Há quem acredite que a profunda imersão, aquela completa e incondicional, que nos guia por um universo totalmente distinto da nossa vida cotidiana, se torna mais possível com o aprimoramento de técnicas e tecnologias de representação destes mundos fantásticos. Johan Huizinga, em seu brilhante “Homo Ludens” de 1938, publicado muito antes de qualquer previsão acerca da revolução digital pela qual o mundo passa nestas últimas décadas, já ensaiara o conceito de círculo mágico, uma espécie de realidade de segunda ordem que dependia não da fidelidade estética ao mundo real, mas da capacidade de cada um dos seus participantes de se desvencilhar de âncoras e se permitir aquilo que mais tarde seria chamado de suspensão da descrença.
Se, em outras palavras, nossa capacidade de envolvimento emocional com uma obra interativa está não necessariamente na sua representação fidedigna, mas sim na nossa capacidade de engajamento, resta ao proponente da experiência nos ofertar ferramentas que possibilitem que façamos a nossa parte com competência. Esta elucubração pode parecer aleatória para a introdução de uma análise, mas juro: ela faz todo o sentido para abrir as conversas sobre Bahnsen Knights, game que se alimenta daquilo que fez de algumas jornadas, das mais tradicionais às primeiras aventuras digitais por texto, algo que marcou algumas gerações de jogadores pelo mundo.
O jogo é, inexoravelmente, um verdadeiro deleite para os mais experientes de nós (não vou nos chamar de velhos para manter o auto respeito) que puderam experimentar, nos tempos de comunicação reduzida a um mero repasse manual de disquetes ou outras mídias eletrônicas, adventure games totalmente (ou quase) baseados em texto, cujo maior expoente provavelmente é o inoxidável Colossal Cave Adventure. Mesmo com seus recursos gráficos pontuais, todos os elementos de Bahnsen Knights, tais como a composição de tela, o uso reduzido de cores, medidores de simpatia, contadores de cervejas, e a navegação por escolhas pontuais transpiram tempos menos complicados. Entretanto, engana-se quem acreditar que isso torna a vivência do jogador algo menor ou menos intensa quando comparado aos gigantes do mercado. Possivelmente, as limitações propositais fazem exatamente o contrário, e potencializam ao máximo a retenção da atenção e o peso de nossas decisões.
Desde os primeiros minutos envolvidos na trama, estamos embebecidos por uma trama que poderia muito bem habitar narrativas pulp tão típicas de publicações cafonas ou dos filmes detetivescos noir populares nos confusos anos 1940. Da mesma forma, não seria estranho nosso inesperado herói estampar as páginas pouco afetuosas de um dos muitos contos escritos por Frank Miller em Sin City. A narração em primeira pessoa pelo protagonista não confiável, os devaneios recheados de pessoalidade e a leitura viciada dos fatos, nos levam pelos meandros de um submundo sujo, perturbado, criminoso, mas estranhamente sedutor. Cada elemento se encaixa na construção de uma ambientação que nos oferece poucas respostas objetivas e muito espaço para preenchermos com nossa bagagem. A cada novo cenário, há um convite para que o completemos com aquilo que achamos saber sobre ele.
Confesso que estava me sentindo um tanto quanto saturado com as experiências baseadas em narrativa que se proliferaram nos últimos tempos, sobretudo a partir de sucessos irrepreensíveis de desenvolvedoras como a Telltale, a Quantic Dream e a Don’t Nod. Ainda que esses jogos tenham renovado minha fé em narrativas ramificadas, eles tendem sempre a nos guiar descaradamente, de forma naturalizada ou agressiva, para uma linha canônica, por assim dizer. Em outros termos, jogos como o marcante The Walking Dead ou o mais recente The Expanse (ambos da já citada Telltale) fazem de tudo para nos convencer de que as escolhas pré-definidas são consequências de nossas ações, quando na verdade tudo não passa de uma grande cortina de ilusões. Chegamos onde nos levaram, não onde queríamos ir.
Bahnsen Knights, não nos enganemos, faz o mesmo, mas compartilha a responsabilidade conosco, sem contudo nos limitar a opções cartesianas que equilibram causa e consequência. Isso significa que o fracasso não é, necessariamente, fruto de nossa incompetência, ou de escolhas equivocadas. A aventura pode terminar tragicamente, como podemos exemplificar mais diretamente porque é o que o vídeo que ilustra esta análise mostra na prática, simplesmente porque escolhemos uma rádio e não outra pra ouvir no carro, ou porque a reação a um evento aleatório não foi rápida o bastante. Se as escolhas não são antecipadas, se não há a ameaça de punição só pelo erro, mas sim pelo simples andamento de uma história, a falha não é uma consequência da inabilidade, mas sim uma ferramenta narrativa, mais ou menos como o que vemos em Black Mirror: Bandersnatch. Muitas vezes, não se trata de certo ou errado, erro ou acerto, ou qualquer bifurcação maniqueísta, mas sim de fins distintos para caminhos divergentes.
Da mesma forma que a narrativa nos evoca para um outro tempo, o estilo artístico das econômicas ilustrações garantem que é sofisticação da história, não a da sua roupagem, que importa aqui. O uso cru de poucas cores, do vermelho intenso ao amarelo doente, dos ambientes escuros aos céus rosados, dos contornos serrilhados que lembram os desenhos obtusos feitos a partir da boa e velha tabela ASCII, tudo funciona muito mais como uma arte quase impressionista, que nos carrega para as amarguras destes personagens. O preenchimento da tela com quadros complementares e informações pontuais pode parecer estranho em um primeiro momento, mas tudo prova fazer sentido, mesmo que no final seu uso possa se tornar irrelevante, de acordo com o modo que decidimos jogar.
Escolhas de enquadramento, movimentações e animações, tudo nos remete a um contexto que nos sabota e, ao mesmo tempo, nos provoca. Feições e expressões intensas são uma constante no uso de alto contraste, e não é raro que mesmo um sorriso inerte pareça ameaçador em uma situação de tensão. Afinal, nossos segredos são tão perigosos quanto aqueles que estamos tentando desvendar, e qualquer deslize pode ser o fim. A intensidade dos efeitos sonoros que parecem ter saído diretamente de um Atari 2600, incluindo o ronco dos motores e outros ruídos de ambiência, por mais grosseiros que possam parecer, conquistam, convidam, preenchem. Só não recomendo pausar o jogo durante uma perseguição e deixar o volume alto, porque certamente haverá um prejuízo, seja para aparelhos, seja para nossos tímpanos.
Dito isso, nem sempre vemos o que queremos ver, quase nunca escutamos o que nossa mente espera que ouçamos, mas no fim, todos os estímulos se tornam gatilhos, não somente informações. Tanto quanto na literatura, havia um receio de que se me mostrassem aquilo que eu já recriei em minha mente, não importa o quão bem feito fosse, estaria sempre aquém daquilo que já foi estabelecido para mim. Isso não significa, que fique claro, que os aspectos visuais são parcos ou ausentes, ao contrário. Há verdadeiras pinturas pontilhistas feitas com pixels densos nos mais diferentes momentos do jogo. Só não são exatamente as artes que se espera de uma mídia interativa, e Bahnsen Knights acaba se mostrando uma mistura entre quadrinhos baratos, animações minimalistas e adventure games à moda antiga. No final, é tudo isso junto. E é outra coisa também.
Por outro lado, a interface de comando do jogo traz uma série de entradas inesperadas, mas poucas delas são tão instintivas quanto estamos acostumados. Se escolher uma dentre várias alternativas de diálogo listadas é algo um tanto quanto óbvio, outras ações, como movimentar um carro para desviar de obstáculos, ou selecionar uma carta em um estranho jogo de Paciência, são muito menos convidativas. Seria esta uma herança de um design pensado para outras plataformas, a se destacar os computadores, que por sua vez carregam consigo uma lógica onde o cursor do mouse não passava de devaneios futurísticos? Talvez. Um purismo nostálgico elevado ao seu máximo, algo que não chega a incomodar dado o escopo contido do game, mas que fica longe de ser confortável.
Outro ponto a se lamentar, para nós brasileiros, é a completa ausência de qualquer localização para o nosso idioma. Um jogo totalmente baseado em diálogos, narração e descrições acaba sendo quase inacessível para quem não domina o idioma gringo, mesmo que se escolha o espanhol pela proximidade ao português. Nuances e sutilezas nas conversas são fundamentais para o entendimento dos eventos e, claro, para a tomada das decisões mais adequadas. Sem vozes para trabalhar com a entonação e outros aspectos comunicativos da fala, resta somente a interpretação de texto para dar sentido a palavras carregadas de intencionalidades. Sem compreender o que está sendo dito, arrisco dizer que 90% da experiência fica comprometida. Uma pena.
No geral, Bahnsen Knights carrega consigo um legado de décadas que escorre pouco a pouco pelo ralo dos gráficos ultrarrealistas, das centenas de frames por segundo e das altíssimas definições. Diferente da tendência indie de jogos apoiados no saudosismo dos gráficos das gerações 8 e 16 bits, este parece ser um produto fora do seu tempo, mas que acima de tudo sabe exatamente como explorar o aspecto de um gênero quase esquecido que sabia muito bem como colocar a narrativa – independentemente da história – em um primeiro plano, provocando e convidando seu interlocutor, promovendo o engajamento para além do encantamento pelos olhos e pelos ouvidos. O círculo mágico se alimenta dos nossos sentidos, mas só se efetiva, de verdade, em nossa mente.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Chorus Worldwide Games.
Veredito
Bahnsen Knights é estranho, curto e desengonçado. Traz controles pouco confortáveis e sequer está disponível em português. Nada disso, porém, tira do jogo suas melhores qualidades narrativas, estilo artístico ousado e uma forma muito particular de promover uma boa experiência imersiva digna de suas melhores inspirações.
Bahnsen Knights is strange, short and awkward. It has uncomfortable controls and isn’t even available in Portuguese. None of this, however, takes away from the game its best narrative qualities, bold artistic style and a very particular way of promoting a good immersive experience worthy of its best inspirations.
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