Alice Escaped! – Review

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Uma história contada uma infinidade de vezes dá substância a um game no já bastante saturado estilo metroidvania 2D. De um ponto de vista superficial, Alice Escaped! não parece das propostas mais atrativas do mercado atualmente, por mais que evidencie uma estética peculiar, já que inevitavelmente terá que justificar o que pode oferecer de realmente novo, tanto para os fãs da obra máxima de Lewis Carroll quanto para aqueles que estão se acostumando a receber dezenas de outras opções, sobretudo no modelo independente de produção, que aprende e se apropria do gênero cada vez mais. E antes de mais nada, a boa notícia é que sim, o game tem todos os elementos para conseguir um lugar ao sol.

A história nos apresenta Usada e Kotora, duas estudantes que encontram um estranho bilhete dentro de um livro escolar, que mais se assemelha a um pedido de socorro, dizendo “Por favor, encontre Alice”. Sem sequer ter um tempo para tentar entender o que aquilo significava, ambas despertam em um lugar totalmente diferente, trajando belos vestidos coloridos e com armas peculiares em mãos. Enquanto Usada carrega uma marreta maior do que ela mesma, Kotora empunha uma poderosa metralhadora. O que elas fazem ali e, mais importante, onde é esse tal “ali” será respondido a elas ao longo da jornada, mas as referências nos deixam confortáveis em reconhecer um tal País das Maravilhas que ficou bastante famoso não só pelo livro original, mas principalmente pelas muitas adaptações audiovisuais e citações ao longo das décadas seguintes. Mesmo quem nunca leu ou assistiu saberá reconhecer elementos que se tornaram verdadeiros ícones pop.

Qual das duas estará sob nosso controle? Ambas. Ainda que não seja uma mecânica essencialmente nova – eu mesmo falei de jogos recentes que se apropriam da mesma ideia, como Double Dragon Gaiden: Rise of the Dragons e, principalmente, Chronicles of 2 Heroes: Amaterasu’s Wrath – mas aqui ela tem suas peculiaridades. A primeira delas é que é necessário ter uma quantidade suficiente de Chance Energy para alternar entre uma e outra, ambas sempre presentes na tela, mas só a que está sendo controlada tem ação direta contra inimigos e na resolução de puzzles, o que em outras palavras, significa que não há nenhum tipo de ajuda da CPU. Ou seja, alternar entre elas não é algo que pode ser feito a qualquer momento, e entender como e quando isso deve ser feito é parte da aprendizagem estratégica do jogo. Obviamente, há a diferença entre ataques parrudos corpo-a-corpo e projéteis a distância, mas na prática não é tão simples assim.

Como um metroidvania que se preze, há um bom equilíbrio entre o combate e plataforma. No primeiro aspecto, é possível lutar usando combos simples com o botão de ataque ou na composição com o salto e, a medida que vamos evoluindo, outros movimentos utilizando comandos com os direcionais tornam tudo um pouco mais complexo e divertido. O conflito se dá contra inimigos variados, como soldados de baralho, livros ambulantes e bules de chá, algo que já se espera dado o tema do game, e alguns são bobos e tapados, enquanto outros são mais complicados pela resistência, não por outro motivo, já que a IA dos adversários é simplória como nos bons tempos dos 16 bits, simplesmente repetindo movimentos ou atacando de frente como se não houvesse amanhã.

Por sua vez, as passagens de plataforma exigem precisão, inventividade e uma boa dose de ousadia não só com o pulo simples, mas também com o impulso que permite movimento de dash para várias direções. Subir em paredes saltando pelas beiradas e utilizar recursos do cenário para alcançar palanques distantes faz parte do pacote convencional do gênero, e em Alice Escaped! os cenários são muito bem construídos, apresentando um bom level design, ainda que careçam de uma melhor articulação por entre mundos, já que fica claro desde o início que será preciso ir e voltar algumas vezes pelos mesmos corredores para acessar todas as passagens possíveis. Qualquer problema de construção, nesse caso, é minimizado pelos pontos de viagem rápida, mesmo que alguns estejam bem mal localizados. Navegar pelo mundo é sim divertido, sempre traz um bom desafio com o respawn de inimigos e funciona para que nos acostumemos com aquele lugar maluco.

Contudo, a diversidade de inimigos acaba se tornando um tanto quanto esquemática à medida em que avançamos na campanha. Não demora para que encontremos os mesmos tipos  travestidos com uma outra skin. Borboletas e lápis voadores podem até parecer diferentes, mas são o mesmo inimigo com uma roupagem nova. O mesmo vale para muitos outros, e no final aprendemos que não há mais do que quatro ou cinco arquétipos diferentes ao longo de toda a jornada. O mesmo pode ser dito, só que em menor escala, quanto aos chefes, que mudando uma coisinha ou outra, aparecem para nos enfrentar só porque sim. Felizmente, cada um deles nos ganham pelo carisma, principalmente em diálogos que não chegam a ser complexos ou sofisticados como o texto original, mas que funcionam bem para a narrativa aqui implementada, incluindo até opções customizáveis de respostas em alguns momentos que, mesmo mais cosméticos do que práticos, trazem um tempero a mais. Pena que não há localização para o nosso português brasileiro, o que sempre atrapalha principalmente em um jogo que tem muito potencial de agradar crianças de diferentes idades.

A história, aliás, demanda um entendimento mínimo do que está sendo dito, já que muitas vezes são nessas conversas onde está a orientação para a próxima tarefa. Nem sempre é claro o que deve ser feito, ou qual passagem pode ser aberta por um certo artefato coletado, e não são raras as vezes onde nos vemos no bom e velho “onde mesmo eu devo ir com esse chapéu de bruxa?”. Mesmo que a lista de missões seja acessível pelo menu principal do jogo, as orientações são vagas e pouco amistosas para quem não se preocupa em entender as entrelinhas. Uma vez mais, a viagem rápida é útil porque em momentos assim, uma rápida consulta ao mapa nos indica onde há alguma passagem ainda fechada para que consigamos dar uma olhada e ver se é lá o nosso destino. A dica é, portanto, explorar cada cantinho, buscar cada coletável e só ir embora de um local depois de vasculhar cada canto.

Isso não só por itens de missão. Para progredir é importante estar sempre em processo de evolução, seja aumentando a barra de vida com corações extras, seja encontrando cristais, desde os pequenos espalhados em abundância até os maiores, porque é com o acúmulo deles que poderemos desbloquear novos movimentos e outras opções passivas na surpreendentemente generosa árvore de habilidades de Alice Escaped!. Compartilhada entre ambas as heroínas, há itens que são específicos de uma ou de outra, mas vários deles são comuns a ambas. Nem sempre é recomendável investir só naquilo que mais se adapta ao nosso estilo, porque certas barreiras dependem de movimentos específicos e não se importar com isso significa ter que repetir vários trechos para acumular mais pontos, desbloquear certa competência, e aí sim liberar o caminho necessário. A experiência é soberana para afirmar que melhor do que estar preparado naquilo que se gosta é estar atento ao que o jogo espera de você. É uma escolha de design que não me agrada tanto porque finge dar opção quando na verdade há uma escolha claramente melhor do que outra, mas que de um jeito ou de outro, funciona e garante o ritmo da aventura.

O sistema de combate, em si, ganha bastante com a possibilidade da alternância quase livre entre as duas personagens, mas mesmo quando praticamente liberamos o que há de melhor para cada uma delas, parece haver uma clara vantagem de uma em contraposição a outra, principalmente por questão de impacto. Enquanto descer a porrada faz com que os inimigos caiam, se afastem, ou simplesmente parem de atacar, as saraivadas os afetam pouco. Qualquer inimigo raso se torna uma esponja de bala e continua avançando mesmo sob chumbo grosso, pior ainda para os mais complicados. No fim, usar Kotora me foi útil somente contra alguns adversários, sobretudo chefes, com padrão de ataque reconhecível é que levam mais desvantagem com ataques distantes do que com o melee, desequilíbrio que acaba prejudicando o próprio estilo do jogador.

Isso porque para ser derrotado, basta que apenas uma das protagonistas seja totalmente esgotada de sua barra de vida, o que, a priori, significa que é altamente recomendável alternar entre elas para que uma tenha seu HP recuperado enquanto a outra assume o front de batalha. Só que com uma clara desvantagem de uma para outra, alternar significa passar por apertos muito maiores até que a mais poderosa possa voltar à ativa. Pode ser que essa seja uma questão muito específica do meu estilo de gameplay e que seja diferente para outras pessoas, mas como eu tenho normalmente a preferência por quem tem recursos a distância – seja controlando a Marian no já citado Double Dragon, seja preferindo o mago em RPGs como Diablo IV – senti que aqui isso não daria muito certo. Alice Escaped! me pareceu muito mais confortável usando o estilo porradeiro mesmo.

Aliás, falar de pancadaria desmedida, tiroteio e outras formas de violência incisiva pode nos trazer uma sensação de um jogo mais bronco, mas basta uma rápida olhada no material visual desta análise que fica claro o tom fofo adotado aqui. Numa mistura entre o estilo chibi – aquele com personagens mais cabeçudos como se fossem bonecas – e um toque sutil e bem leve (considerando outros exemplos mais explícitos) de waifu (que resumidamente lida com uma pretensa e quase perturbadora atração amorosa por personagens animados), a arte do game claramente inspirada pelos traços de mangá e anime brinca com uma variação enorme de cores e formas, com uma toque infantil quase inocente. Mesmo que seja algo esperado dada a riqueza pouco compromissada com o realismo de Carroll, aqui há uma liberdade estética que garante muita diversidade para cenários e ambientes, mesmo os mais triviais como florestas e cavernas, mas primordialmente em lugares menos convencionais, como a mesa de uma certa festa do chá. Definitivamente, não há aqui economia da saturação ou de aberrações cromáticas.

Se na maior parte do tempo essa profusão de informações visuais desperta o interesse e valoriza a concepção artística do produto, em alguns tópicos chega a ser demais. Alguns cenários acabam passando do limite e a variedade se torna poluição visual sobretudo no que se refere a profundidade de campo. Parece que tudo o que está ao fundo se mistura com a layer onde estamos, tornando tudo muito confuso. Não chega a incomodar ou atrapalhar na fluidez de movimentos, mas acaba achatando tudo o que deveria ser detalhes em uma mesma dimensão. Dito isso, essas poucas exceções jamais diminuem a qualidade extrema de reconstrução desse universo tão encantador. Alguns dos personagens mais reconhecíveis ganham novas roupagens, trazem características próprias, mas estão muito bem aconchegados em um mundo repleto de magia e encantamento. Alguns cogumelos são perigosos? Talvez. Nem todo habitante gosta de nos ver aqui? Quase todos nos atacam. Mas tirando isso, cada traço deste lugar é um convite ao sonho e à contemplação.

Com uma interface de usuário agradável – ainda que o mapa poderia ser mais atraente visualmente – e um modelo de progressão com o qual já estamos bastante familiarizados, Alice Escaped! não parece, como dito, algo especialmente original em uma primeira olhada. E se ele realmente se apropria de muita coisa já sedimentada no mercado, seja na questão das mecânicas próprias do gênero, seja na própria estruturação narrativa, ele encontra o seu charme no carisma de suas personagens, incluindo alguns ótimos NPCs, e em um sistema de combate pouco inventivo, mas diverso o suficiente para justificar suas pouco menos de 10 horas de campanha.

Vale destacar ainda que com a possibilidade de finais diferentes aliada a certos diálogos com chances diferentes de convencerem ou não nossos interlocutores, o fator replay ganha muitos pontos e não é raro ter experiências diferentes jogando duas ou três vezes para desbloquear novos finais. Isso principalmente porque depois que descobrimos o caminho, tudo fica bem mais ágil nas runs posteriores à primeira. E se o jogo conseguir te encantar como ele tenta desde os primeiros segundos, é certo que você irá querer saber o que raios aconteceu com a bendita Alice, porque, bem, já sabemos que ela escapou – o título entrega um spoiler confuso – e agora resta entender o que isso significa.

Jogo (versão original de PS4) analisado no PS5 com código fornecido pela Sekai Project.

Veredito

Alice Escaped! é um típico metroidvania em sua essência. O título adapta para os games uma clássica obra da literatura mundial sem, contudo, perder uma certa identidade baseada no carisma de suas personagens agindo colaborativamente e no encantamento proporcionado por esta leitura muito específica do mundo de Lewis Carroll.

75

Alice Escaped!

Fabricante: illuCalab

Plataforma: PS4

Gênero: Ação / Aventura / Plataforma / Metroidvania

Distribuidora: Sekai Project

Lançamento: 24/08/2023

Dublado: Não

Legendado: Não

Troféus: Sim (inclusive Platina)

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Alice Escaped! is a typical metroidvania in its essence. The title adapts a classic work of world literature to games without, however, losing a certain identity based on the charisma of its characters acting collaboratively and the enchantment provided by this very specific reading of Lewis Carroll’s world.

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Alice Escaped! is a typical metroidvania in its essence. The title adapts a classic work of world literature to games without, however, losing a certain identity based on the charisma of its characters acting collaboratively and the enchantment provided by this very specific reading of Lewis Carroll’s world.

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