Retornar às origens era algo mais do que necessário. Por melhores que se possam considerar os jogos da mais recente trilogia de jogos da série Assassin’s Creed, que passou a ser conhecida como a “trilogia da mitologia”, depois do lançamento do último DLC de Assassin’s Creed Valhalla realmente parecia a hora de abandonar muito daquela estrutura em prol de algo novo.
Após anos com tudo sendo “muito”, muito grande, muito excessivo, muito cansativo para alguns jogadores, era chegada a hora de repensar e reimaginar o escopo necessário para se entregar aquilo que os jogadores queriam. Em momentos como esse, olhar para trás é necessário para iluminar o caminho à frente. E é exatamente isso que a Ubisoft conseguiu realizar com o lançamento de Assassin’s Creed Mirage.
Muito dele é inspirado pelo que foi construído nos jogos originais de PS3, até como forma de se mostrar uma gigantesca homenagem ao legado da franquia, fechando as comemorações do aniversário de 15 anos dela. Perfeitamente casando vários dos elementos tradicionais que havíamos nos acostumado com várias das mais importantes melhorias e novidades que foram sendo introduzidos nos últimos três títulos.
Curiosamente, uma das coisas que ele trás como legado do título mais recente é seu protagonista. Mirage é o primeiro jogo principal da franquia a trazer um protagonista que já havia aparecido antes (se desconsiderarmos, naturalmente, títulos como os Assassin’s Creed Chronicles). A escolha por explorar mais o passado de Basim Ibn Ishaq, o misterioso assassino que Eivor conhece na Inglaterra e que age tanto como um mentor para Hytham quanto um conselheiro para Sigurd.
Basim é um dos personagens mais completos e ricos que a série havia visto em bastante tempo, por mais difícil que seja explicar o porquê sem entrar em spoilers, então entender o que aconteceu com ele antes da chegada dele à Inglaterra é uma decisão muito bem-vinda, até dada a importância que ele promete ter para a lore da franquia como um todo. Mas antes do assassino super bem-treinado e dedicado aos Ocultos que conhecemos em Valhalla havia um jovem ladrão nas ruas de Bagdá só tentando sobreviver.
Quando Mirage começa, 11 anos antes de Valhalla, é justamente esse Basim que conhecemos, um jovem ladrão, atormentado por pesadelos envolvendo djinns, que, junto com sua amiga Nehal, é contratado por um intermediário d’Os Ocultos para realizar pequenos furtos ao redor do distrito onde ele vive. Conhecido como o melhor ladrão de nbar, Basim é motivado por mais do que só o pagamento (que é baixo), encontrando desde cedo uma forte identificação com o senso de justiça daquilo que viria a se tornar a Ordem dos Assassinos.
Quando Basim decide por conta própria roubar um misterioso artefato com graves consequências, ele acaba colocando uma série de eventos em movimento que acabam mudando não só o rumo da vida dele, fazendo com que ele se junte aos Ocultos, mas da própria dinâmica entre Os Ocultos e a Ordem dos Anciões. Mirage então é uma exploração bem rica da evolução de Basim de potencial membro à Mestre Assassino enquanto explora também muito dos elementos que fazem d’Os Ocultos os heróis em um conflito em que nenhuma das duas partes parece ter totalmente razão.
Uma coisa que precisa ficar claro logo de cara: você não precisa ter jogado Valhalla para aproveitar Mirage. Embora alguns easter eggs e pontos da história se conectam muito ao que viria depois na jornada do Basim, o jogo todo trata cada acontecimento como algo único e nunca antes explorado, ficando tudo muito claro e explicado para quem não sabe o quer viria a acontecer com ele anos e anos depois. Embora ele tenha nascido como uma DLC para Valhalla, ele evoluiu para um algo totalmente independente (ainda que use muito dele) e que pode ser aproveitado, inclusive, se você nunca tiver jogado um Assassin’s Creed na sua vida.
Dito isso, ele é claramente um jogo que também pensou demais nos fãs da franquia. A quantidade de elementos e referências conectadas a títulos anteriores é enorme e é um prazer à parte identificar esses pontos. O jogo explora muito da lore da franquia, talvez mais do que qualquer jogo desde Origins, sendo um prazer ver coisas como a iniciação do Basim ou certos artefatos Isu que fazem aparições aqui.
Se há algo a se reclamar, entretanto, é que os personagens secundários ficam aquém do nível do que estamos acostumados a ver na franquia. Basim já era um dos destaques do elenco de Valhalla, mas aqui sua relação com Nehal é bem “ame ou odeie” (com fortes tendências ao odeie) e seus mentores n’Os Ocultos, embora ajudem a reforçar elementos importantes da mitologia da série, são relativamente rasos e muito pouco desenvolvidos. Isso sem falar na quase inexistente expansão dos demais personagens. É tudo sobre o Basim, então se você não gostar do protagonista, a história não vai te fisgar.
Outro ponto onde o jogo é claramente inspirado no passado é em seu combate. Basicamente tudo que remeta a um RPG foi eliminado aqui, salvo por uma árvore de habilidades infinitamente mais enxuta. Não há mais uma árvore de habilidades em que você ganha porcentagem de bônus em uma estatística ou níveis de poder estratosféricos e, consequentemente, você precisará realmente se apoiar em sua habilidade para se manter nas sombras e atacar na hora certa.
Pegar seus inimigos desprevenidos é, com muita folga, a forma mais eficiente de derrotá-los, mas longe de ser fácil. Inimigos estão mais atentos do que nunca (por mais que a IA ainda ignore certas coisas após uma certa distância para conveniência do jogador), então é necessário saber se esgueirar, atacar na hora certa e usar o cenário a seu favor, incluindo vários clássicos esconderijos como os montes de feno e bancos.
Esse foco no que a série chama de “social stealth” é um bela rajada de ar fresco e torna o jogo muito mais divertido e desafiador do que os últimos três títulos. Você ainda tem algumas conveniências recentes como sua águia, Enkidu, para ajudar a visualizar de cima uma área antes de invadir-la (ainda que de forma bem limitada, e o Olhar de Águia, uma versão melhorada do Olho de Odin que te permite identificar com mais facilidade onde inimigos, tesouros e outros pontos relevantes estão.
Com o foco ficando muito mais na sua habilidade com sua lâmina oculta, não espere um grande arsenal de armas aqui. Embora você tenha uma adaga e espada para lhe salvar quando combate for inevitável, seu arsenal é mais voltado para equipamentos que te ajudarão a se esconder, fugir e manipular os seus alvos. Isso significa que facas arremessáveis, armadilhas, dardos envenenados, bombas de fumaça, bombas de som e todo um tradicional grupo de bugigangas está de volta e mais variado e eficiente do que nunca.
A quantidade delas também é bastante restrita (e comprá-las sai caro, ainda mais com uma certa limitação na quantidade de dinheiro à disposição), então você precisará pensar muito bem antes de sair por aí jogando bombas e facas indiscriminadamente. Mirage incentiva muito planejamento momento-a-momento, constantemente te fazendo improvisar ou pensar em como melhor sair de cada situação. É uma dinâmica incrivelmente bem-vinda, especialmente depois de dois jogos que te incentivavam e, em vários momentos, forçavam a ir de peito aberto rasgando todos os inimigos à sua frente sem o mínimo de ênfase em, bom, discrição nos seus assassinatos.
Falando ainda sobre batalhas, em alguns momentos elas serão inevitáveis e aqui há um certo retorno para a dinâmica antiga também. Há uma ênfase muito grande em ser mais reativo, com o parry sendo fundamental para derrotar os inimigos e, francamente, um pouco poderoso demais, visto que abre espaço para um golpe fatal para inimigos mais fracos.
Ainda assim, caso grupos maiores comecem a te cercar, é quase impossível sair vivo sem muita habilidade, especialmente contra inimigos mais fortes que são invulneráveis a ataques diretos. É mais um exemplo de como o jogo mudou seu foco para evitar batalhas e quem não estiver preparado para se esgueirar e evitá-las certamente achará o combate raso, visto que não é possível trocar de armas e não existem habilidades chamativas de combate.
Isso é visto também nas habilidades disponíveis para serem desbloqueadas ao longo do jogo. A maior parte dos seus pontos serão gastos melhorando as capacidades da Enkidu, desbloqueando novas ferramentas ou aumentando as suas capacidades de armazenamento. A única “habilidade especial” realmente disponível é aumentar a quantidade de barras do chamado “Foco de Assassino”. Ela pode ser ativada com R3 e, essencialmente, te garante uma série de assassinatos rápidos contra inimigos marcados por você. É bem útil e poderosa, com o jogo restringindo bastante o uso para que não seja abusada.
Talvez nada fale tanto sobre como ele é um jogo mais aberto quanto o seu design de missões. Elas agora são chamadas de Investigações e basicamente colocam Basim para coletar informações sobre alguma situação que está acontecendo em Bagdá, precisando investigar locais e conversar com potenciais aliados para conseguir desvendar quem é o potencial culpado pelo que está afligindo a população daquele distrito.
Aos poucos um cenário mais concreto do que está acontecendo vai se montando e você conseguirá identificar quem é o membro da Ordem dos Anciões causando problema para a população. A partir daí, você encontrará onde ele está localizado e precisará assassiná-lo. Como você irá fazer isso, como irá atrair o alvo para vulnerabilidade e quais ferramentas usará para matá-lo cabem apenas ao jogador decidir.
O jogo, é claro, te dará indicações de como resolver isso, com Basim comentando sobre certas coisas que ele pode usar ao seu favor e o radar indicando pontos de interesse, mas, no fim das contas, uma mesma missão terá diferentes formas de se resolver, cabendo apenas a sua habilidade. É algo muito positivo, se afastando assim das lutas contra chefe que se viu nos últimos jogos em que, basicamente, você precisava quebrar uma barra de defesa ou spammar habilidades em combate direto. Aqui seus alvos morrerão com um simples golpe da sua lâmina oculta, desde que você consiga se colocar em posição para acertá-lo.
Ainda sobre isso, é notória a redução drástica da quantidade de missões secundárias no jogo. Mirage é, no geral, muito mais curto que os jogos anteriores, sendo fácil concluí-lo em algo em torno de 20 a 25 horas com bastante exploração e coletando coisas secundárias. O mapa ainda é cheio de colecionáveis (vários que só adicionam ao lore e revelam mais de Bagdá), mas coletá-los é algo bem simples.
Ainda existem algumas missões não muito importantes para a campanha que surgirão como investigações e eventos secundários como os Contos de Bagdá e Contratos estarão disponíveis para serem cumpridos nos diferentes esconderijos d’Os Ocultos. Concluir esses contratos lhe dará recursos, especialmente as chamadas fichas de favor, que podem ser usadas para “comprar” a contribuição de cidadãos comuns à sua causa, como convencer músicos a distrair soldados ou ajuda para zerar a sua barra de notoriedade. O retorno dessa barra, aliás, é outro ponto interessante e muito mais difícil de ser reduzido, visto que o mapa não possui tantos cartazes para serem arrancados como era comum nos primeiros jogos.
Bagdá, no geral, não só é uma cidade grande (ainda que bem menor do que a Inglaterra de Valhalla), mas, mais importante, uma cidade viva. A população reage ao que está acontecendo, facilmente percebendo quando foram roubados ou te reconhecendo e chamando soldados para te atacar. Tudo aqui é muito bonito e até os modelos de alguns personagens parecem melhores, fora o cuidado em incluir várias frases em árabe para ajudar na ambientação.
Um último aspecto importante a se dizer é que a localização em PT-BR está excepcional. Mirage conta com a que, pra mim, é a melhor dublagem que a série já viu, com todos os personagens tendo vozes que se encaixam com eles e diálogos naturais, muitas vezes até melhores do que os originais em inglês. É mais um aspecto que a Ubisoft merece parabéns pelo cuidado com o produto para nós brasileiros.
Para não dizer que a experiência não gerou incômodo em nada, é necessário apontar um velho problema conhecido da série: os bugs. A performance em si rodou perfeitamente ao longo de toda a experiência, mas em vários momentos alguma coisa bugava, como em pontos em que era necessário ouvir o diálogo entre NPCs e o áudio reiniciava o tempo todo ou prompts que não apareciam, por exemplo. Tudo facilmente resolvível com um carregamento rápido (e os loadings do jogo são rápidos), mas ainda assim é algo chato.
O parkour do jogo, infelizmente, também não chega aos altos níveis do Unity e ele retorna ao estilo clássico de precisar planejar suas subidas sem se prender só a segurar X e o analógico pra cima e o personagem realizar pulos estratosféricos. Ainda assim, é algo que funciona porque há uma clara ênfase em se mover pelos telhados, algo que funciona muito bem.
Dito tudo isso, é impossível dizer que eu não saí satisfeito da experiência com Assassin’s Creed Mirage. Talvez seja o fato de ser inegavelmente fã da franquia, mas é uma experiência que me cativou e entregou praticamente tudo o que eu esperava do título, com os pequenos problemas sendo algo menor dentro do grande contexto do jogo.
Retornar às origens para entregar algo melhor no futuro era urgente e necessário e é exatamente o que vemos aqui. É claro, ainda existem elementos reciclados de títulos anteriores, como era de se esperar, mas com Mirage marcando o último lançamento tradicional dela antes de mergulharmos no que quer que Assassin’s Creed Infinity venha a ser, é uma merecida e recompensadora homenagem a tudo que a série era quando começou, o que cativou os fãs, os manteve ao longo de 15 anos e também um sinal do que ela precisa ser para mantê-los pelos próximos 15.
Ainda há muito a se pensar e reimaginar para o futuro, mas retornar ao Oriente Médio para encerrar esse capítulo da franquia foi excelente e algo que eu recomendo a todos que sentem falta de títulos antigos, os fãs da trilogia mais recente que nunca os jogaram ou novos jogadores curiosos. Basim pode não ser o melhor Assassino de todos, mas ele se sustenta bem como um dos mais importantes para o futuro d’Os Ocultos.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Ubisoft.
Veredito
Assassin’s Creed Mirage é uma excelente homenagem ao passado e um título bem realizado por seus próprios méritos. Evocando elementos que tornaram a franquia um sucesso imenso e os casando com várias das melhorias trazidas em jogos recentes, ele se mostra um ótimo jogo e uma bela abordagem para contar a história de um dos mais intrigantes personagens da franquia: Basim.
Assassin’s Creed Mirage is an excellent homage to the past and a well-realized title in its own merits. Evoking elements that made the franchise an huge success and marrying them with several of the improvements made in recent games, it is a great game and it has a beautiful approach to telling the story of one of the most intriguing characters in the franchise: Basim.
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