O gênero de exploração de masmorras com pitadas de combate e resolução de puzzles, hoje bastante estabelecido como metroidvania, tem ganho muito destaque e alguns grandes jogos, sobretudo de origem independente, onde a criatividade e inventividade acabam sendo fundamentais para que uma produção conquiste destaque e consiga mostrar seu diferencial. Certamente, a última década nos ofereceu games memoráveis, e se você é fã do modelo ou, ao menos, um entusiasta interessado, deve ter na ponta da língua ao menos três belos exemplos que realmente honram as origens que deram nome ao formato e, depois de algumas (muitas) horas diante Batbarian: Testament of the Primordials, posso dizer que não preciso nem fazer esforço para encaixá-lo na minha lista dos melhores.
O game basicamente conta a jornada de uma (ou um) guerreira bárbara e seu fiel parceiro, um morcego chamado Pip, pelas entranhas de uma masmorra das mais assustadoras e misteriosas. Sim, uma premissa que se apropria da temática nórdica, tão em alta nesse momento da história dos videogames, e resolve subverter expectativas ao colocar uma dupla improvável para explorar e conseguir sobreviver a um mundo cheio de criaturas bizarras, armadilhas mortais e desafios que só serão possíveis de se vencer a partir da colaboração e da utilização criativa das melhores características de cada um.
Como você já deve imaginar, Pip não é um mascote comum. Dotado de habilidades mágicas, ele tem uma espécie de aura reluzente emanando de seu corpo, que não demora muito para entendermos que serve para coisas muito além de só iluminar os caminhos obscuros do submundo onde caímos. Sua iluminação, quase que ironicamente, muitas vezes é aquilo que nos permite enxergar no escuro absoluto, descobrindo buracos, armadilhas e outros perigos, além de revelar novos caminhos e recursos valiosos. Diegeticamente, essa relação vai ser melhor explicada por meio de algumas cenas de flashback a medida em que avançamos na aventura, mas na prática, as mecânicas deste inusitado companheiro é a chave para que Batbarian: Testament of the Primordials mostre um potencial incrível de apresentar enrascadas e dar subsídios para soluções nem sempre ortodoxas por parte do jogador.
Toda essa construção narrativa é apresentada via caixas de diálogo exclusivamente por texto (localizado para diversos idiomas, mas infelizmente o português brasileiro não é um deles) e há pontos onde escolhemos o que responder que muda consideravelmente a personalidade da protagonista e até a nossa relação com NPCs durante a jogatina. Podemos ser gentis e sempre buscar evitar o conflito, podemos ser agressivos e durões ou ainda encontrar soluções sarcásticas e bem humoradas. O roteiro é um acerto grandioso, sobretudo quando se considera o estilo do jogo, com falas afiadas e muito bem escritas. Essas conversas, que poderiam muito bem cair no clichê monótono como acontece em algumas produções de maior orçamento, são divertidíssimas e um verdadeiro deleite não só para entender o que está acontecendo, mas até para moldar e acrescentar mais camadas à nossa heroína.
Como qualquer adestrador que se preze, precisamos compreender que para que a parceria funcione, há uma relação de troca. Pip pode acionar lanternas, espantar criaturas, ajudar no combate e algumas outras funções menos óbvias, mas sempre motivado por comida. Se em um primeiro momento temos um estoque generoso e ilimitado de uma fruta que atrai o morcego para onde as arremessemos – basicamente nosso amigo vai até onde a fruta caiu e retorna para nosso lado imediatamente depois, como um cão que busca um graveto – mais tarde vamos encontrando outras variantes que possibilitam comportamentos diferentes, como permanecer por um tempo distante ou até se irritar e golpear adversários. Essas frutas especiais tem estoque bem limitado e são raras de se encontrar (e caras de se comprar), então saber quando e como usa-las com precisão é essencial.
Essas guloseimas de morcego não são os únicos objetos arremessáveis do jogo, contudo. É possível utilizar pedras para acionar alavancas ou ainda se aproveitar de habilidades de outros companheiros eventuais para ações mais específicas, como a magia de um feiticeiro que abre portais ou bombas de um goblin que, bem, explodem coisas. Todas essas ferramentas são fundamentais para que consigamos avançar por entre os quadrantes que compõem esse grande mosaico que forma o abismo onde nos metemos, algumas porque nos garantem uma vitória no combate direto ou indireto contra inimigos mortais, outras porque nos possibilitam chegar a plataformas e portas difíceis de se chegar.
Esse formato, já bastante conhecido, é daqueles onde cada pedaço do ambiente é um quadro, um bloco com entradas e saídas, cada qual com sua construção e design composto por inimigos, obstáculos e recursos. Alguns desses aspectos tem acesso condicionado a habilidades específicas, então não raro é o retorno a lugares já visitados para que se alcance novas passagens utilizando uma nova habilidade ou item. Neste aspecto, o Batbarian: Testament of the Primordials basicamente segue a cartilha do gênero a risca e qualquer pessoa que já tenha jogado algo parecido se sentirá confortável nesta estruturação dos níveis. Com alguns quadrantes especiais, seja por serem áreas de salvamento ou por possibilitarem o comércio, o mundo do game vai se abrindo conforme se avança e, em alguns casos, quando se conquista um fragmento do mapa.
Com o controle em mãos, o jogo é bastante simples: temos o comando de ataque simples e o de saltar. Com o analógico direito controlamos a direção e o arremesso de pedras e iscas para nosso amigo, e mais tarde teremos um botão para dosar a velocidade da movimentação. Ora ou outra, há o uso de botões para um acompanhante, mas esse é um comando bastante raro quando se considera o todo da campanha. Batbarian: Testament of the Primordials não é difícil de se aprender na teoria. A prática, por outro lado, demanda um certo treino, boas doses de resiliência e, principalmente, capacidade de se adaptar ao resultado de alguns saltos imprecisos.
Por sorte – ou competência no design, o que é mais provável – há bastante tempo para aprender e se acostumar com distâncias, ajustes e outras variáveis nos saltos, graças a uma curva de aprendizagem bastante suave. As primeiras horas do jogo não tem pressa em apresentar plataformas que exigem pouca precisão e velocidade. Há puzzles mais simples, inimigos fáceis e mais espaço para tentativa e erro. Isso não elimina o fato de que os comandos poderiam ser mais dinâmicos e acessíveis, porém. Se os saltos são tensos, o sistema de combate também não ajuda tanto assim. Golpear inimigos enquanto no ar, então, é o acúmulo de irritações desnecessárias.
Conforme a aventura se afunila e alcançamos níveis mais tensos, a coisa muda, adversários vão ficando resistentes aos nossos ataques mais comuns e armadilhas móveis vão se tornando regra, não exceção. Quando chegamos ao instantes mais agudos, é bastante provável que estejamos calejados, prontos para aquilo. Ainda que seja intenso e exigente, contudo, o jogo jamais cobra aquilo que não ensinou, mas fica uma sensação que falta um refinamento, um ajuste mais otimizado da precisão, do controle no ar, no alcance dos golpes, e do conjunto. O peso do personagem acaba não sendo algo com que se acostume, e tanto o golpe simples como o carregado (no melhor estilo Megaman) parecem inconstantes em termos de alcance. Por fim, poder direcionar golpes para baixo ou para cima também poderia fazer bem ao jogo, não para facilitar, mas para aproveitar melhor a verticalidade que é parte inerente do projeto.
O desenho de ambientes, por sua vez, tem lá algumas inconsistências e mistérios que pouco ajudam o jogador. Algumas portas e passagens secretas não deixam muito claro o que fazer, e principalmente onde fazer. Além disso, certos mecanismos que acionamos não deixam claro qual o resultado. Isso significa que vez ou outra temos que procurar por mais tempo do que gostaríamos o que abrimos com uma alavanca, ou desistir de algum trecho confiando que a solução para ele realmente não está a disposição naquele momento. Com vários caminhos possíveis, abrir mão daquele que escolhemos é uma escolha de fé de que ele se revelará na hora certa. É parte da experiência de se estar perdido e precisar confiar em um morcego, mas não deixa de ser um elemento a mais de dificuldade, e a falta de qualquer sinalização no mapa geral também não é de grande ajuda.
A maior serventia do mapa é pontuar onde estão as fogueiras onde salvamos o jogo – depois de algum tempo, ganhamos a capacidade de também realizar o teletransporte, que na prática é aquele bom e velho sistema de viagem rápida – mas, por outro lado, a construção visual do ambiente é competente ao explorar a diversidade de construção, iluminação e até mesmo textura de cenários cavernosos, algo que transparece bastante criatividade, que é fundamental para que possamos passar bastante tempo atravessando as dezenas de quadrantes sem parecer que são todos iguais. O uso de uma estética pixel art que, no geral, nos remete a games da geração 8 bits com algumas belas concessões contemporâneas, compreende bem suas limitações e potencialidades, e Batbarian: Testament of the Primordials consegue se destacar também dentre os jogos que fazem a opção pela estética nostálgica tão explorada por realizadores indie.
Se o trabalho de iluminação dinâmica é parte do jogo por motivos óbvios, a animação e a composição de texturas não fica atrás no que transparece o cuidado artístico da obra. Abusando de tons cinza e marrom para os cenários, e de cores mais sóbrias para grande parte dos personagens principais e secundários, o uso pontual da saturação em momentos chave é bem dosado, sem exageros espalhafatosos, e quase sempre carrega um sentido simbólico narrativo bastante acentuado. A cenografia não é tão abundante assim, todavia, e os poucos objetos de cena, de porcelanas a estantes de livro, se destacam menos do que poderiam. São detalhes em um conjunto bem ajustado, claro, e a direção de arte do projeto se garante em um patamar acima da média.
Talvez o ponto que menos agrade esteja no design dos inimigos, que não conseguem transparecer a mesma simpatia nos protagonistas, e alguns, quando juntos, nem parecem pertencer ao mesmo universo. Do lado oposto, a interface de usuário é um acerto completo, desde a escolha da tipografia que não cai no senso comum até as telas de suporte que são bastante simples e, ao mesmo tempo, informam tudo o que pretendem sem muitas frescuras ou exageros. O HUD é discreto, porém informativo, e mesmo textos que podem ser lidos em paredes e outros pontos de acesso funcionam para contextualizar e expandir a percepção do mundo do game.
Já a construção sonora é outro grande acerto, com canções que abusam dos instrumentos de cordas e teclado, com toadas que mesclam um estilo medieval tradicional com toques mais modernos. Tudo mixado com efeitos e ruídos sintetizados que acompanham o estilo visual retrô, mas que ao mesmo tempo sabem lidar bem com a dimensionalidade, e até um modelo mais avançado de espacialidade. Os sons que substituem um trabalho de voz, por outro lado, parecem ser uma escolha um tanto quanto estranha e destoam das sutilezas de outros aspectos de uma sonorização bastante complexa para os parâmetros da produção.
Batbarian: Testament of the Primordials é, sem dúvidas, uma obra que merece destaque dentro e fora da bolha dos metroidvanias por todas estas qualidades, uma vez que oferece solidez técnica e estética, com um modelo de jogabilidade com algumas excentricidades que demandam cuidado, e um mundo bastante intenso e, as vezes, cruel. Se o desafio é inegavelmente elevado, e o jogo não conta com escolha de nível de dificuldade, há uma série de opções atenuantes passíveis de serem acionadas via menu principal, onde o jogador pode, de forma pontual, ligar uma recuperação maior e mais rápida da barra de energia, slow motion em certas passagens, maior dano, defesa mais eficiente, dentre outras. Acessibilidade que possibilita moldar o jogo ao estilo do jogador.
Pequenas trapaças a parte, o maior desafio do jogo é conseguir lidar com as dificuldades impostas partindo do princípio da melhoria pela prática. Inevitavelmente, o jogador vai aprender pela experiência empírica, mesmo que em alguns momentos isso signifique abandonar uma batalha no meio, ou que se decida que há o que se melhorar antes de encarar um chefão daqueles tão grandes quanto a própria caverna. Com um sistema de nível bastante curioso, onde não subimos automaticamente nossos atributos, e sim, por um simplório sistema de roleta, decidimos o que melhorar mais, temos a sensação contínua de que estamos sempre nos aprimorando.
Batbarian: Testament of the Primordials parte de um princípio diferenciado – a amizade impensável de uma guerreira com um morcego – para uma experiência que consegue equilibrar o simples e o sofisticado de forma muito competente em todos os aspectos. Quando se ultrapassa um primeiro olhar desconfiado de que poderia ser só mais um metroidvania retrô, há de se reconhecer qualidades bastante agradáveis, criativas e inovadoras dentro de um gênero já bem explorado. Há carisma, há envolvimento, há um universo singelo e grandioso a se desvendar e o game, definitivamente, tem potencial para figurar dentre as mais surpreendentes produções do gênero.
Jogo analisado no PS5 com com código fornecido pela DANGEN Entertainment.
Veredito
Batbarian: Testament of the Primordials é tudo o que se espera de um bom metroidvania e conta com um mundo rico a se explorar, ótimo texto e belas composições audiovisuais. Se alguns aspectos da jogabilidade parecem precisar de um pouco mais de polimento, a experiência, como um todo, é desafiadora e instigante, e a relação de uma guerreira com um morcego, se antes parecia improvável, agora faz todo sentido.
Batbarian: Testament of the Primordials is everything you’d expect from a good metroidvania and has a rich world to explore, great text and beautiful audiovisual compositions. If some aspects of the gameplay seem to need a little more polishing, the overall experience is challenging and thought-provoking, and a warrior’s relationship with a bat, if it once seemed unlikely, now makes perfect sense.
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