástica bastante calcada em narrativas tradicionais e de traçar muitos paralelos com a tão conhecida jornada do herói, não é um jogo de fantasia dos mais tradicionais, contudo. Sim, temos uma protagonista que luta pela alma da pessoa que ama e que para isso precisa enfrentar perigos e demônios, mas essa não é, definitivamente, uma história do bem contra o mal, contando com um sistema de moralidade – literalmente um contador de pequenos pecados, por assim dizer – que foge do maniqueísmo barato ou mesmo daqueles sistemas de karma onde você decide pelo comportamento, não pelas consequências. Nossa heroína, aqui, está o tempo todo no limiar entre o que acredita e o que precisa fazer, e nossas escolhas (mesmo algumas que não damos tanta importância naquele momento) trazem consequências importantes – as vezes, inesperadas e improváveis – e algumas ajudam a moldar o final do jogo.
A instabilidade do suporte ao jogador também transbordam para o jogo, e alguns sistemas acabam ficando tão confusos que algumas passagens acabam parecendo muito mais difíceis do que outras não só por exigirem um nível de habilidade muito mais preciso do que cobrava antes, mas principalmente porque nem sempre sabemos onde estamos falhando e como resolver. Não é raro que estejamos avançando com tranquilidade e em algum ponto acabe tropeçando e enroscando sem saber como seguir. Exatamente por isso, por mais detalhado e, as vezes, cansativo que seja acompanhar tutoriais e guias, eles podem ser fundamentais em pontos muito adiante. A dica é: mesmo que não acredite não precisar, inicialmente, de tantas informações, aprenda bem cada sistema do jogo e cada efeito dos novos encantamentos. Mesmo assim, haverá passagens onde o bom e velho modo empírico de se aprender pelo erro será necessário, e que bom que o game não economiza nos checkpoints de carregamento quase imediato.
Black Book é, portanto, um jogo, de várias maneiras, bastante surpreendente e pouco comum, ainda que seja um verdadeiro amálgama de outras coisas que já vimos antes. É um RPG por turnos, que usa mecânicas de cardgames e que se desenvolve narrativamente com um bom visual novel, com passagens pontuais de exploração e gerenciamento de recursos. Talvez exagere um pouco ao adicionar mecânicas periféricas, como um outro jogo de cartas e a gestão de capangas demoníacos, mas é louvável que a produção tenha se proposto a ser muito mais do que uma ideia e, na média, tem mais acertos do que tropeços. Se o título parte do clichê e a premissa de uma bruxa aprendiz que precisa lidar com um livro ancestral (que lembra até mesmo a Feiticeira Escarlate da minisérie WandaVision, da Marvel/Disney), o resultado final mostra que dá pra ser algo muito diferente do que estávamos esperando e do que estamos acostumados. Que bom!
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela HypeTrain Digital.
Veredito
Black Book oferece uma mistura bastante coesa entre combates por turnos dos clássicos RPGs e um sistema de composição de deck característico de cardgames. Um modelo que se mistura a uma boa narrativa cheia de possibilidades e um estilo artístico bem articulado, ainda que o suporte ao jogador e mecânicas complementares pareçam complicar demais a solidez do conjunto.
Black Book offers a very cohesive mix of turn-based combat from classic RPGs and a deck composition system characteristic of cardgames. A model that mixes with a good narrative full of possibilities and a well-articulated artistic style, although the player support and complementary mechanics seem to complicate things too much.
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