Não é segredo para ninguém que a produção independente é atualmente o berço de algumas das mais criativas produções no mundo dos games. A iniciativa Playstation Talents, nesse sentido, tem oferecido espaço para algumas destas ideias que se permitem o risco, que se provocam ao diferente, e vez ou outra temos a oportunidade de conhecer produções pouquíssimo divulgadas e que nos surpreendem pela experiência que estão propondo. Aurora’s Journey and the Pitiful Lackey, do estúdio espanhol The Not So Great Team, felizmente, é a primeira boa surpresa do ano e merece ser mais conhecido pelo público geral.
Na trama, nos encontramos em uma versão alterativa do começo do século XX, quando uma simpática raça alienígena mecânica chega ao nosso planeta a bordo da nave chamada Eureka, e aos poucos se estabelecem por aqui de uma forma integrada à nossa sociedade. Acompanhamos a jovem que empresta o nome ao game, uma escritora de contos cujo pai William sumira há cerca de quatro anos em circunstâncias misteriosas. Junto ao seu fiel parceiro Lacayo, um roboto (termo utilizado para os visitantes) muito gentil e bem humorado, Aurora se vê diante uma nova ameaça que surge com o crescimento da população de uma nova variante agressiva dos visitantes, chamados de Brainless. É hora de se aventurar pelo mundo em busca de respostas e, quem sabe, salvar a sociedade no caminho.
Logo de início, mesmo que trate de temas que já nos são bastante familiares considerando o mundo dos games e a cultura pop como um todo, é pungente o quão carinhosos foram os desenvolvedores com o jogo, nos apresentando com calma e sensibilidade cada um dos personagens presentes na história, sem a necessidade de acelerar as coisas e de nos colocar na ação desenfreada de uma hora pra outra. Conhecemos nossa heroína, seus dramas e suas virtudes com muita leveza na interação com o vilarejo onde ela vive, e principalmente com alguns de seus mais célebres habitantes. O game, desde o início, mostra muito coração e permite que nos importemos com a sua proposta.
A busca por respostas sobre seu pai que acaba nos colocando no centro das preocupações com a crescente ameaça leva Aurora e Lacayo a lugares diversos, que passam por montanhas geladas, desertos escaldantes e ruínas misteriosas cheias de armadilhas com mais perguntas do que respostas. Mesmo que nos permita fazer algumas escolhas sobre o que fazer depois de cada aventura, é um game basicamente linear com uma campanha que gira em torno das sete a oito horas de duração e que tem como grande mérito um ritmo muito confortável que, sem abandonar um tom mais lúdico, consegue inserir ação bem dosada, desafios de plataforma e resolução de puzzles com dificuldade e empenho crescentes. É, antes de mais nada, uma jornada muito bem equilibrada, que termina antes de correr o risco de se esgotar.
Com o controle em mãos, Aurora’s Journey and the Pitiful Lackey pode ser definido como um shooter de ação sidescroller bidimensional com elementos de puzzle e plataforma, ainda que seja construído quase que totalmente de forma poligonal, configurando-se no que popularmente chamamos de “2.5 D”. Entretanto, não espere algo parecido com outros expoentes do gênero, porque a implementação aqui da movimentação e das mecânicas de tiro é bem diferente do que estamos acostumados. Se em um primeiro instante há estranhamento e adaptação, logo o estilo run and gun dos trechos hostis fica mais confortável, sobretudo porque o sistema é bastante simples e oferece pouca sofisticação ao longo de toda a campanha.
Basicamente, com sua arma, há duas formas de ataque: o tiro direto que elimina as diferentes formas dos Brainless, incluindo grandes e perigosos chefões de fase, e um raio dedicado a eliminar campos de defesa que protegem alguns dos inimigos. Pelo caminho, ao eliminar os agressores, podemos coletar peças, kits médicos e power-ups que modificam o estilo ou a potência de nosso equipamento por alguns instantes. Por fim, há um ataque especial que utiliza nosso parceiro como um verdadeiro aríete, mas que precisa ser dosado para não machucá-lo no processo. Completando o pacote básico do formato, há o salto que, mais tarde, será melhorado para salto duplo que ajuda nos trechos de combate, mas que obviamente será nossa principal ferramenta nas passagens de desafio em plataforma.
Porém, mesmo com a já citada linearidade, tudo isso divide espaço com outras mecânicas que compõem um conjunto que alterna a ação e o respiro, a adrenalina do perigo e a contemplação do que estamos vivendo. Nas passagens de um nível para outro, voltamos à nossa vila para conversar com o ancião que nos oferece grande parte das informações que temos e quem praticamente gerencia o que fazer com aquilo que descobrimos. É ele também que melhora nosso equipamento em troca de peças coletadas e de dinheiro, e mais adiante, ele se provará um grande companheiro que estará conosco nos momentos mais importantes da narrativa. Aliás, se precisamos de dinheiro, é ele também parte da nossa fonte de renda, já que podemos trabalhar para o sujeito fazendo um free-lance de entregas.
Estas passagens são bem diferentes em todos os aspectos, já que nos coloca dentro de um simpático caminhão de entregas em uma perspectiva tridimensional de fato, semelhante a outros jogos motorizados. Aqui, a meta é bastante simples: coletar uma encomenda no centro de distribuição da cidade e levá-lo até o seu destino. A ordem do dia nos dá um total de cinco entregas a serem realizadas em seis minutos, e o grande desafio é chegar ao destino sem derrubar a carga no trajeto. Parece simples, mas o veículo não é dos mais estáveis, o terreno é acidentado e a física nos faz parecer balões de ar. Cada entrega rende um dinheirinho e completar as cinco de cada sessão é bastante lucrativo, além de ser um ponto de variação dentro do game.
Não é o único, porém. Fortalecendo o conceito de que o plano de fundo da personagem não é meramente ilustrativo, a cada novo ciclo é possível (e recomendável) voltar para casa e escrever um novo conto para enviar ao seu editor e, assim, receber o salário tão valoroso. A mecânica aqui é simples e efetiva: o jogo oferece uma premissa e três opções de continuação. O processo se repete algumas vezes até o texto completo estar finalizado e enviado. Ele será avaliado pela chefia e dependendo da qualidade e da coerência do texto, ele tem o seu valor. Por exemplo, uma história que tem sequências desconexas e sem sentido vale muito pouco, mas uma que se destaque, que seja interessante e instigante vale prestígio, vende bem e rende muito mais.
Nos dois casos, o sucesso, o fracasso ou os meios-termos não inviabilizam a continuidade do jogo, mas fazer do jeito certo, além de satisfação (e troféus) oferece recursos suficientes para melhorar seu potencial sem precisar repetir os processos de entrega muitas vezes. Essa condição, aliás, é muito bem-vinda e faz de ambas as atividades – escrever e fazer entregas – algo que não carrega consigo o peso de serem ações alternativas à linha principal que bloqueiam a progressão como acontece em muitos casos onde missões secundárias podem enroscar aquilo que realmente interessa para a resolução do problema. Se, como respiro, são certeiras em oferecer mecânicas diversificadas daquilo que vimos antes em missões e masmorras, como ações paralelas elas se mostram realmente alternativas complementares.
Somam-se a isso a proposição de puzzles interessantes, alguns deles no melhor estilo Genius (aquele que propõe uma sequência longa de cores a serem apertadas na ordem certa) que são bem provocadores, e acenos que homenageiam a história dos games, como uma fase quase inteira em plataforma 8 bits, por exemplo. São detalhes, pormenores que sozinhos não são lá tão impactantes assim até por não serem mecanicamente perfeitos, mas que juntos corroboram com o evidente cuidado apaixonado do qual falei no início do texto. Cada uma dessas inserções, separadas, podem parecer triviais, mas a articulação entre elas, mesmo quando não parecem tão compatíveis assim na descrição, acabam proporcionando uma experiência surpreendentemente coesa e muito satisfatória.
Por sua vez, o estilo visual do jogo evidencia boas escolhas, principalmente na construção de belos cenários e paisagens bem compostas. O bom uso da luz e de ambientes solares na grande maioria do tempo oferece um bem-vindo contraste com as passagens escuras e submersas. O design de níveis é, porém, pouco inspirado, sobretudo quando se dedica a caminhos verticais. Não há qualquer incentivo a exploração e em grande parte do tempo, o traçado se resume a um grande corredor com inimigos em linha esperando por nós, o que pode ser agravado por ser um caminho prolongado demais em vários momentos. Há ainda poucos elementos interativos, ainda que as soluções ambientais para, por exemplo, frio e calor sejam salutares para trazer um aspecto novo de desafio e dificuldade.
Menos inspirado que os ambientes é o design de personagens, principalmente dos inimigos. A grande maioria deles se resume a um aspecto clean, quase que como cápsulas cilíndricas com braços e pernas que, somadas a uma coloração branca ou de um cinza bem claro e de um filtro cel shading, acaba os prejudicando bastante. Nossa protagonista e outros personagens humanos – ou humanóides – sofrem menos neste quesito, mas em passagens com diálogos (infelizmente localizados só para o espanhol original e para o inglês) a estética low poly também mostra certos limites de expressividade. Como um todo, é um jogo com traços fortes e com muito mais acertos do que erros no que se refere aos gráficos.
Pelo aspecto sonoro, há uma trilha musical muito agradável, que traz belas canções de ambientação que dialogam diretamente com o espaço físico remetendo inclusive a temas facilmente reconhecíveis que emulam instrumentos típicos de cada região. Se não há diálogos falados – no máximo, algumas expressões bem pontuais aqui e outras ali – as conversas são muito bem escritas, trazendo densidade narrativa para cada acontecimento. Uma ou outra cena é alongada demais, mas no geral há um belo trabalho de roteiro aqui. Além de não haver localização para o nosso português brasileiro, o jogo as vezes tem alguns bugs onde os idiomas se revezam entre um diálogo e outro algo que não chega a atrapalhar e certamente deve ser resolvido em próximas atualizações.
Destacam-se ainda uma interface bastante limpa, mas também uma ausência completa de qualquer opção de configuração (exceto para alternar entre os dois idiomas possíveis); mapeamento de botões (o salto, por exemplo, está por padrão tanto no X quanto no L1); ajustes de som; e outras possibilidades. Também é um pouco limitante não haver escolha de nível de dificuldade, que na média é baixa quase todo o tempo, mas que tem picos exageradamente pesados em alguns trechos muito pontuais e nos chefões finais, além de haver uma inconstância na distribuição de checkpoints agravada pela ausência de salvamento manual. Por outro lado, é uma platina bastante acessível, já que terminar o jogo de uma forma cuidadosa deve garantir todos os troféus tranquilamente logo na primeira run.
Como um todo, Aurora’s Journey and the Pitiful Lackey é uma bela surpresa com alguns pontos menos inspirados, mas cheio de boas qualidades. É notável o capricho para com o projeto, que não esconde alguns problemas de desenho das fases e falta de substância em certos momentos, mas que entrega muito do que propõe com sinceridade e criatividade. Com certeza há outros shooters mais complexos e aprofundados no mercado, há editores de histórias mais sofisticados ou simuladores de entrega bem mais recheados. Talvez este não seja um jogo que alcance um destaque em seus pontos individualmente, e sua força está no conjunto. Considerando a proposta de narrar uma grande jornada focada em Aurora e no mundo que a cerca, suas qualidades estão muito mais no caminho do que no ponto final.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Gammera Nest.
Veredito
Aurora’s Journey and the Pitiful Lackey é uma divertida experiência cheia de identidade e com uso criativo de modelos já conhecidos. Com mecânicas simples, mas bem eficientes naquilo que se propõem, consegue ser leve e contemplativa sem perder o charme e a sensação de aventura.
Aurora’s Journey and the Pitiful Lackey is a fun experience full of identity and creative use of familiar models. With simple mechanics, but very efficient in what they propose, it manages to be light and contemplative without losing its charm and sense of adventure.
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