Sabe quando o professor decide dar um trabalho no qual ele mesmo formará os grupos, e então coloca o melhor, mais empenhado, perfeccionista e habilidoso aluno junto aos repetentes “do fundão”? No caso de Trüberbrook, esse aluno ficou responsável pela capa, e os repetentes por todo seu conteúdo.
Trüberbrook é um adventure “point-and-click” de ficção científica desenvolvido pelo estúdio alemão btf a partir de uma campanha de financiamento coletivo no Kickstarter. Ambientado na alemanha rural dos anos 60, o jogador entrará na pele do físico quântico Hans Tannhauser, que ganhou férias na pequena cidade de Trüberbrook num sorteio em que ele não se inscreveu, e deverá conversar com seus excêntricos habitantes e resolver quebra-cabeças a fim de solucionar um estranho mistério e, claro, salvar o mundo.
Seu trunfo é nitidamente sua apresentação visual. Todos cenários e panos de fundo foram criados a partir de maquetes reais, capturadas por scanners 3D através da técnica de fotogrametria – a mesma que torna tão impressionantes os visuais de jogos como Star Wars Battlefront e Battlefield – e então trabalhados digitalmente. O resultado é fantástico e, combinado com a direção dos personagens (por mais que estes sejam mais simplórios), o game é praticamente uma versão jogável de alguma animação da Aardman Animations (responsável por Fuga das Galinhas e Wallace & Gromit).
Mas as qualidades de sua apresentação não terminam aí. As trilhas, sua cadência e toda a ambientação acrescentam a um clima perfeito de suspense numa cidadezinha remota à la David Fincher. Afinal, os criadores não exitam em declarar suas inspirações em séries como Twin Peaks, Arquivo-X e no gênero “Heimat” (algo como “terra natal”) do cinema alemão, famosos por suas ambientações rurais e simplicidade moral.
Outro ponto a se considerar, em especial para um jogo independente, é que todas as falas e diálogos são completamente dublados. Por mais que a qualidade da atuação (em especial na dublagem em inglês) seja questionável, não ter de atravessar um adventure inteiro através de apenas blocos de texto facilita bastante.
Mas se até aqui você se interessou pelo game de alguma forma, sinto em decepcionar, pois seus pontos positivos terminam aí. O desenvolvimento de jogos é, salvo raras exceções, um trabalho em equipe; A união de diferentes áreas de expertise num produto interativo final. A enorme dificuldade em trabalhar bem com visuais, áudio e toda a lógica de programação para criar uma boa e coesa experiência (além do marketing, financeiro, judiciário e diversos outros pontos encontrados nesse processo) é que torna tão necessária a cooperação equilibrada de tantos profissionais diferentes. Não é o caso aqui.
Por trás desse belíssimo casulo que envolve Trüberbrook, há um roteiro sem sentido, segmentos tediosos, mecânicas inconsistentes, e diversos outros problemas que tornam difícil recomendá-lo só por seu rostinho bonito. Isso fica aparente logo nos seus primeiros minutos, se escancara cada vez mais conforme o jogador progride.
Logo de cara, ao adentrar num ambiente fechado, a personagem declara estar tão escuro que ela nem consegue enxergar suas próprias mãos (por mais que hajam luzes acesas do lado de fora). Imediatamente, o jogador deve interagir com um quadro na parede (duas vezes?) para encontrar o interruptor. “Tem algo de errado com esse quadro” diz a mesma personagem que, segundo atrás, afirmou não conseguir enxergar nada. Esse pequeno segmento já pode ser tomado como um presságio do que, pra mim, foram os dois maiores problemas do jogo que viriam a se repetir por diversas outras vezes.
Em primeiro lugar, fica visível uma total desconexão narrativa. Há uma completa ausência de direção em relação ao tom das dublagens, ao senso de humor, as motivações das personagens são confusas e a sequência dos acontecimentos não possui nenhum ritmo ou sentido. É como se os roteiristas soubessem apenas o panorama geral da história que queriam contar, mas não os passos que o jogador deveria dar através dela, criando com os game designers diversas interações incoerentes a fim de produzir (artificialmente) uma sensação de progressão e dificuldade.
O que nos leva ao segundo problema: o gameplay. Se você é familiarizado com jogos point-and-click, sabe que por diversas vezes você se vê pegando os itens em seu inventário e experimentando diversas combinações e interações até conseguir desvendar os quebra-cabeças – que é quando você exclama “Aaah! Como eu não pensei nisso antes?”. Em Trüberbrook, não só você passa praticamente o jogo inteiro tentando encontrar essas interações, o que é frustrante por si só e em nenhum momento te faz se sentir inteligente, como também sua reação, na maioria das vezes, vai acabar sendo algo como “O quê? Isso não faz sentido nenhum!”.
Para piorar, o game também te priva da experimentação e descoberta – da sensação de que foi você quem pensou na solução para aquele problema. A interface do seu inventário não só não possui função nenhuma, como, ao interagir com algum objeto ou personagem já possuindo o item correto, o jogo o exibe como uma opção de interação, muitas vezes te dando a resposta antes mesmo de você ter se feito a pergunta.
O resultado é um gameplay repetitivo, desconexo e tedioso que o jogador é obrigado a superar a fim de descobrir mais da narrativa – que também se mostra cada vez mais desconexa, tediosa e irrelevante – e todo aquele visual impressionante se torna cada vez menos atrativo, diminuindo sua vontade de estar naquele mundo e muito menos de salvá-lo (até porque o jogo também não faz um bom trabalho em explicar o perigo que ele corre).
Mas já que, além do game, estamos falando também sobre seu desenvolvimento, até aqui poderíamos pintar uma narrativa mais positiva. Olhar através da perspectiva do pequeno estúdio independente, apaixonado por jogos point-and-click, que recorreu ao Kickstarter para criar seu projeto dos sonhos e precisou manejar bem seus recursos – investindo mais naquilo que sabiam fazer com qualidade e um pouco menos no restante. Novamente, não é bem esse o caso.
“Ideia. Concepção. Livros. Produção. Design. Animação. Edição. Efeitos Visuais. Finalização. Instalação. TV. Filmes. Arte.”. Essa é a descrição que a btf dá em seu site oficial sobre quem eles são – algo como uma grande agência de publicidade. Note que “games” ou “experiências interativas” sequer são mencionados.
Dificuldades com a narrativa? Os diretores do estúdio, Philipp Käßbohrer e Matthias Murmann são criadores e produtores executivos da série da Netflix “Como Vender Drogas Online (rápido)”, que possui 92% de aprovação do público no site Rotten Tomatoes.
Pouco dinheiro? Não só o jogo recebeu €198.142 (mais do que o dobro de sua meta) e se tornou a campanha alemã mais bem sucedida para um game no Kickstarter, como também foi co-financiado pelo órgão alemão Medienboard Berlin-Brandenburg – além de possuir uma publisher e se auto-financiar com alguns projetos paralelos do estúdio.
Vendo agora como o estúdio possuía em suas mãos as mais diversas ferramentas, recursos e capacidade para executar um ótimo projeto, restam apenas alguns possíveis culpados por seu insucesso: o tempo, a inexperiência, e a direção.
O tempo pois, apesar de sua pré-produção ter se iniciado em 2014 (e as ideias para o jogo serem trabalhadas desde 2011), ainda há um ar de um produto feitos às pressas, com pouco polimento, encerrado antes do fim e até mesmo com algumas coisas faltando, em especial nos momentos finais do game.
A inexperiência pelo fato de a btf não ser exatamente um estúdio de desenvolvimento de games, então a parte lúdica do projeto aparenta ser bastante amadora, com alguns problemas básicos e diversas inconsistências.
E a direção pois também podemos presumir algumas más escolhas no gerenciamento do projeto, dando muito mais atenção e importância para alguns aspectos do que para outros. Aqui o professor acaba tendo culpa pelo grupo que formou, e é responsável pela nota final do trabalho.
No fim das contas, é impossível determinar ao certo quais foram os motivos que impediram Trüberbrook de alcançar todo seu potencial. Em meio a uma incrível apresentação e um interior caótico e desapontador, desvendar o mistério de seu desenvolvimento acaba sendo mais interessante do que o mistério do jogo em si.
Jogo analisado no PS4 padrão com código fornecido pela Headup Games.
Veredito
Apesar de sua ótima apresentação audiovisual, sua narrativa confusa, mecânicas desconexas e a falta de uma direção mais clara impedem que a beleza de Trüberbrook te deslumbre o suficiente para te manter interessado no game. Talvez numa próxima, o estúdio btf possa corrigir seus erros, e alcançarem o potencial que claramente já possuem.
Despite the great presentation, troublesome narrative, disjointed mechanics and the lack of a clearer direction stops Trüberbrook’s beauty from dazzling you enough to keep you interested in the game. Maybe next time, studio btf might fix these mistakes and reach the potential that they already clearly have.
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