A cinema noir é talvez, atrás somente do consagrado western, um dos grandes expoentes da sétima arte hollywoodiana em seus tempos de ouro da metade do século XX, e toda sua construção atmosférica reverbera até os dias atuais nas mais diversas mídias. Backbone, produzido pela ainda jovem desenvolvedora EggNut, é uma aventura pautada na narrativa com elementos point-and-click e explora o conceito do pós-noir, misturando todos os elementos clássicos do gênero a várias outras referências do distopismo e do cinema da ficção científica, do suspense e até do terror.
A trama começa como tantas outras que já vimos antes: um detetive particular – com direito a chapéu e sobretudo antiquados – recebe em seu escritório uma distinta senhora com sérias desconfianças sobre a fidelidade (ou a falta dela) de seu marido, e precisa que o investigador consiga provas disso, ou então que descubra porque ele andava tão desconexo da família a ponto de desaparecer por dias sem avisar. Nada que fuja da rotina nem um pouco emocionante de um sujeito inteligente, mas bastante desconectado com uma sociedade cada vez mais fria e deturpada, mas bem, é o tipo de trabalho que paga as contas. Não demora para que estejamos explorando as ruas de uma Vancouver decadente procurando pistas do paradeiro do sumido.
O que temos de tão diferente assim? Bem, pra começar, nosso protagonista improvável, Howard Lotor, é nada menos que um guaxinim bastante antipático. Sim, este é um mundo de animais antropomórficos, não daqueles fofos dos filmes de animação como Zootopia, Sing ou coisas assim, e sim aqueles que realmente assumem um biotipo tipicamente humano, mas com as feições de bichos que conhecemos, como ursos, leopardos e lobos brancos. Interessante que o jogo não explica – e provavelmente não deveria, mesmo que algumas dicas visuais e até filosóficas podem estar espalhadas por aí – se este é só um futuro bizarro onde a humanidade evoluiu ou foi substituída, é uma dimensão diferente da nossa, ou se simplesmente é uma leitura metafórica da nossa sociedade atual. A interpretação sobre este aspecto, como a de tantos outros dentro do game, fica por conta do jogador.
Falar mais sobre a história seria de um grande desserviço para qualquer um que deseje explorar Backbone para conhecer suas surpresas e reviravoltas ao longo de uma campanha que dura por volta das quatro ou cinco horas. O que posso adiantar aqui é que o plot da infidelidade que inicialmente move nosso herói logo se dissipa para algo muito diferente do que ele esperava e rapidamente nos vemos envolvidos em uma avalanche de acontecimentos impensáveis, conspirações malucas e um submundo ainda mais sujo e perturbador do que o título sugere. Quando os créditos sobem na tela pela primeira vez, o tempo onde os nomes dos apoiadores do financiamento coletivo que viabilizaram a obra é daqueles que usamos para tentar responder a inevitável questão: cara, o que acabou de acontecer aqui?
Contudo, ainda que carregue muitos méritos ao levar a narrativa para lugares inesperados, é uma estrutura um tanto quanto instável, com muita solidez de roteiro na primeira metade da trama e com várias lacunas na passagem final, algo que também acaba transparecendo no gameplay, do qual falaremos mais adiante nesse texto. Gosto bastante das reflexões e dos espaços que o jogo nos dá para preenchermos com nossa própria leitura de mundo, nossa própria reconstrução de significados, e isso é latente do começo ao fim. É pouco usual quando encontramos e conversamos com personagens que a princípio não tem qualquer ligação direta com a história, mas que nos oferecem ótimas conversas descompromissadas no melhor estilo Tarantino, mas a parte final parece muito mais uma montagem de recortes sem a mesma fluidez de encadeamento do início.
Outro sintoma da discrepância entre a primeira e a segunda metades está na forma como as mecânicas do jogo são exploradas em ambos os momentos. Se na missão inicial – parte dela está no vídeo que acompanha esta análise – temos muitas opções de exploração dos cenários, itens e observações, no bom e velho estilo point-and-click, na segunda essas informações de preenchimento se tornam mais raras e, quando existem, as vezes são só irrelevantes. Os ambientes internos, aliás, se tornam menos frequentes e mais pobres. Mas a maior das discrepâncias está nas poucas mecânicas diferenciadas, aquelas que fogem do esquema interagir, ler, conversar, e fazer escolhas de diálogo.
Por exemplo, logo de cara, temos uma missão de infiltração onde é necessário agir literalmente nas sombras, enganando seguranças, agindo pela furtividade. Logo adiante é preciso utilizar de recursos para enganar outros capangas para não ser pego. Logo em seguida, já há um rápido puzzle para descobrirmos uma senha numérica que se não é particularmente difícil, precisa de atenção e de um trabalho maiores do que só seguir adiante. Depois disso, nenhuma dessas ferramentas ou habilidades aprendidas será explorado novamente – uma ou outra de forma leve e desinteressante – e todas as soluções que precisam de um pouco mais de exploração vem quase que naturalmente ao interagir com os pontos de interesse. Curiosamente, os maiores pontos de dificuldade do jogo estão só no princípio. É uma curva descendente de desafio, por assim dizer.
Outra questão que me pareceu aquém do potencial da obra e da proposta desse estilo está na solução dos mistérios pela investigação. Na minha primeira jornada, agi de uma forma bastante sistemática que levou em conta aquilo que aprendi com os filmes dos anos 1950, 1960 do gênero, ou com Uma Cilada Para Roger Rabbit: para interrogar um possível informante, ganhe a simpatia dele, seja gentil, se interesse pelos problemas dele, até conquistar a confiança do dito cujo e aí sim extrair a informação, algo que funciona de forma brilhante em produções como Disco Elysium, por exemplo. E de fato funcionou bem para o que eu esperava.
Porém, fiz uma segunda run para avaliar esse aspecto, fazendo as escolhas contrárias, sendo babaca com informantes e com pessoas que eu sabia serem aliadas, fazendo as perguntas mais estúpidas ou pulando diálogos de contexto e, bem, todos os resultados foram exatamente os mesmos. Tirando um caminho diferente, mais uma vez, lá na missão inicial, o resto se desenvolve exatamente da mesma forma, independente das escolhas que fui fazendo. Claro, alguns diálogos mudam, algumas informações a mais ou a menos são dadas, mas a sensação é que na grande maioria das vezes, não importa o que se escolha dizer, as consequências são exatamente as mesmas.
Essa mesma sensação que tive em alguns momentos dentro dos games da Telltale ou da Quantic Dream, por exemplo, é daquelas que nos tiram a imersão e a sensação de sermos nós a fazer as escolhas que levaram aos resultados. Quando se quebra essa noção de que o caminho resulta das escolhas do jogador, sobretudo em jogos desta natureza; quando sentimos que não importa o que se faça, não importa o evento causal, as consequências serão as mesmas, todo o sentimento de engajamento com a trama se perde. Não que isso torne a história menos interessante ou algo do tipo, mas é evidente que o elemento que define a experiência do jogo acaba se abalando.
Assim, percorrer os ambientes, encontrar pistas e entrevistar tipos no meio da rua se torna algo mais trivial e menos envolvente. Salvam-se, contudo, algumas coisas que ficam abertas, nas entrelinhas, aquelas que não tem respostas ou desfechos, sem aquela conclusão confortável, e felizmente há muita coisa assim. Além da trama principal que claramente tem caminhos para seguir adiante e resultar em eventos ainda mais grandiosos, há aquelas pontas soltas despretensiosas que dão substância e amplidão para um mundo mais rico. Onde aquela pessoa foi parar? O que aqueles dois outros estavam tramando? Como fulano vai reagir quando souber a verdade? E aquele cara que estava na própria missão, qual teria sido o destino dele? Ficam as perguntas, ficam os mistérios. Nosso investigador tem sua conclusão, mas o mundo é muito maior do que ele, e obras que conseguem mostrar vida própria independente do ponto de vista original são aquelas que mais nos emocionam.
Esse encantamento, aliás, também passa pela elaboração estética de Backbone, algo absolutamente deslumbrante. Se o estilo pixel art está longe de ser uma novidade no mercado, aqui ele é utilizado em um nível completamente diferente daquela sensação de nostalgia referencial. Ou seja, não se utiliza a técnica para emular uma geração, uma época dos games, ainda que o jogo não se furte de deixar claras quais são suas inspirações. Toda a construção visual do game é magistral, uma verdadeira obra de arte neo-pontilhista – se me permitem a liberdade poética do termo – que impressiona pela quantidade e pela qualidade dos detalhes, do uso das cores, da sofisticação de recursos de iluminação e da diversidade de ambientes, construções e temas adjacentes. Em essência, Backbone é um espetáculo visual impecável.
Em termos sonoros, há muitos altos com alguns baixos, que podem se tornar mais incômodos dependendo da experiência do jogador. Isso porque as composições originais de Danshin e Arooj Aftab abusam daquele jazz depressivo tão característico do gênero e que dão um tom decadente a todo o universo do game, enquanto algumas entradas musicais são especialmente bem desenhadas para valorizar o clima e destacar eventos importantes. Ao mesmo tempo, confesso que senti um pouco de incômodo nas longas passagens silenciosas dentro da maioria dos diálogos. Perceba: o silêncio em si não é um problema e, ao contrário, é um ótimo recurso sonoro para valorizar a introspecção em várias produções audiovisuais, mas em um jogo sem qualquer trabalho com vozes, com diálogos longos se materializando somente por texto, alguns trechos podem se tornar arrastados e até modorrentos.
O que segura o jogo, nesses momentos mais expositivos, é sem dúvidas o belo texto da obra. Muito bem escrito e com diálogos pouco óbvios, Backbone não se propõe a oferecer longos documentos e prefere, no que trata da informação de background, mostrar mais do dizer, o que é ótimo. As conversas, por si só, são sólidas, realmente levam a narrativa adiante e, como já adiantei antes, mesmo aqueles mais indiretos dão ótimas pistas do que esse mundo tem a oferecer. Para ser sincero, há mais de uma dezena de personagens interessantes que encontramos pelo meio do caminho que renderiam ótimas histórias solo, quem sabe continuações ou conteúdos de expansão, se este for o plano dos idealizadores. Sabe aquele jogo onde o mendigo ou o amigo drogado tem muito mais a contar do que aquilo que é dito? Pois é, este é o caso aqui.
Exatamente porque esperava ver muito mais daquilo que arranhou algumas superfícies que senti que o terço final foi apressado demais, um tanto anti-climático, por assim dizer. Este definitivamente não é daqueles produtos onde a história termina com o embate final, mocinho contra vilão, bem contra o mal, ou algo do tipo, mas ainda assim, mesmo dentro do conforto do gênero, ele acaba sendo ousado para alguns, incompleto para outros, e ainda estou me decidindo onde está o meu sentimento dentro deste espectro. O que sei é que a duração curta é suficiente para não cansar, mas também abre algumas portas que poderiam – provavelmente deveriam – ser adentradas no futuro de uma, quem sabe, franquia. Espaço para crescer, para todos os lados, não falta.
Ser surpreendente é talvez a maior das qualidades de Backbone. Sim, partimos do mais puro clichê, mas isso nunca chegou a ser um problema para mim em nenhum tipo de produção audiovisual. O problema é não conseguir se desvencilhar do lugar comum, e felizmente este não é o caso deste jogo. Ao nos levar a lugares inesperados, ao mostrar uma cidade cheia de detalhes, dos mais belos aos mais sujos, ao explorar contrastes e até ao cutucar feridas sociais do nosso tempo, é definitivamente algo a se conhecer. Não posso garantir que todos irão gostar, ou mesmo embarcar na trajetória deste herói quebrado, muito menos se interessar pelas investigações e descobertas pelo caminho, mas creio que ninguém terminará a campanha sentindo a mesma coisa que sentia nos primeiros 15 minutos de jogo.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Raw Fury.
Veredito
Backbone é um aventura interativa baseada em narrativa com alguns elementos clássicos subaproveitados de jogabilidade point-and-click misturados com possibilidades de escolha que nem sempre representam opções reais de causa e efeito, mas que traz em seu estilo artístico e em seu texto muito bem escrito suas melhores qualidades.
Backbone is an interactive narrative-based adventure with some underused classic point-and-click gameplay elements mixed with choice possibilities that don’t always represent real cause-and-effect options, but bring in its artistic style and well-written text its best qualities.
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