Persistência é uma característica deveras interessante. Mesmo após falhas, a persistência é aquilo que nos move adiante para tentar novamente, aproveitando as experiências anteriores como ensinamento. No mundo dos games é algo visto frequentemente, porém de forma mais interna, com projetos e conceitos que vão sendo descartados e moldados, até que enfim se tornam um produto final.
Uma desenvolvedora que pode ser taxada bastante persistente é a Spiders Studios. Localizado na França, a Spiders é responsável pelo desenvolvimento de vários RPGs de ação, como Mars: War Logs, Bound by Flame e Technomancer. Todos esses jogos têm algo em comum, possuem ideias interessantes e uma execução terrível, com visual precário, jogabilidade travada, falta de refinamento e qualidade num contexto geral.
GreedFall é o novo fruto da persistência da Spiders em alcançar uma nova IP de sucesso para o gênero de RPG de ação. De imediato já é possível afirmar que, com a vasta experiência negativa que tiveram no passado, conseguiram criar um produto atraente, com um núcleo bastante definido, várias melhorias na jogabilidade e com história e narrativa aprimoradas.
Em GreedFall o jogador encarna De Sardet, emissário da congregação de comércio, parente da realeza e explorador iniciante. Vivendo em um época de trevas, o continente é devastado por uma doença chamada Pestegris. Nenhuma cura é descoberta e cada vez mais a doença deixa um rastro de morte pelo caminho. No desespero de encontrar uma resolução para tal tragédia, várias nações enviam exploradores e pesquisadores para uma ilha remota recém descoberta.
O jogo começa na cidade de Serene, onde o jogador toma os primeiros passos em sua jornada. Aqui é possível criar a aparência do seu personagem e ter a experiência inicial, que seria como um tutorial para o jogo. Após isso, a viagem para a ilha de Teer Fradee e a busca pela cura da Pestegris é o objetivo maior de De Sardet.
A história de GreedFall gira em torno de De Sardet e seu passado, os mistérios da ilha de Teer Fradee e as várias questões políticas e sociais geradas pelo atrito das várias nações e facções do jogo enquanto procuram uma cura para a Pestegris. De Sardet passa a estar envolvido em várias questões políticas, atritos sociais e decisões morais.
Decisões precisam ser tomadas pelo caminho que abre a narrativa do jogo para várias perspectivas diferentes. A busca pela cura está entremeada à vários conflitos, principalmente sociais, onde cada grupo ou facção tem um interesse diferente, inclusive sobre a exploração da ilha. Há facções de comércio, mercenárias, navais, religiosas e também os nativos de Teer Fradee. Religiosos tendem à um conflito com os ilhéus, inclusive tentando uma educação agressiva dos mesmo. Mercenários lutam pela moeda paga, mas conseguem ver oportunidades que surgem. Todos esses conflitos e o desenrolar de várias escolhas é o mais atraente na história apresentada, inclusive criando vários finais com resoluções diferentes, o que instiga o jogador a terminar o jogo mais de uma vez com caminhos alternativos.
Como foi possível perceber, GreedFall possui várias semelhanças com os jogos desenvolvidos pela BioWare. Isso é ainda mais nítido devido aos companheiros que ficam ao lado de De Sardet. É possível ter no grupo até mais dois parceiros, sendo que cada um possui estilos diferentes e são de facções únicas. Como exemplo, Vasco é um capitão e representa a facção dos Náuticos, navegadores ávidos dos oceanos que se preocupam apenas com suas frotas. Siora, por outro lado, é uma nativa de Teer Fradee que tenta a todo custo proteger sua tribo da exploração agressiva dos continentais. Cada um tem um linha de desenvolvimento único e acabam estando envolvidos em vários momentos da história principal.
De modo geral, a história e a narrativa são de ótima qualidade e vão agradar aos fãs dos icônicos RPGs da BioWare. Personagens interessantes, narrativa que se desenvolve de acordo com ações e escolhas do jogador além de uma história que instiga já de imediato são grandes trunfos no jogo. Alguns problemas são percebidos no design de missões, alguns diálogos fora de contexto e no excessivo backtracking. Os mapas são similares aos de Dragon Age: Inquisiton, com várias áreas segmentadas e não num grande mundo aberto. Há missões que te faz passar por vários mapas apenas para diálogos que não incrementam muito o desenrolar da missão em si e poderiam ser simplificados.
Como RPG de ação, boa parte do jogo se deve ao combate e à profundidade de mecânicas que possui. Aqui a evolução da Spiders é ainda maior, com um combate mais dinâmico, com várias opções de abordagem e profundidade dos sistemas de RPG. É possível utilizar de armas brancas como espadas, machados, martelos e mais, além de armas de fogo variadas, armadilhas e até anéis mágicos.
A progressão é feita através de pontos distribuídos de 3 formas diferentes. Pontos de habilidades são para formas de combate direta, como poder utilizar armadilhas de veneno, manusear espadas de duas mão ou o uso de rifles ao invés de pistola. Esses pontos são conseguidos a cada vez que se aumenta o nível do personagem e ao encontrar pilares de pontos de habilidades pelo mundo do jogo.
Há ainda o sistema de atributos e talentos. Atributos são pontos de formação do personagem, como agilidade para uso de armas rápidas, vigor para aumento de pontos de vida ou precisão para um melhor uso de armas de fogo. Talentos são características únicas, como criação química de poções, melhorias de equipamentos ou capacidade em quebrar cadeados. A evolução aqui é um pouco mais lenta, com um ponto sendo liberado a cada 3 níveis alcançados.
O interessante é como vários pontos são usado fora do combate. Como exemplo, investir mais em vigor permite De Sardet escalar paredes mais altas, conseguindo assim formas distintas de explorar o mapa ou acessar áreas antes impossíveis. Investir em carisma permite persuadir melhor outros personagens e tomar medidas mais diplomáticas, mas priorizar intuição abre a possibilidade de utilizar formas diferentes para resolver uma questão. O fato do progresso ser mais lento nessa área faz com que seja necessário avaliar o máximo possível onde investir um ponto, já que algum atributo diferente possa ser primordial em alguma área a frente.
Se GreedFall apresenta vários pontos positivos em sua história e no sistema de RPG, alguns outros fatores e também a parte técnica ainda não evoluiu o suficiente, continuando apenas decente ou funcional. Mesmo o combate às vezes pode ser cansativo, principalmente pela pouca diversidade de inimigos e encontros mal distribuídos pelo mapa. O modo furtivo e a IA de alguns inimigos são apenas básicos o suficiente para existir. Como já dito anteriormente, o design de algumas missões consegue deixar a experiência irritante em poucos momentos, principalmente quanto aos diálogos e viagens desnecessárias.
Vários pontos negativos acabam minando a excelente ambientação que o título apresenta. Como exemplo, uma batalha importante acontece nas ruas de uma cidade, mas do outro lado da rua é possível ver um NPC varrendo a calçada. A promessa do início do jogo para a ilha de Teer Fradee é de um ambiente completamente novo e não explorado, mas ao chegar no local é possível ver que grandes cidades já foram erguidas, como se tivessem sido construídas há mais de 50 anos. Mesmo o excelente visual inspirado na arte barroca européia do século 17 é prejudicada pela repetição excessiva de cenários internos, como várias casas e palácios de governantes, de facções diferentes, que possuem ambientes idênticos.
O visual do jogo é agradável em alguns aspectos, principalmente nos cenários abertos da ilha e nas regiões urbanas, além dos designs de equipamentos, como armas e armaduras. Entretanto, muito acaba se perdendo pela parte técnica. Animações de personagens são grosseiras em vários momentos, principalmente animações faciais. É possível encontrar NPCs diferentes mas com aparência idêntica, mostrando um reuso excessivo de vários modelos. Há ligeiras quedas nos quadros por segundo do jogo em momentos esporádicos. Pequenos problemas com sincronização labial e alguns outros fatores.
Mesmo que ainda conte com uma excelente trilha sonora, parte dela é reutilizada exaustivamente, principalmente em situações de combate. Num geral, GreedFall ainda apresenta aspectos técnicos de jogos que saíram há quase 10 anos atrás, como The Elders Scroll V: Skyrim. Quase podemos afirmar que é um jogo que saiu tarde nesse quesito, não evoluindo tanto como deveria e ficando claramente atrasado perante seus concorrentes nos aspectos técnicos.
A Spiders criou um jogo que apresenta muitos pontos positivos e principalmente recompensa a persistência do estúdio em criar um produto atrativo após tantos anos. Mesmo assim, ainda falta bastante refinamento e polimento no título, mesmo que alguns problemas sejam corrigidos posteriormente com atualizações. O núcleo do jogo é de bastante qualidade e com acertos cruciais, mas falta um acabamento melhor que, talvez, só poderia ser alcançado com mais recursos disponíveis. Entretanto, é louvável um título que proporciona mais de 40 horas de jogo e com bom fator replay possa ter sido produzido com investimento tão modesto para o mercado atual.
Jogo analisado no PS4 Pro com código fornecido pela Focus Home Interactive.
Veredito
GreedFall é o maior exemplo da evolução de sua desenvolvedora, que criou um ótimo RPG de ação para um mercado carente de boas opções no momento. Com uma história interessante, sistema de RPG profundo e um combate agradável, o jogo da Spiders mostra qualidades que devem agradar aos órfãos da série Dragon Age, mesmo que ainda falte bastante refinamento para uma experiência que poderia ser ainda melhor.
GreedFall is the biggest example of the evolution of its developer, that created a great action RPG for a market lacking in good options at the moment. With an interesting storyline, deep RPG system and pleasing combat, Spiders’ game showcases qualities that should please Dragon Age orphans, even though there is still a lot of refinement left for an even better experience.
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